domingo, 28 de agosto de 2011

UMA ORDEM DE IRMÃOS



Nas origens da fraternidade
     Em 1209, quando Frei Francisco pede ao papa a aprovação do seu grupo, a forma institucional identificativa é a da fraternitas e não a de uma “Ordem” religiosa. Vivem todos a comum dimensão de vida cujos traços de identidade o Testamento resume em:  opção pela pobreza em minoridade, oração e freqüência às igrejas. Nos primeiros frades há um caráter profundamente desarmado, expresso na saudação “O Senhor te dê a paz”. Quem quiser pode se tornar frade menor, independentemente da idade, da condição social e da cultura. Lenta e inexoravelmente a chegada de indivíduos provenientes das fileiras clericais e magisteriais condicionam de forma diferente a primitiva fraternidade.
     O caminho da sacerdotalização (*) da fraternidade de Frei Francisco começa cedo. Os primeiros que foram com ele pedir a aprovação da Igreja em 1209 certamente eram leigos, mas a mesma aprovação desperta o interesse e a chegada de clérigos, sacerdotes ou não. É a eles que o Testamento se refere quando diz: “os clérigos rezavam o ofício”. Frei Leão, Frei Iluminato são desse grupo e são sacerdotes. Em 1211 entra Frei Silvestre, sacerdote! O número dos clérigos, todavia vai crescer bastante entre 1217 e 1220. Entre eles já há vários mestres aos quais quase espontaneamente a fraternidade vai confiando o serviço fraterno de ministros, sem excluir os irmãos leigos, levando-os a assumir os destinos da jovem fraternidade. Frei Caetano Esser faz este precioso comentário: “Os ministros se encontravam frente a homens da Idade Média e o homem medieval por si mesmo não pensa nem vive senão de forma cooperativa, em corporações. Essa mentalidade leva a entender que devia haver na Ordem uma estrutura social bem definida. Francisco sustentava ao contrário sua concepção pessoal, querendo o homem bem enraizado em si mesmo e na inspiração divina, como se pode deduzir em primeiro lugar da concepção franciscana de obediência nos primeiros tempos. Sob este aspecto Francisco estava claramente em vantagem em relação ao seu tempo... e mesmo fazendo algumas concessões soube manter e conservar solidamente o seu ponto de vista“ (Introduzione Alla Regola Franciscana, 26-27). Com a sua profunda convicção da importância da fraternidade, Francisco sinaliza para a individualidade e subjetividade típicas da modernidade.
     Os ministros e mestres querem organizar uma verdadeira Ordem, com estatutos rigorosos, competências bem definidas. Penso que não se pode falar de uma tendência de laxismo dos ministros e mestres, mas de uma dificuldade congênita deles, formados no refinado método escolástico de análise pontual, em intuir a fineza da simplicidade do pensamento de Francisco. Sem querer abrir mão da fidelidade do projeto original do santo eles conduzirão a fraternidade a uma normatização sempre maior e a um enquadramento nos critérios canônicos recém adquiridos pela legislação da Igreja. A diversificada compreensão do “modelo Francisco” leva os ministros e mestres a darem consistência à Fraternidade através da afirmação eclesiástica e social. Intencionalmente ou não, porém faz-se o distanciamento do primeiro ideal. A intenção parece ser a de atualizar o “mito Francisco”, mas a forma com que se inserem na pastoral da Igreja, na sociedade e nos ambientes de alta cultura distancia a fraternidade das suas origens, um pouco como canta Chico Buarque “é porque há distância entre intenção e gesto”.
      O capitulo geral de 1230 encontra dificuldade para entender algumas passagens da Regra e do Testamento e nomeia uma delegação para representá-lo junto a Gregório IX (Hugolino), composta do Ministro Geral João Parente, o único irmão leigo do grupo, e de mais seis sacerdotes já conhecidos do papa, entre os quais Frei Antonio de Pádua e Frei Leão de Perego, que será o primeiro bispo franciscano. Os seis tinham se destacado pela atuação anti-herética no norte da Itália e no “movimento aleluia” cuja finalidade religiosa e política era a de reduzir dissidentes à obediência eclesiástica. Sabemos como Gregório se serve da amizade que tivera com São Francisco para se fazer intérprete qualificado da sua verdadeira intenção. Ele ajudara redigir a Regra e aprová-la. O grupo de delegados não é escolhido aleatoriamente nem democraticamente, mas intencionalmente entre frades conhecidos do papa e da cúria romana. O resultado é a bula “Quo Elongati” de setembro de 1230, abrindo caminho para consolidar as transformações e o processo de sacerdotalização da fraternidade. O prelado que Francisco escolhera como suprema instância disciplinar da fraternidade agora era a autoridade suprema da Igreja. Gregório IX estava com todo o poder para decidir. A santidade de Frei Francisco e o vigor dos Irmãos Menores são os instrumentos de que precisava para realizar seu plano restaurador do poder papal e da hegemonia da Igreja romana sobre o poder temporal e sobre as igrejas particulares. Entre as transformações da fraternidade nenhuma era mais significativa que a sacerdotalização, já em andamento quando Francisco ainda estava vivo. Grado Giovanni Merlo, minha referência nesta reflexão histórica, diz: “Os filhos de Francisco abandonaram a submissão a todas as criaturas e entraram definitivamente na área do poder”.
     Muitas vezes a figura de Frei Elias é vista como um obstáculo para o processo de sacerdotalização, mas não parece ser assim. É verdade que ele nomeia ministros de preferência entre os irmãos leigos, porém ele favorece os estudos teológicos, a compra de livros e bíblias, promove a formação de professores em Paris impulsionando o estudo e a pregação, motores da clericalização e da sacerdotalização.
     Quando Frei Aimão de Faversham é eleito Ministro Geral o processo de sacerdotalização entra numa etapa definitiva. Com ele entra em crise a identidade franciscana porque parece não ter tanta certeza da especificidade franciscana como irmãos menores. Procurará ele equiparar a fraternidade às demais ordens já existentes, sobretudo aos dominicanos, com quem os frades ingleses tinham estreito relacionamento. Suas intervenções promovendo a sacerdotalização se dão pela ampla reforma dos livros litúrgicos “conforme o modelo da cúria romana”. As transformações responsáveis pela fragilização da identidade franciscana recebem um extraordinário impulso com a nomeação de Frei Leão Valvassori de Perego como Arcebispo de Milão. Nada menos que Milão, a sé mais importante da Itália depois de Roma e das mais importantes de toda a cristandade. Trata-se de um frade “empenhado na vida pública urbana e na ação político-eclesiástica confiada pelo pontífice ao seu legado para a Lombardia” (Merlo, 108). Ele representa bem o minorismo da região do Rio Pó, que crescera em direta ligação com a Cúria Romana e menos com o franciscanismo da Úmbria, a serviço da hegemonia do papado “com os ambientes de estudo e com as Igrejas e sociedades locais e que assumira encargos pastorais de orientação, ensino, educação e formação dos fiéis” (ibidem).
     A nomeação do primeiro frade menor como arcebispo não passa em silêncio. O novo Ministro Geral Crescêncio de Jesi convida os frades no capítulo de Genova (1244) a enviarem suas memórias sobre São Francisco, não contidas na primeira biografia de Tomás de Celano. Com o material que chega Celano redige a segunda biografia iniciando assim: “Começa o memorial no anseio da alma” conhecido pelo seu título latino “Memoriale in desiderio animae”.
Na segunda metade do século XIII forma-se um contexto apropriado para o surgimento de muitos escritos franciscanos tendentes a reinterpretar os quarentas primeiros anos da fraternidade de acordo com as várias correntes internas. A repercussão da nomeação episcopal do primeiro frade menor vem recordada na 2Cel 148 assim: “Na cidade de Roma, encontraram-se com o senhor de Óstia- que depois foi sumo pontífice- os preclaros luminares da terra, São Francisco e São Domingos.  Como falassem alternadamente coisas melífluas do Senhor, disse-lhes finalmente o bispo: Na Igreja primitiva, os pastores eram pobres e homens fervorosos de caridade e não de avareza.  Por que não fazemos dos vossos irmãos bispos e prelados que sobressaiam aos outros pela doutrina e pelo exemplo? (cf.Tt 2,7) Entre os santos , surgiu uma disputa (cf.Lc,22,24) sobre quem devia responder, cada qual não se antecipando, mas oferecendo, antes obrigando um ao outro a responder. Na verdade, cada um era prior, pois cada um tinha devoção para com o outro. Finalmente, a humildade venceu Francisco, para que não se colocasse à frente, e venceu também Domingos, para que respondendo primeiro, obedecesse humildemente. Respondendo, portando, o bem-aventurado Domingos , disse ao bispo: Senhor, meus irmãos, se o reconhecerem, foram elevados a bom grau, e quanto me for possível, não permitirei que cheguem a outro tipo de dignidade. Depois que ele completou o discurso assim tão brevemente, o bem-aventurado Francisco, inclinando-se diante do bispo, disse: Senhor, meus irmãos foram chamados de Menores para que não presumam tornar-se maiores (cf. Mt20,26). A vocação deles os ensina a permanecer no chão e a seguir as pegadas da humildade de Cristo (cf.1 Pd 2, 21) para que finalmente na retribuição dos santos (cf.Sb 3,13) sejam mais exaltados do que os outros. Se quereis -disse- que produzam fruto (cf. Jo 15,2-8) na Igreja de Deus (cf. Fl 3,6), mantende-os e conservai-os no estado de sua vocação (cf.!Cor 7,20) e reconduzi-os às coisas do chão, mesmo contra a vontade deles. E assim suplico, pai, para que não sejam, tanto mais soberbos quanto mais pobres e se tornem insolentes contra os outros, não permitais de maneira alguma que eles sejam elevados à prelatura. “Estas foram as respostas dos bem-aventurados”.
     O encontro descrito dos dois santos com o futuro papa é historicamente improvável, mas representa a inconformidade de muitos frades da época com a primeira nomeação episcopal de um frade menor e com as demais “metamorfoses” do franciscanismo, mesmo que promovidas a aprovadas pela cúpula da Igreja e da Ordem. A narrativa mostra que os novos rumos não são aceitos acriticamente mesmo que se imponham como irreversíveis,
Frei Aimão se esforça em resolver as dúvidas que as transformações provocavam. Frades cultos de Oxford e Paris foram convidados a esclarecer os pontos duvidosos da Regra: Alexandre de Hales, João de La Rochelle, Roberto de La Bassé, Eudes Rigaud prepararam o texto conhecido como “Exposição dos quatro mestres sobre a Regra dos Frades Menores”. Eles tiveram suficiente clareza sobre as dificuldades da tarefa. Sabendo que o método escolástico com suas distinções e contra distinções podia levá-los a passar distante da verdadeira intenção de São Francisco  subordinaram suas observações a um princípio superior e absoluto: era preciso observar a Regra “sicut a Sancto Francisco, dictante Spiritu Sancto, tradita fuit  = conforme fora dada por São Francisco sob inspiração do Espírito Santo”. De fato, com a melhor das intenções os quatro mestres realizaram uma excelente obra de escolástica, distante, porém do projeto original de São Francisco.
     Frei Tomás de Eccleston em sua Crônica da chegada dos Frades à Inglaterra refere uma passagem extremamente significativa das tensões vivenciadas na Ordem.  Narrando sobre o trabalho dos quatro mestres conta o sonho de um frade ao qual São Francisco apareceu mostrando-lhe um poço profundo, símbolo de uma possível queda da Ordem num fosso escuro e sem saída, exatamente no momento em que se punha o problema de esclarecer os pontos duvidosos da Regra. O frade dirigiu ao santo o seguinte convite urgente: “Pai, eis que os padres querem explicar a Regra: melhor seria se tu mesmo nos explicasses a Regra”. Embora dada num sonho a resposta de São Francisco tem um elevado grau de concretude: “Filho, dirige-te aos frades leigos, que eles te exporão a Regra”.
     O caminho da sacerdotalização seguida pelos superiores e mestres da Ordem não impede que muitos frades continuem assumindo o jeito de ser vivido e proposto por Frei Francisco: vida simples e pobre, fraterna e menor, com forte presença no meio dos últimos da sociedade, desenvolvendo a pregação exortativa. Entre estes não diminuiu a consciência da especificidade franciscana derivada da experiência cristã que provinha da vida e da intenção de São Francisco. A inconsciência da especificidade da vida franciscana podia afetar até um ministro geral como Aimão de Faversham, mas não a maioria sadia dos frades radicados na identidade jesuânica do carisma de Francisco, fossem eles clérigos ou irmãos leigos.
     No processo de sacerdotalização a Fraternidade dos Irmãos Menores recebia estruturas fortemente sacerdotais e monásticas, mesmo conservando a inspiração pauperística. A deposição de Frei Elias em 1239, conforme a Crônica de Jordão de Jano e Tomás de Eccleston é precedida por uma complexa operação envolvendo os ministros de além-Alpes e Gregório IX, mediada por Frei Arnulfo Ânglico, penitenciário da Cúria pontifícia. Desta data em diante a condição dos irmãos leigos muda radicalmente em número e em importância nos serviços internos da Ordem. A constituição emanada deste capítulo de 1239 disciplinava em sentido aristocrático e clerical a entrada na Ordem. Critério para ser frade agora não é mais a conversão e o desejo de seguir Jesus Cristo do jeito de São Francisco. Somente serão aceitos os que forem úteis à Ordem: “com o suporte da própria formação cultural e clerical e de outras louváveis condições, podem ser úteis à Ordem e a si mesmos mediante uma vida de méritos e servir de exemplo para os outros”. Aimão de Faversham irá confirmar estes critérios que terão a seguinte redação nas Constituições de Narbona de 1260: “Ordenamos que ninguém seja recebido na Ordem para ser clérigo sem suficiente conhecimento de gramática ou de lógica; se for para ser leigo, que seja de tal condição que sua entrada produza muita edificação no clero e no povo. Se, apesar desta ordem for preciso receber leigos para preencher os serviços materiais, não se faça sem urgente necessidade e com especial licença do Ministro geral” (São Boaventura, Constituições de Narbona, Opera Omnia, VIII,450).
     A sacerdotalização da Ordem serviu de instrumento nas mãos dos papas do século XIII para confirmar a absoluta centralidade eclesiástica e hierárquica do pontificado romano. Trata-se de uma centralidade que dura até hoje não tendo sido mudada nem pelo Concílio Vaticano II e cuja vigência nem sempre se dá em benefício da Igreja Particular e do Povo de Deus.

