sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

A Economia do Pobrezinho de Assis


São Francisco de Assis nasceu e cresceu em uma família rica, que comerciava tecidos finos, que seu pai trazia da França. Durante sua mocidade preocupou-se em viver intensamente sua virilidade ‘jogralesca’. Suas noitadas, suas festas, seus amigos, tudo viveu Francisco com muita intensidade. Seu pai Pietro Bernardone o educou para uma economia do lucro, fundamentada numa administração para o "cem por cento de lucro".
Após algumas experiências marcantes em sua vida começou a indagar-se, sobretudo em sua vida. E assim, o filho de Pedro Bernardone adentrou num processo de profunda reflexão sobre sua existência e, sobretudo, aquilo que até então acreditava ser os seus valores fundamentais .
Francisco de Assis a tudo possuía: prestígio, riqueza e amigos, no entanto, faltava-lhe algo extremamente necessário. Na tentativa por preencher este vazio sentido por ele é que o motivou a buscar incessantemente por algo. Depois de longa penúria encontrou seu tesouro, e que para adquiri-lo vendeu tudo o que tinha para comprar o terreno onde está o seu tesouro.
O reino dos céus é semelhante a um tesouro escondido no campo, que um homem, ao descobrí-lo, esconde; então, movido de gozo, vai, vende tudo quanto tem, e compra aquele campo” (Mt 13, 44).
O homem de Assis ao descobrir este tesouro lança-se em busca. O reino do céu, eis o grande tesouro encontrado e adquirido por Francisco. Ao que aqui chamaremos de Amor. Mas, o que seria este tesouro? Este Reino do Céu? Este Amor? E, eis que aos pouco o pobrezinho de Assis foi descobrindo que era o próprio Deus, este Deus que ora se mostra, ora se esconde.
Porém, Francisco não ficou só no primeiro contato para com Deus, para com o seu tesouro. Ele foi além. E indagou: “Senhor o que queres de mim?” Juntamente com esta pergunta, Francisco colocou-se inteiramente nas mãos do Amado e suavemente foi deparando-se que este Amor era o seu tudo. E durante toda a sua vida afirmou “Meu Deus e meu Tudo!
Se antes era o filho de um dos comerciantes mais ricos de Assis, tornou-se, então, o homem mais rico ainda, mesmo não possuindo nada, inclusive suas roupas (de baixo). Pois, descobriu o grande tesouro e por este tesouro teceu um compromisso com o verdadeiro amor, o próprio Deus, O Tesouro.
Então, por que Francisco foi e continua sendo este magno expoente para o mundo? Porventura seria pela razão de ter renunciado tudo por causa do Reino? Certamente que não, mas sim porque “verdadeiramente amou a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como Cristo nos amou” e isto, com radicalidade. Aqui está a economia do pobrezinho de Assis.
A palavra Economia entre tantos significados que possui pode ser entendida como a administração da escassez. E, Francisco de Assis soube com maestria administrar suas mazelas para viver com radicalidade o mandamento do Amor; eis o segredo da economia do Poverello.
Francisco administra as suas misérias, suas mazelas humanas, e por isso é que ele apresenta um novo tipo de economia. A economia de sua vida; como? Atrás de seu segredo, o de amar o Amado, e antes mesmo de amar o Amado ele permite que o próprio Amado o ame. E só por isso é que o Poverello se torna capaz de opor-se aos erros do seu tempo e, superá-los na sua pessoa, na sua vida, nas suas ações.
Francisco “superou o ‘dinheirismo’, a idolatria da riqueza, a prepotência de quem possui, com a pobreza evangélica [...]” e que por isso “superou o consumismo daquele tempo, expresso no luxo e no refinamento de todas as formas do viver social, com a simplicidade mais radical, mas sem repudiar a civilidade, a cortesia e a gentileza para com todos”.
Francisco superou a discriminação social, que em sua época era extremamente visível, através das classes, aqueles que eram nobres, possuidores de bens, aqueles vassalos, serviçais. A todos o homem de Assis amava com o mesmo amor. Como pode ser percebido nas diversas hagiografias do santo.
O pobrezinho de Assis sentava-se a mesa com os nobres em seus magníficos palácios, mas também se sentava nas escadarias das igrejas junto com os mendigos. E tudo isto porque para Francisco a sua economia era fundamentada no Amor e não no lucro, ou no que os outros poderiam pensar dele. E que por isso a sua relação era sempre cordial para com todos sem distinção, uma vez que seu “olhar econômico” via a beleza de cada ser humano.
Francisco de Assis também superou “a violência, que serpeava na sociedade de então, vivendo como homem de paz, fazendo, desta maneira, resplandecer diante dos olhos o valor e a eficácia da paz de Cristo”.
Eis que o Pobrezinho de Assis com sua economia superou o “dinheirismo”, o “consumismo”, a “discriminação social” e a “violência”. Então, como nós hoje podemos colocar em nossa vida a vivência da Economia de São Francisco de Assis?
Primeiramente colocando no centro de nossas vidas o mandamento do amor. “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como Cristo nos amou”. Em segundo lugar, deixar ser amado pelo próprio amor; permitindo que o Amor nos envolva em todos os aspectos da existência humana, ou seja, na vida pessoa, comunitária; nas relações consigo, com o próximo; na dimensão financeira, sexual e emocional. Ao colocarmos no centro de nossas vidas o Amor, logo deixamos que este amor possa agir em nossa existência, consequentemente predispomo-nos a sair de nós mesmo e a perceber nos outros as qualidades, tornando-nos abertos para sermos cada vez mais cordiais para com quem quer que seja.
Na economia de Francisco Deus não é posto de lado, como fez o homem moderno, mas Deus ocupa a centralidade da vida.
Na economia de Francisco o Amor tudo passa pelo Amor, que é o Amado, ou seja, Deus.
Na economia de Francisco a vida ocupa grande relevância.
No entanto, não é o que se pode presenciar na atualidade, uma vez que o relevante é o ter, esquecendo-se de que este ter perpassa a dimensão do modo como ter e possuir.
Sendo assim, o que nos resta por fazer enquanto cristãos e franciscanos “é entender que a grandeza do homem se funda precisamente em Deus e na relação com ele”.
Lembre-se que a sua economia pode ser fundamentada no valor do Amor e não no valor monetário, como fez o Pobrezinho de Assis.
Referência Bibliográfica:
ZAVALLONI, R. Pedagogia Franciscana. Petrópolis: Vozes, 1999.
Fonte WWW.reflexoesfranciscanas.com.br

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Os conselhos evangélicos, terapia espiritual?

"Vossa vida está oculta com Cristo em Deus” (Cl 3,3)

