quinta-feira, 27 de outubro de 2011

A Palavra de Deus é luz para o caminho

A Palavra de Deus é luz para o caminho
Celebração dos 25 anos do Encontro Inter-religioso pela Paz em Assis .
27 de outubro de 1986 – 27 de outubro de 2011
"Se todos os caminhos levam a Roma, o Santo Padre quis que levassem, também, a Assis”. Em 1986 não podia encontrar um lugar mais significativo para um encontro mundial de oração pela paz. Não hesitou: na escolha daquela colina e daquela "estrela". Ele foi o guia iluminado e pertinaz.
João Paulo II tinha-se deslocado a Assis em 3 de novembro de 1978, duas semanas apenas após a sua eleição, depois em 12 de março de 1982, peregrino com os Bispos italianos para o oitavo centenário do nascimento do Poverello. Quando, em 25 de janeiro de 1986, anunciou em S. Paulo, fora dos Muros o encontro para 27 de outubro seguinte, dá o motivo da escolha da cidade de Úmbria, dizendo que Assis é "o lugar que a figura seráfica de S. Francisco transformou num centro de fraternidade universal". E, de fato, os representantes de todas as religiões aí se encontraram, com toda a naturalidade, como "em sua casa". Recordo que o Grande Rabino Elio Toaff, para a oração hebraica, tinha encontrado a área de uma antiga sinagoga.
Para evitar, também, a mínima aparência de sincretismo, o Papa acompanhou, passo a passo, os dez meses de uma minuciosa e laboriosa preparação. Dedicou, ainda, inteiramente, quatro "Angelus" consecutivos para explicar o significado de um acontecimento que alguns tardaram a compreender. Nada foi deixado ao imprevisto e, em nenhum momento, uns rezaram com a oração dos outros. Mas, a não ser nestes momentos propriamente religiosos, o encontro desenvolveu-se na mais fraterna liberdade. Vejo ainda o pequeno autocarro, que de manhã nos levava de Santa Maria dos Anjos à Basílica de São Francisco. Sentados lado a lado, João Paulo II, o Arcebispo de Cantuária, um metropolita russo e o Dalai Lama: não falavam de religião, simplesmente se sentiam felizes por estarem juntos. Vejo ainda o Papa maravilhado como todos nós pelo arco-íris que despontou, de surpresa, sob um céu tempestuoso; à tarde, no grandioso refeitório do Sagrado Convento onde recebia os seus hóspedes, disse-
IRMÃO SOL – SETEMBRO/ 2011 - FFB
4 A Palavra de Deus é luz para o caminho
me, à parte, que aquele sinal fora para ele um sinal visível de uma aliança entre Deus e todos os descendentes de Noé.
Desde aquele dia, Assis tornou-se, no coração de João Paulo II, como que a arca espiritual onde se refugia a humanidade inteira. Nas horas de maior desalento aí se dirige pessoalmente e abre as portas da oração como fez em 9 e 10 de Janeiro de 1993, em plena guerra dos Balcãs e como fará em 24 de Janeiro próximo [2002], face às perturbações que devastam a terra.
Mas trata-se, ainda, de compreender bem o significado de tal passo, insólito e raro. Para isso, é preciso voltar a um importantíssimo discurso aos Cardeais e à Cúria Romana, pronunciado no dia 22 de dezembro de 1986. O Papa confidenciava-lhes a chave de leitura teológica do ato com o qual convidava, pela primeira vez na história, os representantes das Igrejas e das religiões do mundo para um dia de oração, de peregrinação e de jejum pela paz.
Foi então que lançou "um apelo pressuroso para encontrar e manter o espiríto de Assis como motivo de esperança para o futuro", aquele "espírito de Assis" que João Paulo II não deixou de fazer soprar desde há quinze anos nesta nossa terra perturbada e sobre águas revoltas de violência e divisão. Comunidades cristãs, crentes de todas as religiões, como o exemplo de Eliseu que recebeu o manto de Elias, revestem-se hoje do "espírito de Assis" e tornam-se por toda a parte artífices da paz. Assim em cada ano, a Papa desejou enviar uma mensagem de paz aos encontros inter-religiosos de oração, organizados pela Comunidade de Santo Egídio. A originalidade e a audácia de Assis consistiram em pôr no primeiro plano a "energia pura" da oração e do jejum, mobilizando (se posso ousar dizer esta palavra) todos os líderes religiosos a assumir o seu dever imperioso de educar as consciências humanas no serviço da justiça e da paz.