Resgate da Ordem de irmãos na Reforma Capuchinha
     Na Reforma Capuchinha ressurge com vigor o princípio da fraternidade composta de leigos e clérigos completamente integrados entre si, com todos vivendo vida mista em sentido pleno, na dimensão contemplativa e ativa no apostolado, com direitos e deveres iguais. A total interação de frades clérigos e leigos se consolidava na observância da Regra e das Constituições, excetuando somente o que deriva da ordenação presbiteral. Mostram esta integração a tradição capuchinha, a história legislativa, a hagiografia, etc..
     A Bula Religionis Zelus é dirigida nominalmente a um frade sacerdote e a um frade leigo. Os dois são autorizados a receber clérigos e leigos indiferentemente. Há diversos leigos entre os primeiros seguidores da reforma. A expressão “fratelli” dos textos legislativos primitivos é usada para clérigos e leigos. Exatamente porque é sublinhada a fraternidade e não o sentido clerical, se diz no inicio das Ordenações de Albacina: “Rogo e exorto todos os nossos irmãos desta confraternidade”. A autoridade e a precedência derivam da ancianidade e não da clericatura.
      As Constituições de 1535-36, (Roma- Sta Eufêmia) acentua alguns aspectos significativos: Os frades simples entendem melhor a sabedoria de Deus. A recepção de candidatos não se baseava na formação cientifica e na clericatura, mas na ótima intenção e fortíssima vontade. A expropriação dos bens na entrada e na vida fraterna se faz sem distinção de clérigos e leigos. A formação do noviciado prioriza a vida religiosa. Nas eleições não há distinção de clérigos e leigos.
      No regime interno da Ordem Capuchinha nota-se nos primeiros decênios uma importante presença dos irmãos leigos, quando vários deles são escolhidos como superiores. Os primeiros sinais de mudança começam com o encerramento Concilio de Trento (1565) pela valorização que nele se dá ao estado clerical e sacerdotal, alijando os irmãos leigos dos ofícios de superiores e privando-os da voz ativa e passiva. É então que se introduzem as descriminações. Mesmo assim, os superiores da Ordem sempre conseguem obter da Igreja exceções e dispensas. Excluídos que foram dos capítulos, Pio V reintegra os irmãos leigos em 1566 para que possam participar plenamente das eleições, mesmo com a proibição do Concilio de Trento. Estas práticas de cunho democrático-fraterno continuam comuns até os primeiros anos do século XVII. Até essa época são inúmeros os irmãos leigos guardiães e vigários de fraternidade. Alguns foram mestres de noviços ou mestres de noviços leigos. É conhecido o caso de Frei Rafael de Asti, perito em direito canônico, que sendo leigo foi leito definidor provincial várias vezes, custódio e guardião.
     As mudanças irreversíveis nos costumes da Ordem se deram também aqui por um processo sacerdotalizante, pela criação de medidas penais, pela exasperação das normas jurídicas, pela intervenção dos cardeais protetores e da Congregação dos Religiosos, pela acentuação clerical do Concilio de Trento dada a toda a Igreja, bem acolhida por aqueles frades sacerdotes que já tinham mentalidade clerical e jurisdicista.