fonte: http://www.franciscanos.org.br/n/?p=9648

Por Frei Almir Ribeiro Guinarães

Aqueles que seguem os conselhos evangélicos, ao mesmo tempo que procuram a santidade para si mesmos, propõem, por assim dizer, uma “terapia espiritual” para a humanidade, porque recusam a idolatria da criatura e tornam de algum modo visível o Deus vivo. A vida consagrada, especialmente em tempos difíceis, é uma bênção para a vida humana e para a própria vida eclesial (Vita consecrata, n.87).
1. Uma religiosa e um religioso. Ela se trajava com simplicidade. Uma saia cinza e uma blusa clara. Tinha uma pequena cruz de madeira pendendo do pescoço. Saiu de seu quarto e foi para a cozinha. Queria fazer um doce de abóbora com coco para a comunidade. Vida simples e despojada. Uma religiosa. O coco ralado estava no armário da despensa e ela começou a descascar duas abóboras pequenas. Tudo com simplicidade. Uma mulher de seus 40 anos que fizera a promessa de vida religiosa com os votos de uma vida pobre e despojada, como esposa do Senhor e desejosa de fazer a vontade do Amado. Ele, um religioso, estava entrando em casa pelas dez da noite. Tinha acontecido mais uma quinta-feira de curso sobre a espiritualidade franciscana. Passa rapidamente pelo refeitório, toma um copo de suco. Troca uma palavra com um confrade. Entra na capela, reza completas, faz uns breves momentos de adoração e vai descansar. Um religioso. Vidas singelas e cheias de significado. Desde a juventude, tanto um quanto outro, compreenderam que haveriam de ser do Senhor e dos irmãos. Seguir o Senhor numa vida de pobreza, obediência e castidade. Seres que recusaram a idolatria da criatura e, pelo seguimento dos conselhos evangélicos, verdadeiras transparências do Altíssimo.
2. Na capela das irmãs carmelitas de Petrópolis (Rua Barão do Rio Branco), por sobre as grades que separam a comunidade da dita capela, há uma frase em latim: Vita vestra abscondita est cum Christo in Deo (Cl 3,3). Sempre me impressionou aquele rigor, aquela severidade. Mulheres frágeis, atrás das grades, que tinham sua vida escondida em Cristo. Sem vê-las sentia que elas eram importantes para a humanidade e para a Igreja. Depois compreendi que assim é que deve ser a vida de todo cristão: uma vida escondida com Cristo em Deus.
3. Em nossos dias, por vezes, em certos ambientes, pode-se ter a impressão que é meio fora de moda falar dos conselhos evangélicos. Os religiosos fazem a profissão, vivem os conselhos, mas preferem não falar muito a respeito de cada um deles. Parecem meio perplexos com tantas interpretações. Há muitas pessoas que desconfiam da eficiência de vidas que seguem os conselhos. Muitos religiosos mergulham em suas tarefas e isso parece bastar. Os que se debruçam sobre o tema da vida consagrada são unânimes em afirmar que ela é fundamental para a vida da Igreja. Ela torna viável e visível a radicalidade do Evangelho. As exigências mais radicais do Evangelho estão estampadas na vida dos religiosos. A Igreja necessita desses homens e dessas mulheres. Uma Igreja local sem vigorosas expressões de vida consagrada é uma Igreja empobrecida. Necessita desses homens e dessas mulheres que, vivendo reclusos em mosteiros ou em fraternidades atuando no meio do mundo, se tornam, no dizer de Congar, “parábolas do Reino”. Atestam que a radicalidade do evangelho está encarnada em suas vidas.
4. Miguel de Unamuno escreveu: “O ofício dos religiosos não é vender pão, mas ser fermento”. Gianluigi Pasquale, OFMCap, fala da vida consagrada como sintoma da verdadeira Igreja. Não há possibilidade na Igreja de visualizar a radicalidade evangélica sem a referência essencial à vida consagrada. Os fiéis cristãos, olhando a vida dos religiosos, mormente daqueles que já foram declarados santos, constatam que é possível viver a boa nova do Evangelho de maneira radical. A vida consagrada nunca faltou na Igreja. Os religiosos vivem no agora do mundo o mundo que vem. Trata-se do famoso argumento escatológico da vida religiosa e que daria, segundo muitos, sentido aos votos (Remetemos para o estudo do frade capuchinho “I consigli evangelici, guardiani della totalità del Vangelo”, in Verdad y Vida 255 (2009) p. 477-490). Curioso o título que o frade dá ao seus estudo: os conselhos evangélicos como guardiães da totalidade do Evangelho. O Autor é de parecer que o aspecto escatológico da vida consagrada, assinalado em Vita Consecrata, não foi suficientemente valorizado. No seu texto transcreve palavras do documento: “Dado que hoje as preocupações apostólicas se fazem sentir com maior urgência e o empenhamento nas coisas deste mundo corre o risco de ser cada vez mais absorvente, torna-se particularmente oportuno chamar a atenção para a natureza escatológica da vida consagrada (…) É nesse horizonte que melhor se compreende a função de sinal escatológico. De fato, é constante a doutrina que a apresenta como antecipação do Reino futuro” (n.26).
5. Anna Bissi, psicoterapeuta, escreve sobre os conselhos evangélicos como terapia espiritual para a humanidade (in Consecrazione e Servizio, n.10/2010, p. 71-75). Servimo-nos aqui, em parte, de suas reflexões. A autora começa sua reflexão retomando um famoso dito de Santo Inácio de Antioquia. O bispo suplicava que seus leitores ou ouvintes não impedissem o seu martírio. Para o velho bispo o sacrifício da vida correspondia à plenitude de humanidade. Somente passando pela morte a pessoa revela sua verdadeira grandeza. Essas palavras podem parecer exageradas, mas não devem ser interpretadas como masoquistas. Olhando mais profundamente elas rescendem verdade. A pessoa humana é somente humana quando aberta ao amor, capaz de relação e portanto de dom e de acolhimento. Aos olhos da Igreja o martírio sempre apareceu como sinal de um grande amor, portanto um lugar onde a dignidade do homem se manifesta em toda a sua plenitude.
6. Quando na Igreja cessa o martírio, seu lugar é assumido pela vida religiosa, chamada a viver a mesma tensão escatólogica, quer dizer o homem em sua completude, e por conseguinte, em sua dimensão transcendente, ou seja, a capacidade de não dobrar-se sobre si mesmo, mas dar-se ao outro no amor. Observados deste ponto de vista os conselhos evangélicos aparecem sob diferentes. Não são meios repressivos, e não constituem um obstáculo para a liberdade humana. Aparecem como remédio para o homem doente de egoísmo, e, portanto, não plenamente homem. Assim, como diz Vita Consecrata, eles aparecem como forma de terapia da pessoa humana. O coração de cada pessoa é um campo de batalha entre as forças egoísticas e aquelas que apontam para o amor. Somente quando vive no amor e para o amor, aceitando entrar na dinâmica de crescimento feita de morte e ressurreição, que vai tocar cada nível de sua existência, corpo, psique, espírito, somente então o ser humano se torna ele mesmo. Não somente o crescimento espiritual, na verdade, é estruturado como passagem da morte – dada pelo batismo, renovada através dos sacramentos, a oração, a ascese – à vida, mas também o desenvolvimento psíquico se inscreve no mistério da Páscoa. Ora, os conselhos evangélicos estão prenhes da força do mistério pascal. Os que perdem, ganham. O grão morre para dar fruto.
7. A evolução da pessoa é um caminho em que se alternam frustrações e gratificações, satisfações e privações. A única lei do aceitar, permitir, consentir ao que é solicitado mantém a pessoa num dobrar-se narcisista inicial e bloqueia sua humanidade, enquanto que o equilíbrio entre o receber e o dar, entre a plenitude e a falta abre o indivíduo ao desejo, o estimula ao dom, dilata seu universo. Pobres esses seres que vivem girando em torno de suas necessidades verdadeiras e falsas de coisas, do ter. Pobres e tacanhos seres que nunca conseguiram viver um relacionamento conjugal e familiar de dom límpido. Pobres os que ao longo da existência sempre se preocuparam em fazer valer sua vontade, seus desejos e que nunca, em todas as situações descritas foram capazes de morrer. Quem perde a vida, a encontra. Se o grão de trigo não morre não pode dar fruto.
8. Os conselhos evangélicos são terapêuticos porque se manifestam como um modo – não o único, mas sem dúvida muito importante – de entrar nesse dinamismo de plenitude e de falta, de morte e de vida, que permite que o ser humano cresça e o torna verdadeiramente humano, eliminando as falsas certezas, os ídolos através dos quais as pessoas pensam serem imortais, as máscaras que vamos usando para não enfrentar a verdade de nós mesmos. Os cristãos se convertem… Se não se convertem, perecem. Ora, a vivência dos conselhos evangélicos nos torna pessoas que apreciam o amargo e rejeitam o doce.
9. Por que os votos “entraram” em crise? Não é aqui o espaço para abordar em profundidade a questão. Fato que eles continuam válidos e são capazes de levar os que os professam a uma profundidade humana e cristã. Talvez se deva dizer que por vezes os que fazem os votos tenham perdido o fogo do começo. Num texto bastante instigante, Frei José Rodriguez Carballo, faz uma distinção entre uma formação para a observância e uma formação para a fidelidade. O texto não se refere em primeiro lugar aos conselhos, mas visa à formação do frade em geral. Os votos precisam ser vividos a partir de uma paixão por Cristo. Do contrário tudo é relativo, tudo é jurídico, tudo é seco. Há uma observância (quando há) fria. Assim o Ministro Geral se exprime no seu texto Com lucidez e audácia: “Mesmo sendo óbvio que seria errado contrapor a observância à fidelidade, seria também errado não distingui-las. A fidelidade inclui a observância, mas não se identifica com ela, supera-a. Em outras palavras, a observância é somente uma parte da fidelidade. Pode-se ser observante e não ser fiel, pois a fidelidade, como a fé, refere-se a uma pessoa: enquanto a observância faz referência a uma lei e consiste em seu cumprimento. Nossa vida tem como fim seguir “mais de perto a Cristo”. Uma primeira exigência de formação é, pois, formar na e para a fidelidade a uma pessoa: a pessoa de Jesus. Não queremos seguir uma ideologia, mas uma pessoa: Jesus Cristo”. O formador deverá levar o frade a descobri-lo como pessoa, para depois amá-lo como amigo. “Esse encontro pessoal com Jesus Cristo não deve ser dado como garantido na vida dos frades. Alguém pode fazer a profissão solene sem ter-se encontrado com pessoa de Jesus. Nesse caso a ideologia ocupará o lugar de Jesus. Mas uma ideologia pode trazer consigo: fundamentalismo, divórcio entre vida e doutrina e frustração (…) Só quem descobre Jesus como uma pessoa e como amigo poderá entregar-se totalmente a ele. Só assim as exigências mais radicais do seguimento de Jesus poderão ser fonte de alegria. Jesus não pode aparecer aos olhos dos frades como o rival de sua realização, mas como amigo que tudo pede porque antes tudo deu (…) Só uma pessoa que realmente se encontrou com Cristo, que se deixou seduzir pela beleza do Senhor e tenha provado sua amizade, estará disposta a vender tudo para seguir o Senhor com a radicalidade que tal seguimento exige: até a morte”. Votos sem paixão por Cristo é uma contradição. Emitir votos sem convivência com Cristo é mero legalismo e as interpretações passam a ser as mais díspares e controversas.
10. Xavier Pikaza Ibarrondo, professor em Salamanca, falando sobre a vida religiosa: “O Deus do evangelho não impõe obrigações legais, mas apresenta uma palavra simples de fidelidade diária. Damos demasiada importância a cerimônias externas dos votos religiosos, como ato social e oblação vitimista. Deus não exige vítimas, quer amigos. Não busca seres submissos mas fiéis que cresçam na liberdade. Os votos serão vividos como gestos de plena liberdade…”
11. Pobreza ontem, pobreza hoje. Quantos de nós, em nossa infância vivemos o duro da pobreza quase miséria que nos fortaleceu por dentro e nos fez menos moles. Aí está esse mundo do dinheiro, do lucro, das bolsas, das “bolhas”, do capital que foge, dos lucros astronômicos, mundo das roupas bonitas, dos carros suntuosos, da aquisição de tudo o que é produzido, sociedade do consumismo, da corrupção, da quebra de bancos… mundo em que as pessoas acreditam que são na medida de suas posses. A segurança do ser humano não está no dinheiro, nas aparências do ter. A pobreza faz com que o homem tenha consciência de não encontrar nem felicidade nem segurança no possuir. As pessoas, diante da precariedade da vida confiam nos bens. Exageram tal confiança. De repente o religioso sem dinheiro, sem posses, sem aparência, vivendo de seu trabalho é antídoto desse mundo de novos aparelhos, de carros novos, de casa sofisticada, de passeios em torno do mundo, seres vazios. O religioso se encanta com a singeleza do Filho do Homem que nasceu na singeleza de uma gruta e morreu na nudez da cruz. Os que fazem o voto de pobreza são uma terapia para a ímpia sociedade de consumo. Não vive de verdade quem não morre.
12. A posse não é o único ídolo que construímos na tentativa de encontrar a felicidade evitando a frustração. Outra grande tentação que cada ser humano experimenta é a sede do poder, da ilusão que, afirmando a própria vontade, seremos vitoriosos e fortes. A sedução da onipotência acompanha o homem desde as suas origens, levando-o a um jogo perverso do qual nunca sairá vitorioso. Tal tentação torna a pessoa cega e incapaz de ver a própria mesquinhez de sua sede de poder: ambição por cargos, afirmar sempre seu ponto de vista, marcar os relacionamentos fazendo que os outros se subordinem, praticamente querer ter preeminência em tudo. O conselho da obediência aparece como uma terapia que tenta não morrer sempre impondo sua vontade. Enquanto a pobreza lembra ao homem que não vale a pena preocupar-se com a própria vida, pois temos um Pai que sabe do que precisamos, a obediência chama atenção para uma Vontade capaz de realizar nossos anseios mais profundos para além de nossas pequenas e grandes expectativas. Terapia da vontade de poder, do individualismo, da imposição de nossos caprichos. Não ter medo de deixar uma posição e viver a singeleza do lava-pés. Os religiosos, ao longo de sua vida, estão preocupados em fazer em suas vidas a vontade de Deus. Felizes aqueles que, em suas casas, na Leitura orante da Bíblia e no cultivo da delicadeza de consciência, dizem sempre que vieram para fazer a vontade do Pai. Há religiosos que são exemplo de fidelidade a Deus. Todas essas palavras, no entanto, sem paixão por Cristo são flatus vocis…
13. Finalmente o mundo dos relacionamentos, da valorização ou da coisificação do outro, mundo dos relacionamentos sexuais de qualquer jeito e de qualquer modo, aberrações e dramas, infidelidades e duplicidade de vida… e os religiosos emitem um voto de castidade consagrada. A castidade é a terapia dos relacionamentos. Todo amor seja ele religioso ou conjugal deve crescer na transcendência, na capacidade de esquecer-se para fazer-se dom para o outro. Como são miseráveis essas relações sexuais de qualquer jeito. O mistério pascal está inscrito em toda forma de vida, na do casado como na do celibatário. O celibato é terapêutico porque tende a transformar o amor egocêntrico num amor dom. “Através da renúncia à vida conjugal e à paternidade-maternidade opera-se na vida do religioso aquela transformação que se opera no interior do matrimônio através da acolhida da diferença do cônjuge, realidade pela qual o eu narcisista é crucificado e faz prevalecer o dom de si.
14. Os conselhos evangélicos, que se destinam a todos os cristãos, mas que de modo particular informam a vida dos religiosos, são uma terapia capaz de salvar o homem das tentações mais profundas e perigosas, que o levam à verdadeira morte, para restituir-lhe a dignidade de filho de Deus. Por ter a convicção de ser um filho amado que o cristão pode não se deixar levar pela tentação da posse, do poder e do amor captativo e egoísta para empreender a aventura do amor verdadeiro. Precisamente porque filho o ser humano pode descobrir que a passagem através da ausência, da falta, do vazio, das coisas pequenas são experiências apenas aparentemente limitadoras, quando na verdade se revelam como meios através dos quais a capacidade de desejar se dilata, e a de amar se regenera. Para tanto, os que querem seguir os conselhos precisam ter experimentado a paixão pela pessoa de Jesus, o pobre feliz, o obediente delicado e o amoroso para com o Pai, seu único amor… Quem puder compreender, que compreenda…
15. Os conselhos evangélicos não podem, pois, ser interpretados e compreendidos fora da dinâmica das relações. Não são apenas meios de cultivo de espiritualidade. Constituem uma modalidade através da qual é possível viver como batizados, como seres ressuscitados, para sermos assim introduzidos naquela “vida escondida com Cristo em Deus” (Cl 3,3) de que fala São Paulo. Somos convidados a viver em fraternidade, a usar dos bens na singeleza, a não sermos superiores a ninguém e a viver um amor especialíssimo com o Esposo.
16. Espero que a irmã que estava preparando o doce de abóbora com coco tenha sido bem sucedida em seu labor. Pode ser que ele tenha ajudado a fazer com que a reunião das irmãs à noite tenha tido um ar de maior cordialidade. Talvez alguns possam olhar para aquela fraternidade e simplesmente dizer: “Como as irmãs se estimam!” Espero que o religioso que chegou a casa depois do curso de espiritualidade torne Deus mais visível para nós. Espero que a vida as irmãs carmelitas de Petrópolis, vida escondida com Cristo em Deus, seja também nossa vida de franciscanos da Imaculada. Os que seguem de verdade os conselhos evangélicos não são funcionários de uma organização mas seres felizes e leves que enfeitam a vida da Igreja.
Questões que ficam… e que podem ser debatidas
1. Será que realmente os conselhos evangélicos são uma terapia para o mundo de hoje? Há pessoas interessadas em tal tratamento? Quais as doenças dos nossos tempos que são curadas com os conselhos? Quais são as doenças e como podem ser curadas?
2. O que significa, de fato, viver pobremente numa fraternidade?
3. Podemos dizer que andamos perscrutando a vontade de Deus em nossas vidas? Como ela anda se manifestando? Francisco dizia que não queria viver fora da obediência. O que isso quer dizer?
4. No mundo há aberrações no campo da sexualidade, seduções estranhas e assédios a crianças. O que colocamos, de verdade, atrás do voto de castidade consagrada? Como uma fraternidade é enriquecida com a vivência do conselho de castidade perfeita?