A luz de Natal ilumina e aquece a nossa noite. É louco, com a loucura de Deus, tudo isto que "o espírito de Assis" pode imaginar e criar, no seguimento dos anjos que cantam: "glória a Deus no mais alto dos céus e paz na terra aos homens que ele ama".
"Espírito de Assis" desce sobre nós!
CARDEAL ROGER ETCHEGARAY
(artigo publicado no Osservatore Romano)

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

A profecia do encontro de Assis.

Margelo Barros
Monge Beneditino
Fonte Adital
Tanto na nossa experiência cotidiana, quanto na tradição bíblica, comumente a profecia surge de quem está à margem das instituições e não de quem tem a função de governá-las. Por isso mesmo, precisamos valorizar a iniciativa profética do papa Bento XVI em convidar líderes religiosos das mais diversas tradições espirituais e até homens e mulheres não crentes para, nesta quinta-feira, 27, viverem juntos um dia de reflexão e de meditação sobre a paz e a justiça, em Assis. O papa fez isso para recordar os 25 anos do primeiro encontro desse tipo, promovido pelo papa João Paulo II. No 27 de outubro de 1986, em Assis, o papa reuniu em um encontro de oração mais de 200 representantes das mais diversas tradições espirituais. Na época, João Paulo II enfrentou pressões dentro do próprio Vaticano contra essa iniciativa. Ele a defendeu explicando que era um modo de motivar as religiões para se empenharem mais pela causa da paz e da justiça, que não é um assunto só social e político, mas profundamente espiritual.
Agora, no atual contexto da Igreja e do mundo, retomar essa iniciativa deve ter sido mais difícil ainda para o papa Bento XVI. Em um recente pronunciamento à imprensa, publicado pelo Observatore Romano, o próprio secretário de Estado do Vaticano, o cardeal Bertone, ao explicar o sentido desse encontro inter-religioso em Assis, levou mais tempo em falar dos riscos do relativismo religioso e do sincretismo que esse encontro precisa evitar, do que propriamente dos valores positivos do encontro.
Vamos falar claro: sem dúvida, o ecumenismo e o diálogo entre as religiões dificilmente avançarão a partir apenas de encontros de cúpula, sem participação direta das bases. Também devemos reconhecer: esta forma de encontro proposto pelo papa ainda é muito tímida: os/as representantes das diversas religiões se reúnem no mesmo lugar (a basílica de São Francisco) para orar, mas oram separadamente. Entretanto, seja como for, o gesto do papa em convocar esse encontro e coordenar essa jornada inter-religiosa pela paz e pela justiça é sim uma profecia para as Igrejas e para o mundo atual.
Em primeiro lugar, não teria sentido o papa convidar os líderes de outras religiões para orar, se ele pensasse que essas religiões não valem nada e que sua oração é inútil ou até errada. Ao convidar pastores evangélicos, patriarcas orientais e chefes de outras religiões, como o Dalai Lama, o grande rabino de Jerusalém, sheiks muçulmanos, líderes de tradições africanas e de outras tradições espirituais, para refletir juntos sobre a paz e estar juntos para orar, o papa faz um gesto de reconhecimento do valor espiritual dessas religiões e testemunha que é importante uni-las a serviço da paz e da justiça. Este dia de encontro de oração em Assis revela que, cristãos e não cristãos, são chamados a viver sua fé em um mundo pluralista e na convivência com outras formas de expressar a fé. Essa convivência não põe em risco nossa identidade, mas ao contrário, enriquece nossa espiritualidade. É esta a profecia contida nesse gesto de Assis. Embora limitado pelas conveniências diplomáticas do poder religioso e ainda tentado pelo medo de ousar mais em nome da fé, esse gesto do papa antecipa a possibilidade de que as tradições espirituais do mundo se unam para trabalhar efetivamente pela paz e pela justiça. Orar pela paz e pela justiça pode levar os religiosos a ajudar a humanidade a compreender que, para vencer as violências, as guerras e as injustiças, precisamos organizar o mundo de outro modo e a partir de outros critérios que não sejam o lucro e a competitividade. A Jornada inter-religiosa pela paz e pela justiça que neste 27 de outubro o papa Bento XVI coordena em Assis nos chama todos nós a sermos, como os líderes religiosos reunidos neste dia, "peregrinos da verdade, peregrinos da paz”.