Pensando aspectos da Ordem de irmãos na vida da Província hoje
     Nos últimos quarenta anos os ministros Gerais Capuchinhos vêem reiterando o pedido à Congregação dos Religiosos para que a Igreja reconheça a nossa Ordem como fraternidade, onde leigos e presbíteros dedicados à vivência dos valores da vida consagrada têm um carisma comum. Ainda em 2007 em visita à nossa Província, Frei Mauro Jöhri nos relatou sua audiência com o papa Bento XVI e as diferentes compreensões expressas por ambos. A posição oficial da Ordem Capuchinha é, pois de retorno às origens franciscanas e da nossa Reforma, de resgate da Ordem de Irmãos. Esta posição oficial da Ordem faz parte também da convicção vivencial da nossa Província, no seu conjunto e de cada frade? 
Na época do nascimento dos Capuchinhos estavam surgindo na Igreja os institutos clericais, de padres religiosos com caráter bem diferenciado das ordens medievais mendicantes. Assim nasceram os Teatinos, os Barnabitas, os Jesuítas etc... São padres que vivem os votos, mas se voltam, sobretudo para o apostolado tendo sua origem nos movimentos leigos surgidos na pré-reforma luterana e na contrareforma, dedicados à reforma da Igreja. São marcadamente romanos, florescendo nos países latinos como Itália e Espanha, e com freqüência nascem em Roma ou ao menos procuram indiretamente a aprovação e confirmação de Roma. Tendem a se afastar das formas de vida monástica e mendicante para exercer mais facilmente o apostolado, por isso não usam hábito e reduzem ao mínimo a vida e a oração em comum etc...  Eles são os clérigos regulares.
     Em nossa Província, no ambiente de renovação da Ordem, tomamos uma decisão incomum: substituir o curso de filosofia e teologia pelo Curso de Vida Religiosa (CVR), com a intenção explícita de oferecer a quem quer ser capuchinho em nossa Província, uma formação comum, com características essencialmente religiosas e franciscanas. É a consagração que tem peso no itinerário formativo, sob a ótica do nosso carisma franciscano-capuchinho. Antes do Concilio Vaticano, vivenciamos com toda a Ordem o processo de clericalização-sacerdotalização tanto do século XIII como dos séculos XVI-XVII. Tínhamos duas classes de frades: os padres e os irmãos leigos, com direitos iguais nas constituições, mas práticas distintas na vida cotidiana. Gostando ou não temos que reconhecer que a Ordem e a Província tinham frades de primeira e segunda classe.
     Hoje, certamente se não tudo, quase tudo mudou para melhor, mas parece inevitável a constatação de que as práticas das atividades pastorais, especialmente de caráter paroquial, têm prioridade e se impõem sobre as práticas da vida fraterna, tanto no plano organizacional como no plano pessoal, mesmo sem fazer generalizações. Embora a maioria dos frades da Província respeite as escolhas pessoais dos jovens em formação, há referências das investidas de frades que lhes dizem claramente: vocês têm que ser padres, pois a Igreja precisa de padres! E há quem ainda acrescenta: os irmãos não fazem nada! Já Salimbene de Parma no século XIII, em sua Crônica defendia a “curialitas”, modelo aristocrático, para a vivência diária da vida franciscana e também dizia que os irmãos leigos eram “inúteis”, além de indignos de exercer os “ofícios da Ordem”. Aqui não é o lugar adequado para aprofundar o significado do ministério presbiteral na Igreja, mas há perguntas que brotam espontaneamente: têm que ser padres por quê? Aqui não se pretende discutir o lugar e a importância do presbítero, mas de perguntar que modelo de presbítero a Igreja precisa? O presbítero com cabeça clerical, de casta superior, cujos serviços são os únicos valorizados na Igreja, absorvendo e centralizando tudo? A Igreja não estaria precisando antes de pessoas felizes em suas escolhas vocacionais, dispostas a servir o Povo de Deus, como leigos, religiosas e religiosos consagrados, presbíteros, missionários em qualquer estado de vida?
     A estrutura jurídico-hierárquica da Igreja faz de todo o presbítero necessariamente um clérigo, mas sua identidade primeira é de pastor. O padre João Batista Libânio diz: ”anuncia-se para o futuro um clero mais do altar, do sacramento, das celebrações, da organização paroquial bem diferente em sua visibilidade, do que na presença discreta, do diálogo, da animação, da conversa confidencial, da orientação espiritual, da palavra profética” (Cenários da Igreja, 30). Quando se afirma: “os irmãos não fazem nada”, a partir de que horizonte se faz? Trabalho é só celebrar os sacramentos, administrar as paróquias, coordenar pastorais etc...? Os irmãos leigos teriam que voltar para as cozinhas, portarias, hortas, sacristias etc..para deixarem de ser inúteis? Se os irmãos leigos às vezes não tem o que fazer numa paróquia capuchinha não é de se perguntar se algo não está equivocado no modo de organizá-la que não leva em conta nossa condição de Ordem de Irmãos? Será que só dos irmãos que se pode reclamar que não fazem nada? Não é a fraternidade que envia os irmãos para a missão, para qualquer missão, paróquia ou outras formas de presença? Não há padres omissos em relação ao ministério e aos trabalhos da fraternidade?  Ouvimos o relato na última assembléia em que um irmão leigo está se situando e muito bem, em serviços pastorais não ministeriais. Se crermos que é a fraternidade que envia os frades para servir em paróquias pergunta-se: só os frades presbíteros são enviados? Nas origens franciscanas e capuchinhas a presença ativa a serviço do povo não é exclusiva dos presbíteros e não se orienta para clericalizar os irmãos leigos. Talvez o definitório provincial e os serviços de formação inicial e permanente pudessem trabalhar juntos para que todos os frades, antes da profissão perpétua não só se decidissem pelo estado de irmãos leigos ou presbíteros, mas também por uma opção pastoral, serviço, área e atividade de preferência. A disponibilidade não parece ficar comprometida. Ficaria antes aprimorada.
     É bom saber que os jovens formandos não dão muito ouvido às insinuações clericalistas que soam como assédio moral, mas não é bom saber que insinuações partem até de quem tem a responsabilidade de formar para uma fraternidade de iguais. Parece que se houver respeito pela consciência dos vocacionados e formandos, em suas diversas etapas, haverá também o cuidado e a responsabilidade em ajudá-los a discernir sua vocação sem forçá-los ou condicioná-los..
À Província como um todo, mas especialmente aos frades das gerações que se formaram a partir do CVR, cabe a meu ver a tarefa de aprofundar estas questões todas e descobrir caminhos de fidelidade ao nosso carisma de Ordem de Irmãos. Mesmo que pelo Direito Canônico os presbíteros sejam sempre clérigos, o que nos cabe é julgar e agir com os critérios da minoridade. De 1980 para cá os frades que se formaram em nossa Província fizeram o CVR essencialmente voltado para a formação franciscana. Aproximando-nos dos trinta anos de formação pelo CVR parece-me que a Província precisa fazer uma avaliação para verificar a qualidade da informação e da formação em geral, mas especialmente franciscana, que foi passada pelo CVR. Nessa tarefa de avaliar cabe um lugar especial aos frades que se formaram pelo referido curso.
     Mais de uma vez já se disse que o CVR mais informou sobre franciscanismo, história, espiritualidade, valores etc..que formou. Assim, vale perguntar mais do que por resultados numericamente palpáveis, pelas convicções com que se vive o franciscanismo e as características de uma Ordem de irmãos. Irmãos leigos e presbíteros formados pelo CVR que contribuições oferecem para a vida fraterna local, provincial e para a vida eclesial? Que valores franciscano-capuchinhos os frades formados pelo CVR percebem em suas convicções e que lacunas e insuficiências estão também presentes em sua história pessoal? Que contribuições especificamente franciscanas os frades do CVR que já passaram pelo governo da Província ofereceram neste serviço? Os que atuaram na formação, na pastoral, como párocos, nas missões, na pastoral vocacional, no acompanhamento das pastorais, da OFS, etc..que qualidade franciscana imprimiram em seus trabalhos? São os frades do CVR que assumirão cada vez mais o governo da Província e que serão escolhidos no próximo capítulo. Qual é o sentido e a consistência da pertença que os envolve? Os frades do CVR que projeto têm para a Província? Nesta perguntas não vai nenhuma insinuação de dúvida quanto aos frades do CVR. Pelo contrário, confio neles. São sugestões para revisão.
     A vocação comum à vida consagrada e franciscano-capuchinha, a vocação comum para a missão, para o serviço pastoral e outras características que nos são próprias não parecem ter a incidência que precisariam ter na avaliação da condição de presbíteros e irmãos leigos da Ordem de irmãos que somos. A nossa presença quase exclusiva em paróquias e o modelo de presbítero cultivado por muitos frades acabam formando uma espécie de filtro sacerdotalizante através do qual se relê tudo, consciente ou inconscientemente, colocando o serviço dos irmãos presbíteros como critério através do qual tudo é controlado, impedindo que os aspectos típicos da nossa Ordem de irmãos transpareçam quando se busca fundamentar nossas formas de presença, como situações concretas para viver o Evangelho e o nosso carisma. Em seu artigo “Presente e futuro do sacerdócio na Igreja Católica” padre Libânio traz uma passagem significativa para avaliação: “Numa cultura extremamente voltada para a exterioridade, vige uma figura de sacerdotes também eles cultivadores da aparência externa por meio de vestes, do brilho da liturgia e da presença da mídia. O próprio conteúdo das pregações sofre de superficialidade, ao carregar o tom na emoção, na imagem. Perde-se tanto no aspecto teológico de aprofundamento da fé quanto na riqueza simbólica própria da liturgia... Em reação a tal figura, cresce uma linha oposta. Desloca o polo para a fidelidade à verdade doutrinal ensinada pelo magistério, especialmente pontifício, e às prescrições canônicas da Igreja institucional no campo da moral, da liturgia, da disciplina eclesiástica até as raias do rigorismo ortodoxo, moralista e litúrgico. Cresce um tipo de ministro ordenado pouco preocupado em responder aos problemas de hoje, mas voltado para a conservação de fiéis dóceis...  Aposta-se no purismo doutrinal , moral e disciplinar. (Vida pastoral, janeiro-fevereiro 2010, p 36-37). Aqui não se trata de desvalorizar a subjetividade e muito menos de exercer patrulhamento ideológico, mas de recordar os critérios da minoridade franciscano-capuchinha para avaliar o exercício do presbiterato numa Ordem de irmãos.
     Recordo-me sempre a experiência de alguns anos atrás vivida na Província de Minas Gerais. Após a decisão de não aceitar mais paróquias além das que já tinha no momento, o que durou por vários triênios, o definitório, por orientação do capítulo provincial, procurou as dioceses e seus respectivos responsáveis para verificar a possibilidade de assumir novas paróquias. Acabaram assumindo duas, como muita dificuldade, mas antes ouviram várias respostas com este teor: “Os Capuchinhos são bem-vindos! Ficamos felizes em tê-los na diocese, mas não precisamos deles em paróquias!” Dá o que pensar! Se as igrejas particulares não precisassem mais de nós nas paróquias ficaria comprometida a nossa identidade ou teríamos que nos virar e revirar para rever nossas formas de presença, de serviços ao Povo de Deus, exercendo nossa criatividade radicada unicamente na condição de Ordem de irmãos, incluindo as formas de subsistência?
Esta resenha histórica acompanhada de algumas observações pessoais não pretende ensinar nada a ninguém; só quer ser um convite à reflexão sobre as convicções e práticas próprias de uma Ordem de irmãos que queremos ser. Certamente há muita riqueza a ser partilhada. 