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Família Bernardone: Pedro, Pica, Francisco e Ângelo.


Pedro Bernardone tinha loja em Assis e se dedicava não à produção de tecidos de lã, mas ao comércio de tecidos de luxo. Mesmo que ignoremos os aspectos específicos e particulares desta atividade, o fato de Pedro Bernardone viajar para a França nos indica a importância dela: era importador de tecidos de luxo que, depois, os revendia com larga margens de lucro. Ao que parece, foi um respeitável homem de negócios, aquele que iniciou a fortuna da família, e que foi perpetuada mesmo após sua morte, já que Ângelo, seu outro filho, atestado por documentos do século XIII, e depois os seus netos, tiveram larga disponibilidade financeira e várias casas. A riqueza material era acompanhada pelo pai do santo por intenso amor ao dinheiro, por uma atividade intensa que chamamos análoga, senão idêntica, em outros comerciantes de seu tempo. É precisamente esta mentalidade que, no confronto entre pai e filho, causará desprezo a Pedro Bernardone, com acusações de dureza de coração, de incompreensão, de malvadez. O que sabemos dele, considerando a indicação documentada, se apóia nos biógrafos do santo, homens da igreja que continuam a tradição segundo a qual a atividade mercantil está associada ao pecado.
Esta mentalidade capitalista devia incluir a capacidade de ler, escrever e fazer contas, acompanhada de um conhecimento, embora elementar, de latim: era costume que os escrivões escrevessem em latim, pois na segunda metade do século XII as conclusões de negócios, compras e vendas eram redigidas em latim. As viagens de negócios devem te-lo forçado a aprender francês e, com ele, deve te-lo aprendido o filho Francisco, que – como nos dizem com absoluta concordância de todas as fontes – gostava de cantar em francês.
Sabe-se menos ainda sobre sua mãe. O nome Pica aparece bastante tarde e, em todo caso, nunca nas fontes mais dignas de fé em questões relativas a Assis, como a Legenda trium sociorum. Ainda mais tardia é a informação que possua origem provençal, assim como outra que diz ser proveniente de Lucca. Todos esses dados que fogem à capacidade atual de qualquer demonstração objetiva e inequívoca, enquanto outros, como o cuidado com a saúde frágil de seu filho e sua demonstração de afeto, parecem condizer com os fatos. Pica é quase sempre representada positivamente pelos biógrafos – nesse ponto, somente Tomás de Celano faria surgir algumas dúvidas, cujos limites, já delimitamos no que diz respeito ao seu juízo à família de Francisco.
Os biógrafos apresentam-nos, ainda, o irmão Ângelo, mas apenas para dizer-nos de sua avidez e seu desejo de recuperar o que Francisco, em seu louco desejo de doar, parecia dilapidar.