domingo, 2 de outubro de 2011

VOLTA FRANCISCO, VOLTA À TERRA! Ele devia ter se chamado Pascoal



Voara para os céus um homem, um poeta, uma visão nova da vida, um homem como outro não apareceu mais sobre a terra! Voou para o Alto?  Não voltará?  Volta de novo à terra, ó Pai Francisco. Andaste no trabalho ingente e doloroso de arredar os espinhos que escondem no coração do mundo o Reino dos céus; chagaste no trabalho os teus pés e mãos, teu peito estalou de cansaço num rasgão sangrento. E já os lobos amansavam suas gulas e sanhas, e as andorinhas andavam presas no encanto de tua voz,  e os homens deixavam os campos de batalha para correr atrás de ti em convívio fraterno, e até os infiéis, enternecidos, escutavam teus cantares de Paz e Bem.  Parece que já nos sorria o paraíso (O Poverello  São Francisco de Assis, Pe. Fernando Felix Lopes,  Braga, p. 493-494).
1. Quando chega o mês de outubro, nossa atenção se volta para a comemoração de São Francisco, para o desfecho de sua vida, para a páscoa desse homem.  Pensamos também em nós todos, que nos dizemos franciscanos e que, ao longo do tempo da vida, vamos construindo nossa identidade, hoje num tempo de incertezas, numa época de sérios questionamentos.  Desde os primórdios de nossa história fomos compreendendo que ser cristão franciscano era viver em estado de passagem, de andança, de peregrinação.  Roupas e calçados leves, uma vida nas mãos de Deus, uma história a ser construída com as visitas do Senhor,  peregrinos sem muita bagagem e pobres caminhando quase que sem lenço nem documento com outros peregrinos,  também pobres e simples. Esse o sonho de nossa juventude. O peso das obras e as engrenagens da instituição nem sempre ajudam.  É bom contemplar esses momentos finais da vida de Francisco, celebrar sua páscoa e cantar com ele a chegada desta Irmã  que leva para a Terra dos Vivos, a Irmã Morte.
2. Lá está ele estendido sobre a terra, esse Francisco! Sem nada e de tudo cumulado. Um homem que foi se tornando transparente.  Está deitado na terra nua, encarnação total da pobreza.  Canta o salmo, lembra a noite de despedida do Senhor no evangelho de João.  Esperando a chegada de Fra Jacoba, ia se  despedindo de todos, depois de ter  composto a última estrofe para o Cântico das Criaturas.  Havia feito a sua parte.  “Daquele corpo em destroços, ali estendido no chão, cresce e sobe ao apagar-se na distância das  Alturas, a melodia do salmo.  E, subindo, a voz como se fora de um homem renascido, na justiça original, voz de criança, argêntea e bela, abre nas trevas da noite esteira de tanta luz que arrasta consigo um bando de cotovias entontecidas por  aquela madrugada nova” (O Poverello..., p. 493).