Frei Odair Verussa, OFMCAP
*Sacerdotalização. É o termo que Landini, Manselli, Rusconi, Grado Giovanni Merlo e outros historiadores franciscanos vêem usando em lugar de clericalização porque parece indicar melhor a progressiva introdução dos frades menores no organismo eclesiástico e na ação pastoral. Além disso, evita a falsa alternativa entre o caráter “laical” ou “clerical” da primitiva fraternidade e da sua evolução em Ordem. A alternativa verdadeira está, para Luigi Pellegrini, entre a “absoluta precariedade e instabilidade das origens e o sucessivo processo de estabilização e normalização institucional”.
Bibliografia
- MERLO, Grado Giovanni, Em nome de São Francisco. Petrópolis, Vozes. 2005.

- Os Capuchinhos, Fontes Documentárias e narrativas do primeiro século, 1525-1619, CCB, Brasília, 2007.     
- Uma Ordem de irmãos, A ordem Franciscana é uma fraternidade aberta a clérigos e leigos. Documentação histórico-jurídica preparada pela Cúria Geral OFM Cap em 1983.

O Significado do Tau Franciscano

Há certos sinais que revelam uma escolha de vida. O TAU, um dos mais famosos símbolos franciscanos, hoje está presente no peito das pessoas num cordão, num broche, enfeitando paredes numa escultura expressiva de madeira, num pôster ou pintura. Tau - Símbolos e significados

Ele é um símbolo antigo, que recorda tempo e eternidade. A grande busca do humano querendo tocar sempre o divino e este vindo expressar-se na condição humana. Horizontalidade e verticalidade. As duas linhas: Céu e Terra! Temos o símbolo do TAU riscado nas cavernas do humano primitivo. Nos objetos do Faraó Achenaton no antigo Egito e na arte da civilização Maia. Francisco de Assis o atualizou e imortalizou. Não criou o TAU, mas o herdou como um símbolo seu de busca do Divino e Salvação Universal.

TAU, sinal bíblico

Existe somente um texto bíblico que menciona explicitamente o TAU, última letra do alfabeto hebraico, Ezequiel 9, 1-7: "Passa pela cidade, por Jerusalém, e marca com um TAU a fronte dos homens que gemem e choram por todas as práticas abomináveis que se cometem". O TAU é a mais antiga grafia em forma de cruz. Na Bíblia é usado como ato de assinalar. Marcar com um sinal é muito familiar na Bíblia. Assinalar significa lacrar, fechar dentro de um segredo, uma ação. É confirmar um testemunho e comprometer aquele que possui o segredo. O TAU é selo de Deus; significa estar sob o domínio do Senhor, é a garantia de ser reconhecido por Ele e ter a sua proteção. É segurança e redenção, voltar-se para o Divino, sopro criador animando nossa vida como aspiração e inspiração.

O TAU do penitente

Francisco de Assis viveu em um ambiente no qual o TAU estava carregado de uma grande riqueza simbólica e tradicional. Assumiu para si a marca do TAU como sinal de sua conversão e da dura batalha que travou para vencer-se. Não era tão fácil para o jovem renunciar seus sonhos de cavalaria para chegar ao despojamento do Crucificado que o fascinou. Escolhe ser um cavaleiro penitente: eliminar os excessos, os vícios e viver a transparência simples das virtudes. Na sua luta interior chegou a uma vitória interior. Um homem que viveu a solidão e o desafio da comunhão fraterna; que viveu o silêncio e a canção universal das criaturas; que experimentou incompreensão e sucesso, que vestiu o hábito da penitência, que atraiu vidas, encontrou um modo de marcar as paredes de Santa Maria Madalena em Fontecolombo, de assinar cartas com este sinal. De lembrar a todos que o Senhor nos possui e nos salva sob o signo do TAU.

O TAU franciscano

O TAU franciscano atravessa oito séculos sendo usado e apreciado. É a materialização de uma intuição. Francisco de Assis é um humano que se move bem no universo dos símbolos. O que é o TAU franciscano? É Verdade, Palavra, Luz, Poder e Força da mente direcionada para um grande bem. Significa lutar e discernir o verdadeiro e o falso. É curar e vivificar. É eliminar o erro, a mentira e todo o elemento discordante que nega a paz. É unidade e reconciliação. Francisco de Assis está penetrado e iluminado, apaixonado e informado pela Palavra de Deus, a Palavra da Verdade. É um batalhador incansável da Paz, o Profeta da Harmonia e Simplicidade. É a encarnação do discernimento: pobre no material, vencedor no espiritual. Marcou-se com este sinal da luz, vida e sabedoria.

O TAU como ideal

No mês de novembro de 1215, o Papa Inocêncio III presidia um Concílio na Igreja Constantiniana de Roma. Lá estavam presentes 1.200 prelados, 412 bipos, 800 abades e priores. Entre os participantes estavam São Domingos e São Francisco. Na sessão inaugural do Concílio, no dia 11 de novembro, o Papa falou com energia, apresentou um projeto de reforma para uma Igreja ferida pela heresia, pelo clero imerso no luxo e no poder temporal. Então, o Papa Inocêncio III recordou e lançou novamente o símbolo do TAU de Ezequiel 9, 1-7. Queria honrar novamente a cristandade com um projeto eclesial de motivação e superação. Era preciso uma reforma de costumes. Uma vida vivida numa dimensão missionária mais vigorosa sob o dinamismo de uma contínua conversão pessoal. São Francisco saiu do Concílio disposto a aceitar a convocação papal e andou marcando os irmãos com o TAU, vibrante de cuidado, ternura e misericórdia aprendida de seu Senhor.

O TAU nas fontes franciscanas

Os biógrafos franciscanos nos dão testemunhos da importância que São Francisco dava ao TAU: "O Santo venerava com grande afeto este sinal", "O sinal do TAU era preferido sobre qualquer outro sinal", "O recomendava, freqüentemente, em suas palavras e o traçava com as próprias mãos no rodapé das breves cartas que escrevia, como se todo o seu cuidado fosse gravar o sinal do TAU, segundo o dito profético, sobre as fontes dos homens que gemem e lutam, convertidamente a Jesus", "O traçava no início de todas as suas ações", "Com ele selava as cartas e marcava as paredes das pequenas celas" (cf. LM 4,9; 2,9; 3Cel 3). Assim Francisco vestia-se da túnica e do TAU na total investidura de um ideal que abriu muitos caminhos.

TAU, sinal da Cruz vitoriosa

Cruz não é morte nem finitude, mas é força transformante; é radicalidade de um Amor capaz de tudo, até de morrer pelo que se ama. O TAU, conhecido como a Cruz Franciscana, lembra para nós esta deslumbrante plenitude da Beleza divina: amor e paz. O Deus da Cruz é um Deus vivo, que se entrega seguro e serenamente à mais bela oferenda de Amor. Para São Francisco, o TAU lembra a missão do Senhor: reconciliadora e configuradora, sinal de salvação e de imortalidade; o TAU é uma fonte da mística franciscana da cruz: quem mais ama, mais sofre, porque muito ama, mais salva. Um poeta dos primeiros tempos do franciscanismo conta no "Sacrum Comercium", a entrega do sinal do TAU à Dama Pobreza pelo Senhor Ressuscitado, que o chama de "selo do reino dos céus". À Dama Pobreza clamam os menores: "Eia, pois, Senhora, tem compaixão de nós e marca-nos com o sinal da tua graça!" (SC 21,22).