MANSELLI, Raoul. São Francisco. Editora Vozes: Petrópolis, 1997.
Por Frei Fernando de Araújo, OFMConv
Ainda hoje, o mundo contempla os ensinamentos deixados por Francisco de Assis. A sua relação com Deus e com os homens mostra como ele entrou na dinâmica do verdadeiro encontro consigo e com outro. A partir da descoberta do profundo amor de Deus, que se manifestou de forma concreta na encarnação do verbo, Francisco começou a traçar um caminho que conduz o homem à verdade de si mesmo e do outro. Por isso, podemos falar de uma pedagogia de Francisco de Assis.
Podem-se encontrar autores que se deparam com essa pedagogia e mostram a sua atualidade para o homem pós-moderno. Um deles é Max Scheler, fundador da fenomenologia dos valores, que via em Francisco de Assis alguém que ousou realizar uma síntese dentro de um processo vital, que é a mística do amor omnimisericordioso, acósmico e pessoal. Via nele um homem que não olhava só para baixo, mas também para cima. O que Scheler afirma é que Francisco soube conviver muito bem com as realidades humanas e divinas. Francisco partiu do humano para chegar ao divino. Por isso, ele traz Deus para junto de seu povo. O Deus de Francisco é um Deus que caminha com seu povo e que quis estar junto dos seus por meio de seu Filho Jesus Cristo.
Para Scheler, ao superar os limites da criatura e do mundo, Francisco cria uma síntese de tal forma que as dimensões humana, pessoal, fraterna e religiosa e as dimensões criatural e cósmica concorrem para dar origem ao momento utópico da harmonização global. É a harmonia entre Deus, natureza e homem. Por isso, Francisco foi capaz de louvar o criador por toda a obra da criação.
Olhando a vida do santo, podemos perceber os traços de seus ensinamentos nos seguintes acontecimentos: quando procura o sultão e gera a possibilidade do dialogo; no encontro com o lobo de Gúbbio, que despertou o desejo de paz; na vivência da pobreza, que possibilitou a liberdade e que gerou no ser humano a gratuidade da qual brota o amor e o perdão; na relação com a criação, que gera a responsabilidade pela ecologia; e na acolhida da morte, como uma reconciliação global. Por tudo isso, a pedagogia do santo de Assis é tão atual e ao mesmo tempo desafiadora. A visão de Francisco foi uma visão do ser humano e a capacidade de cada criatura se relacionar com Deus e com toda sua criação.
Em seu livro Francisco de Assis: um caminho para educação, frei Orlando Bernardi, OFM, afirma que a grande revelação franciscana, ou seja, a grande pedagogia de Francisco de Assis foi perceber no leproso o caminho que conduz a Deus. Naquela cena, acontece o encontro com uma das criaturas mais temidas de seu tempo. Ao se deparar com o leproso, Francisco começa a fazer um encontro consigo mesmo, porque vendo a miséria do outro consegue perceber que também é um homem com fragilidades e debilidades. Enxerga que poderia estar naquela mesma situação. Assim, descobriu no leproso um ser humano igual a todos e digno de ser abraçado e beijado. Desse modo, o encontro com o leproso se torna uma verdadeira revolução antropológica, é uma nova descoberta do homem realizada por Francisco.
Frei Orlando, explicando o encontro de Francisco com o leproso, mostra que Francisco teve misericórdia e que manifestou o vivo amor que ardia em seu coração. Ele experimenta a misericórdia como uma força misteriosa e surpreende, que se abriga no coração humano e que transforma o amargor em doçura de corpo e alma. Além disso, ela possui a capacidade de revelar a grandeza do humano frente à mais deprimente das situações da vida.
Tudo isso aconteceu porque a maneira de agir de Francisco foi diferenciada. O que prevalecia nos seus ensinamentos era um caminho comum, onde todos tinham oportunidade de crescerem no verdadeiro seguimento de Jesus Cristo. Aqui se pode acrescentar que a fraternidade franciscana é totalmente antropológica e que tem por finalidade buscar o sentido da vida e realização humana.
É muito importante ter em mente que o caminho percorrido pelo pobre de Assis foi de profundas experiências humanas. Estas o levaram a fazer verdadeiras experiências místicas. Ele soube viver o seu tempo e também transformá-lo. Diante dos acontecimentos, ele traçou planos que visavam levar homens e mulheres a procurar alternativas para as situações mais insustentáveis, por tomarem consciência de que são pessoas amadas por Deus. Fez tudo isso, seguindo o caminho fixado no Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, porque o livro de sua pedagogia foi o Evangelho.
Assim, pode-se perceber que toda pedagogia de Francisco está no empenhar-se com todas as forças em ser fiel a Cristo e seu Evangelho. Assim, o homem pode ser fiel e a si mesmo para conseguir manter o seu propósito desde a experiência de Jesus Cristo, pobre e crucificado. Ele também apontou caminhos que ainda hoje precisam ser observados para superar certos conflitos existentes. Deste modo acontecerá a construção do Reino de Deus. O ponto de partida é a descoberta do ser humano com toda sua grandeza, mas ao mesmo tempo com sua fragilidade. Porque foi no abraço do leproso que Francisco descobriu o ser humano em toda sua miséria e grandeza. Foi com o leproso que se manifestou a presença da fragilidade e da força que sustenta a esperança e alimenta o futuro. Uma característica da espiritualidade franciscana é perceber a presença de Deus nos pobres e todos aqueles que vivem à margem da dignidade humana.
O grande ensinamento que o poverello de Assis apresenta ao mundo moderno é a capacidade de sonhar com dias melhores e que outra sociedade é possível, baseada unicamente na pratica do amor. Ele apresentou Jesus Cristo como o formador dos sonhos e das utopias humanas, capaz de garantir a possibilidade de todos viverem em busca do verdadeiro ideal de uma fraternidade universal, que é um sonho que se pode realizar.
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Referências Bibliográficas:
BERNARDI, Orlando. Francisco de Assis: Um Caminho Para a Educação. Editora Universitária São Francisco/IFAN: Bragança Paulista, 2002.
MERINO, J. Antônio. Humanismo Franciscano – Franciscanismo e Mundo Atual. FFB: Petrópolis, 1999.

Ilustração: Altarpolyptychon von San Francesco in Montefiore dell’ Aso, linke äußere Aufsatztafel: Hl. Franziskus / Carlo Crivelli. ca 1470. Extraído de http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Carlo_Crivelli_012.png acesso em 4 ago. 2009.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

UMA LEITURA ALTERNATIVA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS.