3. André Vauchez, celebrado historiador da Idade Média, evoca alguns detalhes da última passagem de Francisco: “Não há razão alguma para colocar em dúvida o relato dos últimos momentos edificantes do final dos dias de Francisco.  Como ele tinha se esforçado por fazer de sua vida um exemplum,  Francisco quis teatralizar sua morte fazendo dela um “drama sagrado”,  revivendo as últimas etapas da vida de Cristo, da Ceia ao Getsêmani, deixando assim aos irmãos inesquecível lembrança. A Legenda Perusina acrescenta um episódio que tem uma nota de humanidade em todo o desenrolar da cena. Poucos dias antes de sua morte, Francisco teria tido a visita de uma viúva de alta linhagem,  Jacoba de Settesoli, que pertencia à família romana dos Frangipani e  pela qual ele tinha uma profunda estima e que era retribuída.  Quando o Poverello pensou em escrever-lhe para informar de seu estado de saúde, espontaneamente ela veio a Assis trazendo-lhe o que era necessário para atravessar essa última etapa: uma túnica cinza com a qual ele podia ser enterrado, cera para fazer as velas e incenso para perfumar o lugar onde ele ia entregar sua alma. Francisco não havia ainda morrido e Jacoba estava ali e trazia  também  um mostacciuollo, um doce feito à base de amêndoas, açúcar e mel,   que Francisco apreciava muito e que ele tinha degustado por ocasião de sua precedente visita. Comeu-o de uma só vez. Esse episódio  acrescenta uma nota pitoresca a esse edificante final de vida:  Jacoba, como mulher não podia entrar na Porciúncula, no interior da clausura.  Francisco teria escapado a eventuais críticas dos que o cercavam  dando  à nobre romana um título masculino de “Fra (Irmão) Jacoba”.  Aquele que, logo em seguida seria celebrado como um novo Cristo, precisou de uma nova Madalena... E ainda: um santo que se respeita não morre comendo doces!  Certamente esta é a razão pela qual este pormenor não aparece nos textos posteriores a 1250 quando a reputação de santidade do Poverello estava  solidamente estabelecida”  (François d’Assise,  Entre l ’ histoire  et la mémoire. Bayard, Paris  2009, p. 219-220).  Uma morte cheia de humanidade!
4. Esta foi a páscoa de Francisco. A páscoa definitiva na total nudez, na dramatizaçaõ que repetia os últimos momentos de Cristo. Sua vida toda, no entanto, fora uma existência de passagens.  Bem no começo de tudo, quando  ainda estava em pecados, o Senhor fizera com que ele começasse  suas passagens, dirigindo-se aos leprosos. O Senhor o havia conduzido... O Altíssimo é que o convidava ao êxodo. No beijo dado ao leproso houve uma passagem outra: o amargo se transformou em doce e o doce em amargo.  Sempre essas passagens que são  sugeridas pelo Senhor. Houve a passagem de viver  dos lucros da loja do pai para a vida unicamente nas mãos de Deus.  Ele e seus irmãos haveriam de ser peregrinos, pessoas com pouca bagagem, sempre em  viagem.  “Os irmãos não se apropriem de nada, nem de casa, nem de lugar, nem de coisa alguma. E como peregrinos e forasteiros neste mundo servindo ao Senhor em pobreza e humildade...” (Regra bulada VI).  Tudo é provisório, só Deus é definitivo.  Reclamar da falta de conforto e buscar segurança é voltar às cebolas do Egito.  Os biógrafos falam que ser peregrino é ser recebido em casa alheia, ter a nostalgia da pátria, irradiar a paz à sua passagem.
5. Assim, no verdor de nossos dias, quisemos nós  que nossa vida também fosse uma existência marcada pela passagem. Tentamos sair de nós mesmos. Prometemos estar sempre a caminho do Senhor numa vida de intimidade, de busca do silêncio, de auscultação dos caminhos que ele quiser nos mostrar.  Pegamos na mão de confrades que começamos a conhecer no noviciado e fomos em frente... talvez ajuntando coisas demais ao longo do caminho:  bens materiais, apegos ao nosso ego, vontade de ter mais do que o necessário, falta de coragem de buscar uma terra distante que Deus nos estava mostrando, carreirismo, vontade de poder... Isso, sim, significa voltar  às cebolas do Egito. Por vezes tivemos a tentação de nos deter e não caminhar como Abraão na certeza de  há uma terra luminosa por detrás da neblina. Nem sempre tivemos coragem de morrer a nós mesmos. Mas muitas vezes, é verdade,  na celebração da Eucaristia,  fomos também fazendo a nossa páscoa e sentimos que, nesses momentos, havia um fogo novo a nos queimar o interior.