O TAU e a benção

Francisco se apropriou da bênção deuteronômica, transcreveu-a com o próprio punho e deu a Frei Leão: "Que o Senhor te abençoe e te guarde. Que o Senhor mostre a tua face e se compadeça de ti. Que o Senhor volva o teu rosto para ti e te dê a paz. Irmão Leão; o Senhor te abençoe!" Sob o texto da bênção, o próprio Frei Leão fez a seguinte anotação: "São Francisco escreveu esta bênção para mim, Irmão Leão, com seu próprio punho e letra, e do mesmo modo fez a letra TAU como base". Assim, Francisco, num profundo momento de comunicação divina, com delicadeza paternal e maternal, abençoa seu filho, irmão, amigo e confidente. Abençoar é marcar com a presença, é transmitir energias que vêm da profundidade da vida. O Senhor te abençoe!

O TAU e a cura dos enfermos

No relato de alguns milagres, conta-se que Francisco fazia o sinal da cruz sobre a parte enferma dos doentes. Após ter recebido os estigmas no Monte Alverne, Francisco traz em seu corpo as marcas do Senhor Crucificado e Ressuscitado. Marcado pelo Senhor, imprime a marca do Senhor que salva em tudo o que faz. Conta-nos um trecho das Fontes Franciscanas que um enfermo padecia de fortes dores; invoca Francisco e o santo lhe aparece e diz que veio para responder ao seu chamado, que traz o remédio para curá-lo. Em seguida, toca-lhe no lugar da dor com um pequeno bastão arrematado com o sinal do TAU, que traz consigo. O enfermo ficou curado e permaneceu em sua pele, no lugar da dor, o sinal do TAU (cf. 3Cel159). O Senhor identifica-se com o sofrimento de seu povo. Toma a paixão do humano e do mundo sobre si. Afasta a dor e deixa o sinal de Amor.

O TAU na linguagem

O TAU é a última letra do alfabeto judaico e a décima nona letra do alfabeto grego. Não está aí por acaso; um código de linguagem reflete a vivência das palavras. O mundo judaico e, conseqüentemente, a linguagem bíblica mostram a busca do transcendente. É preciso colocar o Deus da Vida como centro da história. É a nossa verticalidade, isto é, o nosso voltar-se para o Alto. O mundo grego nos ensinou a pensar e perguntar pelo sentido da vida, do humano e das coisas. Descobrir o significado de tudo é pisar melhor o chão, saber enraizar-se. É a nossa horizontalidade. A Teologia e a Filosofia são servas da fé e do pensamento. Quem sabe onde está parte para vôos mais altos. É como o galho de pessegueiro, cortado em forma de tau é usado para buscar veios d'água. Ele vibra quando a fonte aparece cheia de energia. Coloquemos o tau na fonte de nossas palavras!

O TAU, o cordão e os três nós

Em geral, o Tau pendurado no pescoço por um cordão com três nós. Esse cordão significa o elo que une a forma de nossa vida. O fio condutor do Evangelho. A síntese da Boa Nova são os três conselhos evangélicos=obediência, pobreza, pureza de coração. Obediência significa acolhida para escutar o valor maior. Quem abre os sentidos para perceber o maior e o melhor não tem medo de obedecer e mostra lealdade a um grande projeto. Pobreza não é categoria econômica de quem não tem, mas é valor de quem sabe colocar tudo em comum. Ser pobre, no sentido bíblico-franciscano, é a coragem da partilha. Ser puro de coração é ser transparente, casto, verdadeiro. É revelar o melhor de si. Os três nós significam que o obediente é fiel a seus princípios; o pobre vive na gratuidade da convivência; o casto cuida da beleza do seu coração e de seus afetos. Tudo isto está no Tau da existência!

Usar o TAU é lembrar do Senhor

Muita gente usa o Tau. Não é um amuleto, mas um sacramental que nos recorda um caminho de salvação que vai sendo feito ao seguir, progressivamente, o Evangelho. Usar o TAU é colocar a vida no dinamismo da conversão: Cada dia devo me abandonar na Graça do Senhor, ser um reconciliado com toda a criatura, saudar a todos com a Paz e o Bem. Usar o TAU é configurar-se com aquele que um dia ilumina as trevas do nosso coração para levar-nos à caridade perfeita. Usar o TAU é transformar a vida pela Simplicidade, pela Luz e pelo Amor. É exigência de missão e serviço aos outros, porque o próprio Senhor se fez servo até a morte e morte de Cruz.

 Por Frei Vitório Mazzuco, OFM 

Fonte: http://www.franciscanos.org.br/carisma/simbolos/tau.php

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O Hábito Franciscano.

Por Frei Tomás Gálvez, OFMConv. (in memoriam)
Revista San Francesco – giugno 2004, p. 40-43.
Extraído do ‹‹site›› ‹‹Reflexões de Espiritualidade franciscana››