Frei Celso Márcio Teixeira, OFM*
Petrópolis - RJ
    
Uma leitura que se tornou comum desde o início do século XX é a chamada sabateriana. O adjetivo “sabateriana”, termo familiar aos estudiosos de franciscanismo, provém do sobrenome de Paul Sabatier. Este pesquisador, a partir do final do século XIX, se destacou como um dos grandes estudiosos de Francisco de Assis, contribuindo decisivamente para os estudos em torno deste santo, a ponto de podermos dizer com propriedade que suas conquistas constituem um marco divisório nas pesquisas sobre o tema. Foi com Sabatier que as investigações de caráter histórico sobre Francisco de Assis ganharam notável impulso. Além de editar criticamente textos antigos sobre São Francisco, escreveu Vie de Saint François d’Assise, sua obra mais famosa e não menos polêmica. Fundou coleções de publicações sobre o santo de Assis, dentre as quais as conceituadas Collection d’Études e des documents sur l’histoire religieuse et littéraire du moyen Âge e Opuscules de critique historique. Fundou também a Sociedade Internacional de Estudos Franciscanos, com sede em Assis, aberta aos estudiosos de franciscanismo de todo o mundo, com congressos anuais. Seus méritos são incontestáveis, tendo sido ele um dos primeiros a fazer a leitura do Francisco-homem, de preferência à leitura do Francisco-santo.
Mas o que caracteriza a leitura sabateriana não é a abordagem de Francisco-homem, mas seus pressupostos. Nossa tentativa será a de fazer uma leitura alternativa à de Sabatier.
1. Leitura sabateriana
O notável pesquisador fez uma leitura muito própria de Francisco de Assis. Pelo fato de ter sido ele o inaugurador dessa leitura ou, pelo menos, o que a aplicou a Francisco, é que preferimos denominá-la de leitura sabateriana. Ela, porém, não terminou com a morte do grande estudioso, mas foi retomada por estudiosos imediatamente posteriores a ele e ainda é praticada por estudiosos e escritores de hoje, caracterizando uma maneira muito comum de abordagem da figura do santo de Assis.
Daí as perguntas: Basicamente, em que consistiria esta leitura? Quais os seus pressupostos fundamentais? Que implicações poderia ela trazer? Comportaria uma modificação da imagem de Francisco? Que imagem de Francisco ela nos apresenta?
Sem dúvida, uma leitura ou interpretação comporta uma imagem que é transmitida. Inevitável e inconscientemente, quando fazemos uma leitura de um personagem como Francisco de Assis, acabamos por projetar nele nossas próprias atitudes, anseios, lutas, problemáticas. Colocamo-nos de tal modo na “pele” dele que o fazemos pensar como nós pensamos, desejar o que nós desejamos, julgar como e o que nós julgamos. Isto, porque nunca conseguiremos desvencilhar-nos de nosso subjetivismo. Jamais alcançaremos a pura objetividade. Importante, no entanto, é ter sempre presente que nossa leitura não coincide absolutamente com a realidade lida, mas representa apenas uma busca da objetividade, um esforço de aproximação da realidade a ser lida ou interpretada. Portanto, qualquer leitura deve ser relativizada, inclusive a que nós nos propomos neste pequeno estudo.
No entanto, embora a objetividade absoluta seja inalcançável (não é o que se pretende aqui), existem abordagens que mais se aproximam e outras que mais se distanciam da realidade lida. O que nos pode garantir uma maior aproximação da objetividade é o uso criterioso e crítico das fontes e o recurso à história, embora saibamos que estas, por sua vez, foram escritas sempre a partir de subjetividades, dentro de contextos sócio-culturais determinados e determinantes.
a) O pressuposto de Paul Sabatier
O pressuposto de Sabatier é que Francisco e a Igreja são polos diametralmente opostos e em permanente tensão. De um lado, Francisco vive de uma maneira que se contrapõe à maneira da Igreja; e, de outro lado, a Igreja procura sufocar a novidade franciscana e, não o conseguindo, faz todo o possível para dominá-la através de uma aprovação jurídica, tendo como finalidade controlá-la e manipulá-la para alcançar seus próprios interesses e colocar a nova Ordem a serviço de sua política. Nessa leitura, não é Francisco que tem a iniciativa de dirigir-se à Igreja para buscar nela proteção e orientação, mas é a Igreja que pretende absorver e neutralizar os questionamentos, contestações e impactos que esse homem pobre estava apresentando por seu modo evangélico de vida. Na busca de seus objetivos, a Igreja, na pessoa do cardeal protetor e utilizando alguns frades letrados, exerce sobre Francisco constante pressão para que o movimento franciscano se curve às pretensões dela.
A leitura de antonímia, isto é, por meio de opostos, oferece o risco de santificação de um polo e de demonização do outro. Fundamentalmente, trata-se de uma leitura maniqueísta. Estabelece-se como método básico de leitura a oposição bem-mal, luzes-trevas, graça-pecado, trigo-joio, como se a realidade humana se dividisse nitidamente em dois campos antagônicos e irreconciliáveis e como se esses campos nunca se mesclassem e se interpenetrassem. Esquece-se que a experiência nos mostra que a realidade humana comporta contradições, que o ser humano é um ser de contradições, pois é, ao mesmo tempo, trigo e joio, luz e trevas, santo e pecador.
b) A utilização das fontes
A partir desse pressuposto fundamental, Sabatier vê nas primeiras fontes hagiográficas surgidas no âmbito da Ordem franciscana o dedo da Igreja. Por ter sido a primeira hagiografia escrita a pedido do papa, ele de antemão a rejeita sistematicamente, bem como outras que dela dependem, sem sequer entrar no mérito delas. Pelo fato de essas hagiografias tecerem elogios ao papa e ao cardeal Hugolino e mostrarem uma imagem positiva de certos personagens da Ordem, como Frei Elias, ele conclui que elas não são fidedignas. Dá, então, preferência a fontes tardias do final do século XIII e início do século XIV que espelham não tanto o contexto de Francisco, mas o de grupos extremistas que começaram a surgir dentro da própria Ordem franciscana a partir da metade do século XIII.
É verdade que ele insiste em que a prioridade cabe aos escritos de São Francisco. Mas a leitura dos escritos de Francisco é feita por ele dentro e a partir do mesmo pressuposto. Apenas para citar um exemplo: Sabatier vê no Testamento de Francisco um inconsciente insurgir contra a Regra definitiva. Segundo seu modo de ler, a Igreja, ao confirmar a regra franciscana por meio de uma bula papal, “teria aprisionado” a iniciativa evangélica da Ordem franciscana. O Testamento de Francisco, protestando contra a confirmação-estratificação da regra, retomaria os ideais de Francisco anulados pela bula papal. Esta leitura contradiz o próprio texto do Testamento, em que o santo explicitamente afirma que este não se opõe nem se coloca acima da regra, mas é apenas uma exortação para que a regra seja mais catolicamente observada.
c) A imagem de Francisco
Uma primeira imagem que se infere da leitura sabateriana – e aqui não se compreende apenas a leitura feita por Sabatier unicamente, mas por muitos que percorrem a sua trilha – é a de um Francisco ingênuo que, em sua simplicidade e humildade, se deixa manipular pelas autoridades eclesiásticas e se lhes submete como um cordeiro indefeso diante de um lobo voraz; a de um Francisco sem fibra diante de frades que se impõem e fazem da Ordem o que bem entendem; a de um Francisco incapaz de conduzir os destinos da Ordem, o qual deve ceder às pressões dos frades, especialmente dos letrados, e modificar a regra de acordo não com sua vontade, mas para atender aos interesses deles.
Outra imagem resultante desta leitura é a de um Francisco reformador da Igreja e da sociedade, segundo o modelo de Lutero ou de Calvino, o qual, porém, não conseguiu seu intento, pois a Igreja teria sido bastante hábil, absorvendo-o dentro da “oficialidade” para anular-lhe o impulso renovador e quaisquer pretensões de reforma. Uma justificativa talvez para o fato de Francisco não ter passado à história como um crítico reformador da Igreja e da sociedade, ou como um irreverente contestador, ou talvez até mesmo como um renitente herege.
Ainda outra imagem é a de um Francisco vítima não apenas das manipulações de poder por parte da Igreja, mas também das incompreensões e rebeldia dos frades, como se estes se conspirassem contra ele, no intuito de colocar a Ordem em caminhos contrários às opções das origens. E a redação da regra bulada seria o resultado das manobras dos frades, contra a vontade de Francisco.
2. Considerações críticas
Antes de apresentarmos uma leitura alternativa, faz-se necessário tecer, ainda que brevemente, algum comentário ou consideração às posições de Sabatier com relação aos três itens abordados: pressuposto, utilização das fontes e imagem de Francisco.
a) Quanto ao pressuposto – Pressupostos podem ser evidentes, porque devidamente provados, menos evidentes e não evidentes. Nos dois últimos casos, eles têm que ser fundamentados, as afirmativas justificadas, e as conclusões comprovadas. Deve-se levar em conta aquele princípio básico da lógica que diz: quod gratis affirmatur gratis negatur. Este princípio adverte que tudo aquilo que é afirmado gratuitamente, sem comprovação, é passível de negação gratuita. Portanto, sem uma comprovação suficiente dos pressupostos, corre-se o risco de uma leitura puramente hipotética, perpassada de suspeições, na qual prevalece não tanto a realidade lida, quanto o subjetivismo de quem a lê e interpreta. E a hipótese, em qualquer campo da ciência, é “verdade” a ser comprovada.
b) No que concerne à utilização das fontes – A rejeição apriorística das primeiras hagiografias, igualmente sem uma comprovação que a justifique, negando-lhes sem mais a fidedignidade, não deixa de caracterizar-se como posição de puro subjetivismo. E, curiosamente, as fontes tardias que a leitura sabateriana utiliza também não lhe dão respaldo em seu pressuposto fundamental.
É claro que as primeiras hagiografias, como quaisquer outras, espelham a ótica de seus escritores com todos os seus condicionamentos sócio-culturais. A rejeição de um grupo de fontes por causa de subjetivismos levaria coerentemente à rejeição de toda e qualquer fonte.
Além do mais, não se pode esquecer que os primeiros hagiógrafos estavam sob o controle da comunidade, isto é, eles não podiam inventar ou falsificar os dados, pois aqueles que viveram com Francisco ainda estavam vivos. Interessante é que Frei Leão, companheiro de Francisco e apontado por Sabatier como o legítimo hagiógrafo dele em oposição aos primeiros, em uma carta escrita em Gréccio em 1246, atesta, juntamente com Ângelo e Rufino, a fidedignidade das primeiras hagiografias. Literalmente se diz na carta: “há algum tempo foram redigidas legendas de sua vida... em linguagem tão verídica quão elegante”.
c) Com relação à imagem de Francisco – Uma primeira consideração a ser feita é a de que Francisco era filho de Pedro Bernardone e herdara do pai a tenacidade. Se ele enfrentou o pai de igual para igual, é porque tinha a mesma têmpera, sem temer as consequências (ser deserdado pelo pai, sem sequer levar consigo a roupa do corpo). Na leitura sabateriana, não sobressai aquele Francisco vigoroso que, em 1209, ainda desconhecido, se dirigiu a Roma para pedir aprovação de sua “forma de vida” e, questionado sobre a dificuldade de seu propósito, o defendeu sem concessões, recusando com consciência e firmeza a proposta do cardeal encarregado de encaminhar ao papa os pedidos de aprovação de regras religiosas. E manteve, na mesma ocasião, esta firmeza diante do papa Inocêncio III, firmeza mostrada também ao bispo de Assis que lhe propusera adquirir propriedades como as Ordens monacais. A imagem de um Francisco manipulável não condiz com o que algumas fontes tardias narram sobre ele em episódio, a ser datado dez anos depois ou pouco mais, em que, diante de um pedido de alguns frades letrados com relação à regra, apresentado pelo cardeal Hugolino, o santo mostrou a mesma inflexibilidade de 1209. Noutra ocasião, ao mesmo cardeal Hugolino, que queria nomear alguns frades como prelados da Igreja, Francisco respondeu com humildade, mas também com firmeza: “Quero que meus frades deem frutos na Igreja em sua condição de menores, não como prelados”.
Com esta resposta, cai por terra também a imagem de Francisco-reformador. Se ele quisesse ser um reformador da Igreja, ele próprio promoveria estrategicamente seus frades a cargos de influência. A minoridade franciscana, de fato, não condiz com a pretensão de tornar-se reformador da Igreja ou da sociedade.
Quanto a Francisco-vítima, trata-se de uma imagem transmitida muito sutilmente pelas fontes tardias, especialmente quando estas mostram Francisco como que doentiamente ocupado em lamentar e em recriminar os maus comportamentos dos frades. Sem dúvida, havia maus frades naquela época, como sempre os houve e há. Certamente Francisco sofria ao ver abusos, ao constatar a defasagem entre ideal proposto e realidade vivida. Mas deduzir disto uma conspiração dos frades contra Francisco é tirar conclusões que as premissas não permitem. Concluir que a regra bulada foi redigida à revelia de Francisco ou por pressão dos frades é advogar um complexo de perseguição ao santo.
3. Uma leitura alternativa
Ao iniciar seu processo de conversão, Francisco não pensava em fazer oposição a ninguém nem a nada. Motivo para recriminar a Igreja e a sociedade da época ele tinha em profusão. Ele próprio reconhecia que a Igreja tinha seus pecados e que a hierarquia estava caminhando à distância do Evangelho e, algumas vezes, na contramão do Evangelho. Ele tinha inteligência suficiente para perceber a realidade eclesial que o cercava. Prova disto é que em seus escritos ele faz alusão ao pecado do clero. Mas em lugar nenhum de todos os seus escritos se percebe qualquer indício de que ele se propunha, a si e aos frades, a tarefa de reformar a Igreja e a sociedade. Em lugar algum dos seus escritos se percebe o mínimo sinal que pudesse sugerir que ele fizesse oposição à Igreja como um todo ou à hierarquia. Pelo contrário. Chegou a afirmar que, mesmo sendo pecadores, os membros da hierarquia eram seus senhores. Aliás, se Francisco quisesse fazer oposição à Igreja, ter-se-ia tornado de início um herege, caminho mais fácil e coerente para a oposição naquela época.
Quando ele se dirige à Igreja para pedir aprovação de sua “forma de vida”, tem plena consciência de que seu propósito constitui uma alternativa, não uma oposição. Se fosse oposição, como entender que pedisse aprovação exatamente ao suposto adversário?
De sua parte, a Igreja o questiona, propondo-lhe os caminhos já existentes, a saber, que ele vivesse com seu grupo uma das regras antigas. Não se trata de querer manipular desde o início o propósito de Francisco e de seu grupo, mas de um procedimento normal, em que se questiona o que se propõe como específico e se discutem os detalhes da vida, tais como sobrevivência, trabalho, organização do grupo, possibilidades e maneiras de aceitação de novos membros, presença e atuação dentro da Igreja, etc. Trata-se de uma negociação. E é possível que em matéria de somenos importância Francisco tenha cedido às sugestões de quem o questionava. Pequenos acertos necessários para dar consistência e coesão organizativa ao grupo, uma ajuda antes que uma manipulação. Alegar que a Igreja os manipulou por se tratar de pessoas ignorantes, é desconhecer a realidade do grupo. Três dos doze frades que compunham e que estavam à frente do grupo podiam não ter grandes estudos, mas eram pessoas experientes. Francisco tinha experiência do comércio, sabia negociar; Bernardo de Quintavalle era um homem rico, certamente não devia ter sido tão ignorante; Pedro Cattani era formado em Direito.
Interessante é observar que o cardeal encarregado desses questionamentos foi considerado pelos frades da primeira hora não como adversário que os queria sufocar, mas como “cardeal protetor” da Ordem, consistindo sua ajuda não somente nesses questionamentos iniciais, mas principalmente na defesa da novidade que ele assumiu diante do colégio dos cardeais reunidos em consistório.
E a Igreja compreende e aprova o diferente de Francisco como caminho alternativo, não como oposição. Com toda a certeza, não o teria aprovado, se tivesse visto nele uma oposição. Mais ainda, teria proscrito o grupo como um bando de hereges, como soía acontecer. Pelo contrário, deixou liberdade ao grupo para que explicitasse melhor os caminhos a percorrer, pois a Igreja também era consciente de que se tratava de algo realmente novo.
A aprovação, porém, não significava ausência de conflitos. Certos setores da Igreja, como bispados e paróquias, viam o caminho alternativo de Francisco com desconfiança e suspeita. Em algumas dioceses e paróquias, os frades eram proibidos de pregar. Em outras, eram considerados hereges ou confundidos com eles. Mas isto não significa que devamos considerar a Ordem como vítima de uma oposição sistemática da Igreja. Trata-se de um processo normal. Em qualquer sociedade, o aparecimento de um grupo diferente ou de uma proposta alternativa causa estranheza a certos setores. E a inserção de um grupo novo na sociedade não se dá sem arranhões. E o grupo novo tinha a tarefa de encontrar na Igreja e na sociedade o seu espaço e desempenhar seu papel específico, caso contrário, ou se colocaria à margem da sociedade ou teria que abandonar o caminho alternativo. Trata-se, portanto, de processos históricos absolutamente normais. Com a Ordem franciscana não se deu de modo diferente.
Conclusão
A leitura alternativa apresenta um Francisco também alternativo, no sentido de que ele propôs um caminho alternativo de vida evangélica. Ele não pretendeu substituir nada do que já existia nem opor-se a instituição alguma; nem fazer um caminho paralelo, como foi, por exemplo, a reforma luterana, mas inserir-se na instituição existente; nem impor-se como o único caminho válido, mas respeitando a pluralidade. Ele deu sua contribuição própria, sem tornar-se reformador.
Esta leitura evita dramatizações que se criaram em torno de Francisco e liberta-o da síndrome de vítima que comumente se lhe atribui ou sob a qual ele é interpretado (vítima de conspiração dos frades e das manipulações da Igreja). Reconhece que houve conflitos nas relações com setores da Igreja, que ele sofria quando seus frades não viviam de acordo com as opções de origem, mas considera isto como processo histórico normal.
Apresenta um Francisco não ingênuo, mas inflexível no essencial; iletrado, mas suficientemente experiente e capaz de propor e de defender seu propósito diante da autoridade máxima da Igreja.
Enfim, esta leitura prefere valorizar Francisco pela sua vida a engrandecê-lo por supostas perseguições sofridas.
Texto publicado na Grande Sinal de setembro/outubro 63/2009/5
* Frei Celso Márcio Teixeira é da Ordem dos Frades Menores, doutor em Espiritualidade atualmente leciona Teologia Espiritual e Espiritualidade Franciscana na Faculdade de Teologia - ITF. 
Fonte: Http://www.franciscanos.org.br/itf/artigos/2011/011.php