                      A primeira coisa que chama a atenção de quem se aproxima dos franciscanos é o hábito. 
            Porque suscita curiosidade e perplexidade, dado que a forma e a cor variam segundo as diversas famílias franciscanas, seja masculina ou feminina. Por isso, uma das perguntas mais freqüentes dos peregrinos e turistas que vão à Basílica de São Francisco, onde é fácil confrontar-se, é esta: porquê negro ou cinza? Mas o hábito franciscano não é castanho? 
            Neste artigo daremos uma resposta ao argumento do ponto de vista da forma e da cor, sem mencionar o significado teológico-espiritual do hábito franciscano, que merece ser estudado à parte.
            Hoje nenhuma das ordens ou congregações franciscanas, nem pela forma, nem pela cor, veste o hábito de São Francisco, que era em forma de cruz e de cor acinzentada ou de terra, resultado da mistura, em partes iguais, de fios de lã branca e negra ou castanha escuro. Existe quem afirme que o Santo de Assis e os seus companheiros não se vestiam de forma diferente dos pobres e camponeses do seu tempo, mas nos seus escritos e biografias diz-se alguma coisa diferente. 
            O certo é que o modo de vestir dos frades menores (túnica longa, capuz, corda e calças) era muito mais pobre do que o dos outros religiosos de então, e isto permitia-lhes estar mais próximos dos indigentes e mendicantes, mas não se pode negar que foi um verdadeiro distintivo religioso, que os distinguia dos seculares. 
            As duas regras de São Francisco e as biografias referem-se em particular mais à humildade do hábito dos frades menores que da cor ou da forma da túnica e do capuz. Não negligenciando o aspecto externo, a coisa mais importante nos inícios foi a modéstia e a pobreza no vestir. Mas, quando a Regra bulada impõe aos frades de não julgar, nem desprezar “aqueles que vestem roupas suaves e coloridas”, diz-se, na prática, que a cor do seu hábito deveria ser natural.
            As biografias e as relíquias do Santo permitem-nos assegurar que as túnicas tinham a forma de cruz ou de “tau”, de modo a recordar que, o irmão menor deve exprimir em si mesmo os sofrimentos do mundo. O capuz que encontramos nas primeiras representações dos frades e de São Francisco é, de costume, pontudo e alongado, similar aos dos Capuchinhos. Aquele conservado nas relíquias da Basílica tem exatamente o aspecto de uma manga (de roupa), de modo que muitos não concordam que se trate de um capuz, que foi posto no lugar da manga esquerda que está faltando.
            Existem outros capuzes daquele período, mais curtos e com a extremidade arredondada, pelo qual não se pode falar de um único modelo de capuz para toda a ordem.           Uma outra característica é que o capuz primitivo era costurado ao colo, mas bem cedo foi substituído por um capuz separado da túnica, que passava pela cabeça e se apoiava amplamente sobre o ombro e ao redor do pescoço, em modo de prega. Esta prega foi-se alargando ao longo dos séculos, até obter a forma do capuz atual dos Menores, Conventuais e Terceiros Regulares. Então, desta forma, fala-se da cor. 
            No Espelho de Perfeição fala-se que, entre todos os outros pássaros, Francisco amava com predileção as cotovias, chamadas “de capuz” porque “têm o capuz como os religiosos e é um humilde pássaro...a vestimenta da cotovia, a sua pena, isto é, tem a cor da terra: assim oferece aos religiosos o exemplo de não ter vestes elegantes e de belas tinturas, mas de modesto valor e cor semelhante à terra, que é o mais humilde dos elementos” ( FF. 113).
            A terra todavia, como todos sabem, tem uma infinidade diversa de tonalidades. Tomás de Celano, no Tratado dos Milagres, fala de um “pano cinzento” como aquele dos cistercienses de Oltremare, que Francisco moribundo pede a Jacoba de Settesoli para o seu funeral. 
            A referencia mais directa à cor do hábito minoritico é aquele da Crônica de Roger de Wendover (falecido em 1236) e de Mateus de Paris, onde se diz que “os frades chamados Menores... caminham descalços, com corda na cintura, túnicas cinza longas até aos tornozelos e remendadas, com um capuz vil e áspero. 
            Num documento de 1223, o rei da Inglaterra ordenava ao vice conde de Londres a aquisição de certa quantidade de panos, metade de “blaunchet” ou branco para os Pregadores ou Dominicanos, e outra metade “russet” para os frades menores de Reading. O “russet” era o “rusetus pannus” o pano avermelhado, resultado da mistura natural de lã branca e castanha. As Constituições de Narbona de 1260 estabeleciam que “ as túnicas externas não sejam nem de tudo negras, nem de tudo brancas”, deixando então uma ampla margem às tonalidades de cinza. 
            Nos frescos de Giotto da Basílica Superior de Assis é comum encontrar, numa mesma imagem, hábitos cinza e avermelhados, sempre, porém em tonalidades claras. As Constituições Farinerie de 1354 prescrevem, no entanto, que os superiores não permitam o uso dos panos com “tinturas de diversas cores, nem muito próximo ao branco, nem ao negro”. 
            A variedade de cores dos hábitos primitivos deu-se principalmente pela variedade das cores naturais da lã negra, que por vezes tendia ao castanho, e também pelo facto de que o pano para as túnicas não era ainda confeccionado expressamente para os frades. Estes, no mais eram adquiridos no mercado pelos benfeitores dos frades. Eram estes selecionados pela cor e pela qualidade, também se o pano presenteado superava o controle dos superiores, segundo os Decretos de João XXII (1317) e de Bento XII (1336). 
            Uma maior rigidez quanto à cor, observa-se a partir da divisão da Ordem entre Observantes e Conventuais, acontecida em 1517, sobretudo pelo valor simbólico do cinza, que recorda as cinzas da penitencia e o pó do qual fomos criados. O cinza foi à cor oficial de todas as famílias franciscanas até à metade do século XVIII. Tanto é verdade que, devido à dificuldade para ter um pano tal em quantidade suficiente, sucedeu que as Constituições dos Observantes e Capuchinhos dispuseram que cada província fabricasse os próprios panos para obter a máxima uniformidade. 
            Assim, por exemplo, o Capítulo Geral de 1694 da Regular Observância ordenava que fabricassem “panos de tudo similar na cor e na qualidade, no entrançado e na espessura, tecidos com lã branca e negra mesclada numa proporção tal que, em juízo dos peritos, resulte um pano cinza como vemos nos hábitos e mantos de N. P. S. Francisco, S. Bernardino de Sena e S. João de Capistrano, os quais, por conservando-se em diversas províncias e paises, são de uma mesma cor cinza, mais ou menos claro”. 
            Nos Menores Conventuais observa-se já na segunda metade de 1700, certa tendência pelo negro, não obstante as Constituições Urbanas de 1803 que obrigava ainda o uso do hábito cinza. A prescrição veio a desaparecer na edição de 1823, em parte porque a supressão napoleônica extinguiu as corporações religiosas, os seus membros viram-se obrigados a usar o hábito talar negro do clero secular. Restaurada a Ordem, os frades preferiram continuar com o hábito negro. Hoje, porém, o cinza tradicional esta retornando, de modo que já o vestem quase todos os frades conventuais da Ásia, África, Austrália e América, e algumas províncias da Europa. 
            Os Frades da Observância mudaram do cinza para o castanho pouco mais de um século atrás. Iniciaram na França e foi imposto para toda a Ordem no capítulo de Assis em 1895, quando o papa Leão XIII reunificou numa só as diversas famílias da Observância: Observantes, Alcantarinos, Recoletos e Reformados (“a cor sintética das vestes externas assemelha-se à cor da lã natural escura com tendência ao vermelho, cor que em italiano se chama marrone e em francês marron”). 
            Os Menores Capuchinhos seguiram da mesma forma a evolução dos Observantes, também para evitar qualquer diferença local. Em 1912 estabeleceu-se que a cor do hábito devia ser castanho, como aquele dos observantes, ainda que um pouco mais amarelado (“a cor deve ser castaneum, em italiano castagno, em francês marron, em inglês chestnut, em alemão kastanienbraun, e espanhol castaño”). O hábito que mais se assemelha ao de São Francisco e dos primeiros frades menores, é o dos Capuchinhos, sobretudo pelo capuz alongado e costurado na gola da túnica. 
            O hábito dos Observantes ou Menores caracteriza-se por ser mais ajustado e pelo capuz ser destacado da túnica que cai sobre o ombro em forma de manta, cortada dos lados, mais longa e pontuda atrás, até a cintura. 
            O hábito dos Conventuais é similar ao dos Observantes, difere sòmente no capuz que é mais redondo e o manto mais longo, sem igualar as curvas. 
            O hábito dos Terceiros Regulares ou frades da TOR, pouco tempo faz era semelhante ao dos Conventuais pela forma e pela cor, mas recentemente retornaram ao cinza tradicional, com manto longo e pontudo nas costas. 
            Nos últimos tempos estão surgindo outras congregações franciscanas com hábitos diversos, mais ou menos semelhantes àqueles já citados, com túnica e capuz cinza ou castanho. 
            Existem algumas também com tendência ao azul celeste, como o dos Frades da Imaculada e outros de cor acastanhada clara ou creme, e mesmo verde.
            Além dessas diferenças de forma e cor, o que distingue os franciscanos e franciscanas dos membros de outras Ordens ou Congregações religiosas da Igreja, é o uso exclusivo do cordão de lã branca, que Francisco escolhe para substituir o cinto de couro em cumprimento do mandamento evangélico de Cristo aos seus apóstolos: “não levem nada pelo caminho...nem cinto...” (cf. Mt 10). Ao início não existia um número estabelecido de nós que tivesse a função prática de encurtar a corda, de modo que, não tocasse a terra. Com o passar do tempo, impôs-se a tradição dos três nós, como se para recordar os três votos da profissão religiosa: obediência, castidade e pobreza.
            Enfim, quanto ao calçado, o Pobrezinho caminhou sempre descalço, conforme o mandamento de Jesus: “não usem sandálias...” Sòmente nos dois últimos anos da sua vida, para esconder as faixas ensangüentadas dos estigmas dos pés, teve de usar calçado de pele ou de pano, como se vêem ainda nas relíquias da Basílica em Assis.             
A Regra não impõe nem de andar descalço, nem de utilizar sandálias. Descreve, no entanto, que os frades possam utilizar calçado em caso de necessidade. 
            As sandálias, de qualquer modo, bem depressa se impuseram na ordem, como se pode ver nos frescos de Giotto, onde as trazem todos os frades e também São Francisco.     Mais tarde, por volta de 1400, os frades das reformas que moravam nos eremitérios usavam uma espécie de sandálias com as solas altas de madeira chamadas “zoccoli”, e eis porque, na Itália, os Observantes foram popularmente conhecidos com o nome de “zoccolanti”. 
            Mais recentemente, as diversas Constituições deixaram de impor as sandálias aos Menores e aos Capuchinhos, e os sapatos aos Conventuais, mas tais disposições só foram tiradas depois do Concílio, sendo que não é estranho encontrar Conventuais com sandálias e barba, Menores com sapatos, e Capuchinhos sem barba. 
            Enfim, passada a rigidez dos últimos séculos, fazemos votos, então, de não perdermos o espírito dos inícios, quando, daquela época, pela forma e pela cor, se insistia no aspecto da pobreza e da aspereza dos tecidos e nas cores naturais do cinza e da terra, sinal de humildade e penitência. 
            Mesmo que a este propósito, São Francisco tenha escrito na Regra que os ministros poderiam proceder “diversamente segundo Deus” (RB 2). 

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O Franciscanismo no terceiro milénio

Escrito por Dom A. Monteiro 

A perspectiva do futuro faz parte de qualquer instituição. As instituições outra coisa não são senão a projecção da própria pessoa. Pessoa que, como ser em crescimento, em devenir, peregrino do ser, implica sempre o seu ainda não. É o tal sentido orientativo e de projecção indispensável em todo o ser humano, marcado pela peregrinação: donde venho, onde estou e para onde vou. No Franciscanismo isso é ainda mais assim tendo em conta a dinâmica que lhe deu origem, o projecto do seu Fundador.

1. A PERSPECTIVA DO FUTURO NO FRANCISCANISMO DAS ORIGENS

Francisco é o homem "alterius saeculi", do outro século, na expressão de Celano, o século que vem aí. Como tal, com o movimento a dinâmica que, talvez mesmo, sem conscientemente os programar, ele lhes imprimiu, pretendeu responder a necessidades e apelos que se faziam sentir vivamente, a partir de tempos novos que então estavam a chegar. Num mundo, mais ou menos parado e marcado pela "stabilitas loci" do monacato beneditino, mas que começava a mover-se impelido nomeadamente pela dinâmica comercial, ele lançou a mística do "peregrino e forasteiro neste mundo". Num mundo, classista, com os senhores suseranos e a plebe, como monacato de Abades e conversas a despertar para a igualdade, ele projectou o movimento da fraternidade. Num mundo a chegar, com toda a gente a respirar ânsias de dinheiro, que o comércio suscitava, ele propôs caminhos de pobreza e desprendimento. Num mundo com uma igreja, presa do fausto e da ostentação, ele falou de pobreza de simplicidade. Num mundo de guerras fratricidas de uns contra os outros, por tudo e por nada, ele apontou e mostrou caminhos de paz de reconciliação. Isto foi o franciscanismo das origens.
Lógica e consequentemente num movimento que nasceu assim, seria uma infidelidade não ouvir a sério essas vozes profundas que vêem do futuro e continuam a ressoar sempre de novo vozes do Concílio Vaticano II, liderado na sua origem pela mão de um Papa Franciscano, da Origem Terceira, que foi João XXIII. Desi­gnou ele essas vozes como sinais dos tempos. Sinais que é um dever grave ouvirmos todos, como lembrou o Concílio na "Gaudium et Spes". É nesses sinais que está Deus a conduzir a história, com a Igreja e todas as suas instituições e por isso também o Franciscanismo. Se ele não fizesse, estaria a ser infiel a S. Francisco e estaria a trair seu próprio futuro.
É a esta luz que vamos ver os caminhos que o franciscanismo terá de percorrer nos caminhos do terceiro milénio, se quiser ser fiel a Deus, à Igreja, à história e também a S. Francisco.