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

JESUS CRISTO EM S. FRANCISCO.


Por  Fr. David de Azevedo OFM


Fonte cadernos franciscanos paginas edição 35 paginas 18 -25
JESUS CRISTO EM S. FRANCISCO
O documento “Declaração sobre a Vocação da Ordem nos Dias de hoje”, produzido pelo Capítulo Geral da Ordem dos Frades Menores celebrado em Madrid em 1973, declara logo no início: ―No centro da vida franciscana encontra-se a experiência de fé em Deus no encontro pessoal com Jesus Cristo. É o que atestam os escritos de Francisco e outros textos. Sob qualquer aspecto que se aborde – oração, fraternidade, pobreza, presença no meio dos homens – todo o projeto evangélico nos remete continuamente para a fé. (n. 5). A palavra principal é: ―encontro pessoal.
Verdadeiramente a Pessoa de Jesus é a fonte, o centro e o segredo da vida de S. Francisco; e deveria ser também o coração de toda a experiência franciscana, Francisco não teve em vista qualquer problema de apostolado: combater os albigenses ou restaurar a santidade do Povo cristão. Nem tão pouco um problema espiritual: promover a sua santificação pessoal ou definir e estruturar um perfil de santidade. Tudo brotou espontaneamente de uma paixão de amor por Jesus. Foi uma vivência totalmente centralizada na Pessoa de Jesus. Uma relação de amor. Não uma relação de interesse, fosse este em favor da Igreja em geral, fosse em favor do aperfeiçoamento pessoal seu ou dos outros. Esta postura, indispensavelmente de relação pessoal tem depois reflexos práticos na sua vida e impulsos revolucionários quer no que se refere à vida dos indivíduos, quer no que se refere ao conjunto da humanidade como tal. É decisivo, porém, tanto para a renovação da Ordem, como para a formação dos novos franciscanos, ter consciência do ponto de partida que se toma: se o funcional – ver a Ordem em função da Igreja -; se o relacional – ver o franciscanismo como relação de amor. Ter consciência de que a grande prioridade é a relação de amor. Também para a felicidade dos homens.
Vamos limitar-nos aos Escritos de S. Francisco, embora abertos a alguns testemunhos dos seus biógrafos. Demorar-nos-emos, primeiro, a contemplar a paixão amorosa de Francisco por Jesus; depois, os mistérios de Jesus mais vívidos por Francisco; e, finalmente, esboçaremos alguns traços do perfil de Jesus.
A Paixão Amorosa de Francisco por Jesus
Depois dos primeiros passos da sua conversão, é a Pessoa de Jesus que surge imediatamente diante do olhar infantil e extasiado de Francisco. A Pessoa de Jesus em primeiro plano: grande, linda, luminosa, encantadora, avassaladora. Tudo o mais se esbate e perde na sombra. Fica só ela. Os problemas sociais e religiosos do mundo de então, os pecados e as preocupações da Igreja, as inter-rogações da inteligência e as opiniões dos teólogos, os problemas pessoais dele, sonhos de grandeza e tribulações do espírito – os seus problemas interiores, sobretudo – tudo isso passa para segundo plano ou fica como que perdido no vazio da memória que de repetente se forma. São Boaventura, referindo uma aparição do Crucificado anterior à que aconteceu na capelinha de S. Damião, parece acentuar este aspecto puramente pessoal do encontro de Francisco com Cristo. Não há ali a preocupação da igreja que ameaça ruína, como na visão de S. Damião, mas tão-só a presença de Jesus. (FV p. 21). Tomás de Celano, igualmente, captou bem este segredo da experiência de Francisco: ―Toda a sua alma tinha sede de Cristo. O Cristo votava, não apenas o coração, mas todo o corpo (2 C94). E na Vida Primeira: ―Os irmãos que com ele viveram sabem como a toda a hora lhe aflorava aos lábios a recordação de Jesus e com que enlevo e ternura sobre ele discorriam (…). Que intimidades as suas com Jesus! Trazia Jesus no coração, Jesus nos lábios, Jesus nos ouvidos, Jesus nos olhos, Jesus nas mãos, Jesus presente em todos os seus membros! (1 C 115).
Mas voltemos a S. Francisco. A sua paixão transparece primeiro na própria maneira de falar, nos nomes que dá a Jesus e na emoção que lhes acrescenta servindo-se de adjetivos de encanto. O nome mais freqüente é ―Nosso Senhor Jesus Cristo”, que aparece pelo menos quarenta e cinco vezes, com freqüência aquecido com os adjetivos “santíssimo”. Em contexto eucarístico: ―Santíssimo Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo” (8 vezes); e noutros: ―Mãe do nosso santíssimo Senhor Jesus Cristo” (OP, antífona); ou “altíssimo”: “quero seguir a vida e a pobreza do nosso altíssimo Senhor Jesus Cristo (UVC).
Outro nome muito freqüente é o de “Filho de Deus” (Umas 25 vezes). Também este enriquecido com adjetivos ardentes. “Teu dileto Filho”(PPN 6;OP 7, 3; 15, 3; Ex 5, 1); ―Teu amado Filho” (PPN 7; OP 9, 2; SVM 2; 1 R 23, 5; T 40) Teu filho muito amado” (1 R 23, 6).; ―Teu santíssimo e dileto Filho” OP antífona); ―seu Filho bendito e glorioso”(2 CF 11); “Cristo, Filho de Deus vivo” (CO 26; 1 R 9, 4); “Deus e filho de Deus”(CO 27) “verdadeiro Filho de Deus”(Ex 8); “Altíssimo Filho de Deus”(T 10); “Teu único Filho”(1 R 23, 1). E outros semelhantes.
A emoção, porém, tem mais força e mais ternura quando se lê o texto seguido. Só dois. Na Segunda Carta aos Fiéis, ao referir-se à Anunciação, conta: ―O Pai altíssimo, pelo seu arcanjo S. Gabriel, anunciou à santa e gloriosa Virgem Maria, que esse Verbo do mesmo Pai, tão digno, tão santo e glorioso, ia nascer do céu a tomar carne verdadeira da nossa humana fragilidade em suas entranhas. E sendo Ele mais rico do que tudo quis, no entanto, com sua Mãe bem-aventurada, escolher vida de pobreza (2 CF 4-5). E na primeira versão da mesma carta, referindo-se a Jesus: ―Oh! Como é glorioso ter no céu um Pai santo e grande! Oh! Como é santo ter tal esposo, consolador, belo e admirável! Oh! Como é santo e amável ter tal irmão e tal filho, agradável, humilde, pacífico, doce e mais que tudo desejável, Nosso Senhor Jesus Cristo, que deu a vida pelas suas ovelhas (1 CF 11-13).
Outra forma eloqüente e singela desta paixão de Francisco por Jesus era espontaneidade com que tudo lhe acordava na mente a lembrança do seu Senhor: ―Ao ver as flores, diz Tomás de Celano, imediatamente se reportava à contemplação dessa outra flor primaveril, radiosamente nascida do tronco de Jessé (1 C 81); (…) uma ovelhinha num rebanho de cabras fazia-lhe lembrar Jesus entre os fariseus (1 C 77); um vermezinho rastejando pelo chão trazia-lhe ao pensamento Aquele de quem o profeta disse ―Eu sou um verme e não um homem‖ (1 C 80); as pedras do caminho recordavam-lhe Jesus que foi a ―pedra angular; o fogo evocava no seu espírito Aquele que de si disse: ―Eu sou a luz do mundo; e assim praticamente a propósito de todas as criaturas.
Mistérios de Jesus mais presentes na alma de Francisco
Se em algum campo Francisco viveu a pobreza – a pobreza como gratuidade – foi na contemplação de Jesus. Francisco não se preocupa de si. Só vive o encanto e a gratidão de ser amado. Só vive o seu fascínio por Jesus. Devido à obsessão do pecado, a espiritualidade cristã está muito inclinada para o homem: salvação eterna, conversão moral, caminhada na perfeição… Francisco parece esquecer-se de si. Contempla Jesus. Mesmo na Paixão, não são os problemas humanos que dominam Francisco mas aquilo que Jesus viveu nesses momentos. Os mistérios mais presentes são a Encarnação, a Eucaristia e a Paixão.
Uma das originalidades de Francisco é a aproximação dos dois primeiros: a Eucaristia e a Encarnação. Não como faz S. Paulo, que relaciona a Eucaristia mais com a Paixão. Além do que contam as Legendas sobre o Natal, a Encarnação está muito presente nos Escritos de Francisco: na 2 Cf 4-18, na 2 Cf 23-29; e OP 7. 11.15.
O aspecto que mais encanta S. Francisco é a infinita descida de Deus. Tanto na Encarnação como na Eucaristia. A motivação não é primeiramente o pecado, mas a aproximação de Deus ao homem. O desejo de estar com o homem. Na Exortação 1ª: : ―Por isso, ó filhos dos homens, até quando haveis de ser de cora-ção duro. Porque não reconheceis a verdade e acreditais no Filho de Deus? Eis que Ele se humilha cada dia, como quando baixou do seu trono real, a tomar carne no seio da Virgem; cada dia vem até nós em aparências de humildade; cada dia desce do seio do Pai, sobre o altar, para as mãos do sacerdote‖ (Ex 1ª 14-18). E com maior emoção na Carta a toda a Ordem. Depois de uma exortação aos irmãos sacerdotes, exclama: ―Que o homem todo se espante, que o mundo todo trema, que o céu exulte, quando sobre o altar, nas mãos do sacerdote, está Cristo o Filho de Deus vivo! Oh! Grandeza admirável!, Oh! Condescendência assombrosa, oh! Humildade sublime, oh! Sublimidade humilde, que o Senhor de todo o universo, Deus e Filho de Deus, se humilde a ponto de se esconder, para nossa salvação, nas aparências de um bocado de pão. Vede irmãos, a humildade de Deus e derramai diante dele os vossos corações; humilhai-vos também vós para que ele vos exalte. Em conclusão: nada de vós mesmos retenhais para vós, para que totalmente vos possua aquele que totalmente a vós se dá‖ (CO 26-29). Note-se a alusão implícita ao amor esponsal. O fundo do pensamento não é o pecado, mas o amor de esposo de Deus conosco. Na Segunda Carta aos Fiéis há referência mais clara à remissão do pecado, mas a presença da Eucaristia ouve-se como uma melodia de fundo aberta pela palavra: ―sobre eles repousará o espírito do Senhor e neles fará morada e mansão” (2 CF 48-56). O mesmo pensamento na 1 R 22, 25-27.
A Paixão é contemplada principalmente no chamado Ofício da Paixão, mas também aí o que aconteceu a Jesus faz esquecer o lado humano. Francisco como que se faz possuir pela Pessoa de Jesus e é Este quem entra em diálogo com o Pai celeste. Neste diálogo é também muito significativo que Jesus pouco se lamente dos sofrimentos físicos e quase só se lamente dos sofrimentos do coração: a ingratidão e perfídia dos inimigos, ― E me tornaram o mal em paga do bem e o ódio em paga do amor (1,3.4); Armaram-me laços aos pés e encurvaram-me a alma(3, 6); ―Calcam-me aos pés.. os meus inimigos e espezinham--me todo o dia (4, 1. 2); o abandono dos amigos: ―Meus amigos e vizinhos já vinham para mim, mas pararam; e os meus parentes detiveram-se ao longe‖ (1, 7); ―Procurei quem de mim tivesse compaixão, mas não achei‖ (2,8), ―Mais que os meus inimigos, tornei-me objeto de muito opróbrio para os meus vizinhos‖ (4,8), ―Tornei-me como que um estranho para os meus irmãos, como um estran-geiro para os filhos de minha mãe‖(5,8); a humilhação: ―Tu conheces a minha humilhação e confusão e a minha ignomínia (2,6), ―O meu coração fez-se como cera a derreter-se no meu peito (6,7). Com muitas lamentações semelhantes, Jesus, pela boca de Francisco, vai apresentando seus sofrimentos ao Pai. O sofrimento físico também aparece, mas de relance e sintetizado numa ou outra palavra: ―golpes de azorrague (5,10); ―tenho os ossos desconjuntados (6,6); ―agravaram as dores das minhas chagas(6, 10).