2. CAMINHOS DO TERCEIRO MILÉNIO A PEDIR UMA INTERVENÇÃO FRANCISCANA

O terceiro milénio aí está a chegar, com uma possibilidade imensa de progresso, de bem-estar, de qualidade de vida, de felicidade que mal se podem imaginar. Bastaria pensarmos só no que aconteceu nestes últimos 50 anos, a partir de novas descobertas que se vão sucedendo sempre em ritmo mais crescente e de maior envolvência. Nunca o homem pôde ser tão feliz e crescer tanto como hoje.
Entretanto, sabemos bem que, com todo esse bem-estar, não cresceu de facto ao mesmo ritmo a felicidade humana. Pode mesmo ter diminuído a muitos níveis. É que, com todo esse bem-estar, foram surgindo novos problemas. São esses problemas, os problemas de hoje que importa resolver e em cuja solução todos nos devemos empenhar. Todos e também, como é evidente, o mundo franciscano.
Não compete, entretanto, ao franciscanismo responder a todos os problemas, ânsias, inquietações e desafios que nos apresenta o terceiro milénio, que já aí está à vista.
Tais problemas e inquietações são mais que muitos. São aos montes: o economicismo, a concorrência e competitividade propostas como únicas saídas de futuro, o capitalismo a avançar sempre mais, contra tudo e contra todos, a açaimar os poderosos meios de comunicação, fazendo-os ditar moral e dizer só o que lhe convém, na pior das ditaduras de sempre, a generalização dos conflitos, a consagração da lei dos mais fortes, o fosso, a crescer sempre mais, entre ricos e pobres, a degradação da espécie humana, a secundarização do homem na sociedade, a ausência de valores e pontos de referência, a objectivação e exploração das pessoas, de umas pelas outras num salve-se quem puder, a crise de esperança, a ameaça e os atentados à criação, a orfandade do homem sem transcendência, sem razões para viver e para esperar, a mutilação da inteligência humana em favor da dimensão instintiva do ser humano etc etc.
O único critério para se encontrar e discernir, neste acervo de problemas, o campo onde se deverá fixar a intervenção franciscana tem de ser o ideal, a vida, a identidade de Francisco que aparece nomeadamente nas fontes, nas origens do franciscanismo e, como é evidente, na leitura que delas fizeram sobretudo os santos, logo de início e ao longo da história.

3. ÁREAS A PRIVILEGIAR PELO FRANCISCANISMO NO TERCEIRO MILÉNIO

À luz do que acabamos de dizer, parece-me serem áreas abertas a uma intervenção franciscana no mundo do terceiro milénio, entre outras, a menoridade, a fraternidade, a promoção da paz, a pobreza como libertação e opção pelos pobres, o respeito pela criação, o clima de transcendência, centrado num Deus que é amor.
Cada uma delas daria um tema a tratar e aprofundar numa semana como esta.
Vou dizer apenas e sem grandes pretensões uma palavra muito breve a sublinhar o significado e conteúdo de cada uma destas áreas no pensamento franciscano das origens e a alternativa flagrante que elas representariam em ordem a um mundo novo em que todos mais ou menos conscientemente andam a sonhar.

A) A menoridade
A menoridade faz parte da identidade de Francisco e também da sua Família. Foi o próprio São Francisco que escolheu para si e para os seus este nome(1) Queria que os seus se chamassem assim: Irmãos Menores(2) Eram de facto assim(3). Propôs mesmo o que seria o retrato de um irmão menor(4). Assim se designava a ele próprio(5). Assim designava ele os seus filhos, a sua Ordem(6). Numa sociedade, com "maiores e minores" Francisco quis que os seus fossem fazer parte dos "minores".
Não foi questão de táctica. Aprendeu-o no evangelho(7).
Não os chamou mínimos. Usou o comparativo. Supõe que qualquer franciscano vê e considera sempre todo o outro acima de si próprio. Nunca se poderá ver acima de ninguém. Vê todos os outros acima de si. Como tais, dá-lhes sempre o primeiro lugar. Escolhe, como seu lugar próprio, estar sempre entre e com os menores.
Uma gente assim mataria toda a inveja imperante. Acabaria com a concorrência e competitividade que esmaga pessoas, espalha conflitos, é fonte de ameaças, semeia injustiças. Dispensa armas e exércitos. Tem por amigos os mais pequenos, os mais frágeis, os mais fracos. Toma sempre como suas as causas deles. Não tem medo de ninguém, mesma num mundo cheio de medos, como é o nosso.

B) A fraternidade
A fraternidade entre todos é outra das notas fundamentais do franciscanismo. S. Francisco fundou uma Ordem de irmãos(8) onde todos são mesmo irmãos (fratres-frades)(9) uma família(10), com irmãos a partilharem tudo o que recebem(11), até com obediência uns aos outros(12), com amor materno de uns pelos outros(13). Todos a verem como irmãos todos os homens(14), sem discussões, sempre na alegria e na simplicidade(15). Sábios e simples(16). Todos assim.
Um mundo de gente assim seria o fim do egoísmo. Poria fim à solidão de tanta gente. Evitaria o stress. Aproximaria as pessoas. As guerras e os crimes iriam desaparecer.

C) Promoção da Paz
Faz parte do franciscanismo a promoção da paz. Promoção da paz, com o exemplo. Era a regra fundamental e Francisco na evangelização e missionação a pratica entre os sarracenos e outros infiéis. Deviam ir para o meio deles e viverem ali em paz entre si e sujeitos a toda humana criatura segundo mandava a Primeira Regra(17). A saudação dos irmãos devia ser, cada dia, um desejo de paz, como impõe a Segunda Regra(18). A norma de base era o perdão, perdão sem medida, como se manda na carta de Francisco a um Ministro(19). Ser franciscano era promover a paz com palavras(20) e obras(21). É esta a missão da Ordem(22). Promover a paz até entre os homens e os animais, como Francisco o fez com o lobo de Gúbio(23). Paz sempre e só a partir da justiça, como bem o acentua na pacificação do lobo de Gúbio(24). Paz desarmada, como a de Francisco com o Sultão num tempo de cruzadas. Paz que canta os que promovem a paz(25) e inspira orações para suscitar promotores de paz: Senhor, fazei de mim instrumento da vossa paz!
Um corpo de paz assim, no mundo e na igreja, afastaria certamente neste terceiro milénio um dos maiores perigos e riscos da Humanidade e que vai fazendo gastar em armas o que se devia gastar em pão e na promoção dos homens e das nações e, na posse de armas nucleares, pode até pôr em risco a própria subsistência da humanidade.

D) Da pobreza como libertação
A pobreza é uma linha de base no franciscanismo. A pobreza é norma de vida(26), fundamento da Ordem, novidade da Ordem(27). Pobreza que é de Nosso Senhor Jesus Cristo(28). Pobreza que é altíssima(29), uma senhora(30), uma esposa(31), uma graça do Senhor(32). Pobreza que tem de ser voluntária(33) e consiste em não ter nada próprio(34), não se apropriar de nada. É libertar tudo em favor dos pobres(35), como Francisco o quis demonstrar na cena das rolas que comprou e soltou para as pôr a cantar para toda a gente(36). Pobreza que é humildade(37), uma virtude real, por ser pobreza de um grande Rei que é Jesus e a todos nos garante o reino dos céus(38). Pobreza que faz ver tudo como dom(39), evita o supérfluo(40), converte os pobres em imagens de Cristo(41), que fez de Maria a Senhora pobre(42).
Num mundo de ganância, de ambições desmedidas, de avareza, onde o que se ganha e se tem nunca chega, onde os bancos vão escondendo o pão que nos sobra e falta aos pobres, onde os ricos são cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais numerosos e mais pobres, num mundo que é ao mesmo tempo de opulência, de ostentação e de miséria e fome, um mundo cada vez mais igual ao do rico avarento e do pobre Lázaro, um tal testemunho autêntico e "escandaloso" de pobreza francis­cana, seria decisivo. Seria uma contestação, talvez silenciosa, mas mais eficaz e necessária. Seria uma revolução cada vez mais urgente.