A par do queixume, abundam outros sentimentos positivos, em expressão bela e emocionada: a prece ao Pai para que venha em seu favor; a confiança no poder e amor do Pai; o louvor ao Pai pela sua intervenção e vitória sobre os inimigos, etc. Assim em alguns salmos, principalmente a partir do salmo 7, que nos fazem captar fulgores de ressurreição: ―Gentes todas aplaudi batendo palmas… Porque o Santíssimo Pai do céu, nosso Rei desde toda a eternidade, resolveu enviar lá do alto a seu dileto Filho e Ele operou a salvação no meio da terra (7, 1. 3.); ―Cantar-Te-ei, Senhor, Pai santíssimo, Rei do céu e da terra, por me teres consolado. Tu és o meu Deus e salvador (14 1-2).
O mistério da Salvação aparece noutros muitos escritos – CO 3, CO 46; Ex. 6ª; 1 R 22, 2; 1 R 23, 3 – as mais das vezes como simples referência; mas, com um simples adjetivos, Francisco envolve o mistério de ternura e adoração. Só um texto. Na 2 Cf, depois de falar da Encarnação e da instituição da Eucaristia, entra na Paixão do Senhor com a oração no Jardim das Oliveiras, no fim da qual recorda: ―Ora a vontade do Pai foi esta: Que seu Filho bendito e glorioso, que Ele nos havia dado e que por nós nascera, se oferecesse, por seu próprio sangue, como sacrifício e hóstia no altar da cruz; não por si mesmo, por quem todas as coisas foram feitas, mas pelos nossos pecados, deixando-nos o seu exemplo para seguirmos os seus passos (2 CF 11-13). Na grande ação de graças do capítulo 23 da Regra Primeira, Francisco não esquece Jesus em nenhum dos grandes mistérios da fé: na Criação, na Encarnação, na Redenção e na Ressurreição e Juízo Final; mas se quisermos fazer uma pergunta sobre em qual deles Jesus tem maior relevo para Francisco, diremos que a Encarnação. (1 R 23, 3).
Traços do perfil de Jesus
Quais os traços principais do rosto de Jesus para S. Francisco? Não vamos demorar-nos naqueles que pertencem já à fé cristã – Verdadeira Deus, Verda-deiro Homem, Redentor, Ressuscitado – mas fixar-nos nos que estão mais ilu-minados pelo amor de Francisco. Em primeiro lugar.
Filho de Deus
Já nos referimos a este nome e dissemos que aparece umas 25 vezes, mas de forma implícita a sua presença é maior. Embora não apareça a palavra, o significado está presente na palavra Pai que S. Francisco usa tão freqüentemente. Presente duma forma singular no Ofício da Paixão, pois aí o nome Pai tem uma força muito especial pela ousadia com que Francisco a emprega substituindo a palavra Deus que estava no texto original dos salmos. Sobretudo quando acompanhada do pronome meu: ―Meu Pai santo‖ (1,5); ―Meu Pai santíssimo (2, 11).
A palavra filho não é só uma verdade dogmática, fria e exterior, mas uma expressão densa de afetividade e valor relacional. Diz que Jesus é querido, amado, envolvido de ternura… que Jesus é gerado, alimentado, sustentado na existência, segundo a segundo, pelo Pai, com a doação total do seu ser… É a mais radical forma de pobreza, pois tudo lhe vem do Pai; e, por isso, a mais inestancável fonte de gratidão. a mais radical fonte de alegria e de júbilo.
Dado pelo Pai
Outro traço que marca o perfil de Jesus é o facto de ser dado pelo Pai, verdade sentida vibrantemente por Francisco. É encantadora a Segunda Carta aos Fieis. Já oferecemos esse texto, mas repetimos: ―O Pai altíssimo, pelo seu arcanjo S. Gabriel, anunciou à santa e gloriosa Virgem Maria, que esse Verbo do mesmo Pai, tão digno, tão santo e glorioso, ia descer do céu, a tomar carne verdadeira da nossa humana fragilidade em suas entranhas‖ (2 CF 4-5). E com a mesma emoção, numa alusão explícita ao momento do dom, o Natal, no Ofício da Paixão: ―Porque nos foi dado o santíssimo e dileto Menino e por nós nasceu durante uma viagem e foi deitado num presépio (OP 15,7). E um pouco antes: ―Porque o santíssimo Pai do céu, nosso rei desde toda a eternidade resolveu enviar lá do alto a seu Filho dileto e operou a salvação no meio da terra (OP 7, 3; cf. 11, 6).
Se S. Francisco chorava de alegria ao comer umas côdeas duras porque via nelas uma dom de Deus, qual não seria a sua gratidão ao contemplar ―o santíssimo e dileto Menino que lhe foi dado pelo Pai altíssimo?!. Daqui toda a teologia de Francisco sobre o Pai e sobre a providência divina. Daqui o seu encanto por Jesus. Daqui a ternura que enche toda a espiritualidade franciscana. Jesus era um tesouro, não só pela sublimidade da sua pessoa e da sua obra redentora, mas, sobretudo por ser dado pelo Pai: ―Copiosius namque donat qui maiore corde donat‖, diz S. Boaventura. O dom é tanto maior quanto maior é o coração que dá. No caso de Jesus trata-se do coração do próprio Deus. Daqui a paixão da S. Francisco pela Eucaristia. Tinha saudades de Jesus. Daqui o seu amor pelas criaturas. Não as amava só por terem sido criadas por Deus, mas porque via nelas uma ligação íntima com Jesus. Tudo foi criado para, ―um dia, na plenitude dos tempos, tudo ser instaurado em Cristo Jesus, tudo o que há no céu e na terra (Ef. 1, 10).
Jesus Nosso Irmão
Desse amor divino nasce em Francisco o sentido da fraternidade. Os textos são vibrantes: ―Oh! Como é glorioso ter no céu um Pai santo e grande! Oh! Como é santo ter um esposo consolador, formoso e admirável! Oh! Como é santo e agradável ter tal irmão e filho, aprazível, humilde, pacifico, doce e mais que tudo desejável, que deu a vida pelas suas ovelhas‖ (2 CF 48-56). Foi esse coração divino que deu seu filho com tanta força, que comunicou ao homem sua mesma vida: ―Assim como o Pai vive e eu vivo pelo Pai, assim aquele que me come viverá por mim (Jo 6, 57). Tomás de Celano apanha com muita beleza a alma de S. Francisco ao escrever: ―Rodeava de um amor indizível a Mãe de Jesus, por ter feito nosso irmão o Senhor de toda a majestade‖ (2 C 198). Feito nosso irmão.
Esta fraternidade concretiza-se de muitos modos na convivência de Jesus com os homens, mas há duas linhas particularmente fortes: uma, em relação ao  Pai; e outra, em relação ao homem. Em relação ao Pai, a obediência; em relação aos homens, a solidariedade. Na sua obediência Jesus incorpora toda a humanidade. No drama da Paixão, desde a Oração da Agonia até ao grito “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”, toda a humanidade se tornou “humanidade obe-diente”. Quanto à solidariedade, Jesus é como que a cabeça de família. Torna--se fiador que responde por todos os seus irmãos. Ora Jesus levou esta solidariedade até ao extremo. Podia ter mudado de programa, podia ter organizado um corpo de defesa, podia ter fugido. Não o fez. Foi até à morte. A Cruz é um monumento de fidelidade, de honra, de solidariedade, de fraternidade.
Jesus Pobre
Para S. Francisco a pobreza não é a pobreza sem mais. Não pensa na pobreza como virtude ascética. Não pensa na pobreza como o mundo dos pobres. Para ele, a santa pobreza é a ―pobreza e humildade de nosso Senhor Jesus Cristo‖ (2 R 12,4); a ―pobreza do altíssimo Senhor Jesus Cristo e de sua santíssima Mãe (UVC). Diz na 2 CF: ― E sendo Ele mais rico do que tudo, quis, no entanto, com sua Mãe bem-aventurada, escolher vida de pobreza‖ (2 CF 5).
Por quê?… Porque é que o Verbo de Deus escolheu vida de pobreza?… Não sabemos. Pertence à Liberdade de Deus. Mas parece-nos que podemos fixar duas razões: uma, a verdade; outra, o sentido da pessoa. Se Jesus se apresentasse em trajes de grandeza, havia o perigo de os homens se perderem no caminho: em vez de se dirigirem e prenderem a Ele, Jesus, serem arrastados pela idolatria das grandezas materiais: a riqueza, o prestígio e o poder. Tal terá sido o significado das três tentações no deserto. Jesus afirmou a unicidade radical do Amor: ―Só a Deus adorarás. – Segunda, o sentido da pessoa. Jesus optou pela pobreza para facilitar a convivência com todos… com a pessoa de cada um: pobres, crianças, pecadores, samaritanos, gentios, etc. As riquezas, os títulos acadêmicos, as fidalguias, os cargos públicos… ou mesmo as grandezas religio-sas às vezes funcionam como biombos ou bastidores que dificultam o contacto com o homem na sua intimidade de pessoa. Ora, é na intimidade que nasce o amor.
Jesus Cristo Crucificado
O Cristo Crucificado é o maior contemplado nas Legendas. Não assim nos Escritos de Francisco. As referências são relativamente poucas (PPN 7; 2 CF, 11; Ex 5, 3; Ex. 6, 1; 1 R 23, 3); e, na maior parte delas, limitam-se a uma alusão ao acontecimento. Não tem descrições: da flagelação, da coroação de espinhos, da crucifixão, das três horas na cruz…. Da morte do Senhor. Isto não quer dizer que a figura do Senhor Crucificado não estivesse presente com insistência na sua mente e no seu coração. A prova mais eloqüente é o Ofício da Paixão. Primeiro pela sua beleza humana; e, segundo, por ser uma oração composta por Francisco e por ele recitada, como ofício votivo, todos os dias. Mas significativo ainda é o facto de quase silenciar os sofrimentos físicos e as descrições sangrentas. A Sua oração é silêncio adorador, é contemplação emudecida, é nobreza de alma ajoelhada.
Temos, pois, os seguintes traços. Filho do Pai, Dado, Nosso Irmão, Pobre e Crucificado.
Há ainda uma diferença que não se pode omitir: a atenção dada à humani-dade de Jesus. O primeiro milênio cristão viveu principalmente a divindade de Jesus. A divindade de Jesus aparece bem patente no tímpano das grandes catedrais. Com S. Bernardo começa a impor-se a devoção à humanidade de Cristo, que já fora apontada por Orígenes, Santo Anselmo e S. Pedro Damião.
Esta diferença tem uma importância enorme e revolucionária. A devoção à divindade – Cristo Senhor, Cristo Rei, Cristo Pantocrator, Cristo Altíssimo, etc. – é a teologia da sociedade hierárquica e piramidal do tempo: Papa, Imperador, Senhor feudal, Clero, Povo. A devoção à humanidade faz germinar uma sociedade diferente, caracterizada pela igualdade. Lothar Hardick, em Francisco Símbolo da Mudança da Religiosidade da Idade Média, diz: ―Toda a estrutura do sistema vem do alto para baixo, de cima para a base. Cada superior atribui o feudo e o poder ao inferior. Todo o tecido social aparece com a sua origem em Deus, o Senhor Altíssimo. Para além do Papa e do Imperador, numa graduação descendente até ao último nível social. Encontramos esta mesma concepção também fora do direito feudal. Tudo está ordenado de acordo com o nível da sua relação interior com Deus. o Senhor Altíssimo. Com S. Bernardo, porém, a nova ideologia mantinha-se dentro do mundo monacal. S. Francisco, sem pensar em revoluções, levado pelo seu amor a Jesus, fez com que fosse surgindo no mundo uma nova relação entre os homens, não só de igualdade, mas de fraternidade.
Nós franciscanos temos, por isso, uma grande dívida aos homens do nosso tempo: oferecer-lhes este retrato de Jesus. Francisco conseguiu assimilá-lo, reproduzi-lo… na sua vida e na sua palavra. Foi pena que os seus filhos não lhe apanhassem o segredo: uns fixaram-se no serviço da Igreja; outros fixaram-se na sua santidade pessoal. E Jesus ficou na sombra. Estamos tentando recuperá-lo, mas, por enquanto, ainda não soubemos passar do estudo para a pregação e desta para a vida… porque não começou pelo coração. É um desafio que continua.