E) Respeito pela criação
O respeito pela criação faz parte essencial do ideário franciscano. As coisas criadas revelam a glória de Deus(43). São reflexo do Senhor(44), a imagem do seu Filho(45). São nossas irmãs(46). Reflectem o amor de Deus para connosco(47). Merecem respeito e sujeição(48). Servem para com elas louvarmos o Senhor(49). A pobreza franciscana é também e sempre respeito pelas criaturas.
Num mundo ameaçado pelo desequilíbrio cósmico, pela exploração irresponsável da criação, pelo uso e abuso de tudo, pela invasão do lixo que nos ameaça, pela poluição de rios e das fontes, dos ares e dos mares, pela praga dos fogos nas florestas, pela agressão sonora, com a invasão desordenada do cimento armado a ameaçar sempre mais as zonas verdes das nossas cidades, o exemplo e a voz franciscana, a partir da fé, poderiam ser uma lufada de ar fresco e de esperança na cidade dos homens que corre risco de dar cabo da sua casa comum, o cosmos em que habitamos. O hino oficial poderia ser o Cântico das Criaturas. Sem uma voz assim, podemos acabar por silenciar a Deus e provocar uma derrocada da casa de todos nós que viria a cair sobre as nossas cabeças como consequência do sacrilégio que é a nossa anti-criação.

F) A recuperação da contemplação e do sentido de Deus no mundo.
Na alma Franciscana Deus é tudo. Está no centro. Ele é a razão de tudo. Deus é a nossa luz(50), a caridade e o amor(51), a misericórdia(52), a segurança(53), o nosso Pai(54), o nosso salvador(55), o nosso protector(56), o único bem(57), a fonte de todo o bem(58), a nossa esperança(59), o omnipotente(60), a fonte de alegria(61), o Pai(62) e amigo(63), o nosso guia(64), o benfeitor do homem(65), o Pai dos pobres(66), uma presença que se respira em todas as coisas(67), uma grande promessa para todos nós(68), o alimento da nossa alma(69), alguém que é admirável em todos os que o amam(70).
Num mundo em que, por um lado, não falta nada e por outro há tanta gente infeliz, desgraçada, desesperada, desiludida que não aguenta a vida, que avança só à força de droga, sexo, dinheiro; num mundo a falar de "fossa", sem sentido para a vida, sem razões para viver e para esperar, sem alguém por quem valha a pena viver e morrer, o franciscanismo do Alverne, do Cristo de S. Damião, dos "carceri" de Rivotorto, da Porciúncula, das noites na casa de Bernardo Quinta Vale, um franciscanismo a semear por esse mundo além zonas de silêncio e de paz, seria uma fonte de esperança no terceiro milénio. Seria o reencontrar daquela que já se chama a dimensão perdida. Dimensão que há que encontrar se queremos que o mundo tenha futuro. Malraux já escreveu que o século XXI será contemplativo ou não será. Mauriac disse também que nós, cristãos, escondemos a Deus e o mundo anda para aí aflito, desorientado, desesperado à sua procura e não sabe onde o metemos. É tempo de o mostramos mesmo. Falta-nos oásis. Deus no meio dos desertos do mundo.

4. CONCLUSÃO

O mundo e a Igreja estão pois à espera de portas de saída para novos problemas que há que resolver. Pensemos só, e a título de exemplo, nas desigualdades no mundo. Segundo estatísticas da ONU e do Banco Mundial, nos últimos 30 anos, as desigualdades no mundo duplicaram(71). Por outro lado, tem-se tentado minorar tais desigualdades, só a nível económico, primeiro unindo os mais pobres contra os mais ricos. Não foi solução. Tentou-se depois ajudar os mais pobres a subir sem tocar nos mais ricos. Já se viu que também não deu resultado. A solução possível parece que só pode ser uma solidariedade com os mais pobres, à custa dos mais ricos que têm de ser menos ricos em favor dos mais pobres. Não há outra saída(72). Num mundo assim, só um grande ideal de pobreza, traduzido na vida de muita gente que contagiasse o pensar e o viver de todos nós, poderia ser uma esperança. Fala-se hoje de uma Igreja de desejo a mostrar os grandes desejos do mundo em que ela vive e se encontra e a proclamar as promessas do seu Senhor(73), que são as do sermão da Montanha. Tudo isto, aos vários níveis aqui contemplados, seria a síntese do que eu tentei dizer ao tratar do que poderia ser o franciscanismo no Terceiro Milénio. Seria assim a vida de todos os Franciscanos no Terceiro Milénio, a imagem viva de uma igreja de desejos e de promessas.
Penso por aqui iria passar também o problema das vocações à vida franciscana e o futuro do franciscanismo no terceiro milénio e até o futuro do mundo.

in Cadernos de Espiritualidade Franciscana, nº 11, pp. 41-47.


Notas:
1 Celano T., Vida Primeira, n38 em Fontes Franciscanas, 2ª Ed Franciscana, Braga 1994 p. 261.
2 Francisco, S., Primeira Regra, Ibidem, p. 136.
3 Celano T., o.c., p. 26 L
4 Frei Leão, Espelho de Perfeição. n 85, Ibidem. p. 117
5 Francisco S., Testamento, Ibidem, p. 73
6 Idem, Primeira Regra, 23, Ibidem, p. 153
7 Lc 22,26
8 Celano T., Vida Primeira, Ibidem, p. 261
9 Francisco S., Testamento, Ibidem,. p. 172
10 Idem, Segunda Regra, Ibidem. p.159
11 Celano T.. Vida Segunda, Ibidem, p. 515
12 Boaventura S., Legenda Maior, Ibidem, p. 641
13 Francisco S., Segunda Regra. Ibidem. p. 159
14 Boaventura S., a.c., Ibidem, p. 635
15 Celano T., Vida Segunda Ibidem, p. 525
16 Idem, ibidem
17 Francisco S., Primeira Regra, Ibidem. p. 143.
18 Idem, Segunda Regra, Ibidem, p. 158
19 Idem, Carta a um Ministro, Ibidem, p. 106
20 Idem,. Primeira Regra Ibidem, p. 141
21 Idem,. Ibidem. p. 143
22 Boaventura S., Legenda Maior, Ibidem. p. 6 J 5
23 Florinhas de S. Francisco e seus Companheiros, Ibidem, 1219.
24 Idem. Ibidem.
25 Francisco, Câintico das Criaturas, Ibidem, 78
26 Idem, Segunda Regra, Ibidem, p. 156
27 Legenda Perusina, Ibidem, p. 975
28 Francisco, Primeira Regra, lbidem, p. 138
29 Idem, Segunda Regra. Ibidem, 159
30 Celano T., Vida Segunda, Ibidem, p. 433
31 Idem, Vida Primeira, Ibidem, p. 234
32 Legenda dos Três Companheiros, Ibidem, p. 833
33 Boaventura S., Legenda Maior, Ibidem, p. 652
34 Francisco, S., Segunda Regra, Ibidem. 156
35 Idem. Ibidem.
36 Florinhas de S. Francisco, Ibidem, p. 222.
37 Francisco, S., Primeira Regra, Ibidem, p. 138
38 Idem, Segunda Regra, p. 159
39 Boaventura S., Legenda Maior, Ibidem, p. 649
40 Legenda dos Três Companheiros. Ibidem, p. 825
41 Celano, Vida Primeira, Ibidem. p. 292
42 Idem, Vida Segunda, Ibidem, p. 434
43 Francisco, Carta a todos os Fiéis, Ibidem, p. 92
44 Celano T., Vida Segunda, Ibidem, p. 504
45 Idem, Ibidem, p. 503
46 Francisco S., Cântico das Criaturas, lbidem, p. 77
47 Idem, Ibidem
48 Idem, Saudação às virtudes. Ibidem. p. 77
49 Idem, Cântico das Criaturas. Ibidem. p. 77
50 Idem, Paráfrase do Pai Nosso. Ibidem. 54
51 Idem, Primeira Regra. Ibidem. p. 145
52 Idem, Oficio da Paixão do Senhor. Ibidem, p. 70
53 Idem, Louvores a Deus, Ibidem. p. 53
54 Idem, Oficio da Paixão, Ibidem, p. 57
55 Idem, Louvores a Deus. lbidem, p. 53
56 Idem. Ibidem.
57 Idem, Primeira Regra, Ibidem. p. 154
58 Idem. Ibidem. p. 146
59 Idem, Louvores a Deus. Ibidem. p. 53
60 Idem. Cântico das Criaturas, Ibidem, p. 77
61 Celano T., Vida Segunda. Ibidem, p. 125
62 Idem, Vida Primeira, Ibidem. p. 305
63 Idem, Vida Segunda, Ibidem, p. 443
64 Anónimo Perusino, Ibidem, p. 880
65 Celano T., Vida Segunda, Ibidem. p. 446
66 Boaventura Soo Legenda Maior, Ibidem. p. 654
67 Celano T., "ida Segunda. Ibidem, p. 503
68 Idem, Ibidem, p. 526
69 Idem, Ibidem, p. 444
70 Boaventura S., Legenda Maior, Ibidem, p. 671
71 Garcia Roca 1., Convocatoria de Dios en el Mundo de los jovenes em Selecciones de teologia, Vo1.37( 1998).170
72 Idem. Ibidem. p. 171
73 Idem, Ibidem. p. 163