6.  Francisco,  um pouco antes de subir o Alverne,  experimentou  aperto no peito e no coração. Tinha a impressão de que a Ordem se lhe escapava das mãos.  Não era aquilo que o Senhor queria dos frades.  Houve densas trevas em sua caminhada.  Sim,  parecia que sua obra estava na rota do desvio. A Ordem tinha crescido demais: “Uma angústia profunda apoderou-se então de Francisco. Não seria desviar a fraternidade de sua vocação original, de seu carisma próprio, querer fazer dela uma Ordem, no sentido estrito  da  palavra?  Sempre será difícil conciliar o espírito messiânico da fraternidade com as exigências de uma Ordem. Uma Ordem  impõe estruturas, uma regra, uma hierarquia; cria inevitavelmente  distinções e,  às vezes,  até exclusões.  Privilegia a instituição, o coletivo.  A fraternidade tal qual concebia Francisco, era antes um espaço de liberdade, onde cada irmão podia viver segundo o Espirito do Senhor. Um lugar de acolhimento de todos. Uma zona franca para a vida pura e irradiante, pela própria qualidade de suas relações” (E. Leclerc, O sol nasce em Assis, Vozes, p. 66-67).
7.  Francisco sofria. Os frades haviam esquecido o espírito de simplicidade. Por vezes, a cólera subia-lhe ao semblante.  Ele foi aos poucos se aproximando de uma área definitiva de passagem, de morte a si mesmo. Estava decepcionado com a Ordem:  “Esta crise moral, agravada pela doença, foi para Francisco a passagem obrigatória para um despojamento radical. Ele se perguntava o que o Senhor esperava dele. O que fazer?  Quase cego, sofrendo de diversas enfermidades, achou bom pedir sua demissão de ministro. Retirou-se para a solidão de um eremitério para esconder seu sofrimento e sua revolta” ( E. Leclerc, idem, p. 68).
8.  Ele não podia fechar-se num mutismo e num isolamento estéril. Não podia ficar ruminando amargura.  Deus o esperava. Foi convidado a empreender uma última passagem. Teve de despojar-se de sua obra pessoal para, no dizer de  Leclerc, tornar-se ele mesmo obra de Deus. Foi convidado pelo Senhor a não se perturbar. A Ordem e a obra eram do Senhor. “Francisco entendeu a exortação. E, como Abraão acreditou na Palavra,  lançou no coração de Deus toda preocupação: Deus é , isto basta! Então, o coração de Francisco, abismando-se na adoração, tornou-se leve. Leve como a cotovia dos campos. Podia de novo expandir-se a céu aberto. Havia recuperado a alegria e o canto. Havia compreendido que a paz do coração é a forma suprema da pobreza” (p. 68).
9. E aí estamos nós no tempo dos redimensionamentos, da refundação, da busca de caminhos novos que possam ser abertos pelo Espírito. Nos tempos de nossos primeiros entusiasmos quisemos (e continuamos a querer) ser do Senhor e fazer de nossa vida uma existência de serviço para os irmãos, na simplicidade de nossa vida fraterna e nas andanças missionárias, tentando dizer, pelo  exemplo e pela palavra,  que o Amor precisa ser amado..  Mas tudo muda. Muda o modo de fazer pastoral. As igrejas se esvaziam. Nossas obras, há tempos atrás tão necessárias para a evangelização, tornaram-se pesadas, vazias e inúteis. Monstros, elefantes brancos! Desfazer-se delas? Custa. A própria vida religiosa  conhece passagens. José  Arregui, OFM, num artigo provocador, publicado na revista espanhola Lumen (2002), escreve: “Creio que é preciso desdramatizar radicalmente a escassez ou ausência de novas vocações: o reino de Deus, o sonho de Deus de um mundo mais feliz, não depende que nossas casas, obras e congregações perdurem. É necessário ir mais adiante e ter a coragem de encarar até mesmo a falta de vocações como um sinal do reino.  Não será uma voz do Espírito, um sinal  do Espírito criador, o espírito de Pentecostes, cheio de imaginação e novidade?   O futuro do Espírito é vida, e a vida é uma novidade permanente.  A vida se sobrepõe à morte quando sabemos aceitar a morte de tudo o que não é vivo, vital, vivificador. É preciso aprender a morrer para aprender a viver, não querer aferrar-se à vida que se vai, não querer reter o tempo, não aferrar-se ao nosso próprio passado. O futuro é a novidade de Deus, a imaginação do Espírito” (Ante el futuro de la vida religiosa, p. 206-207).  Trata-se novamente do tema da passagem. Passagem-páscoa em nossa vida pessoal franciscana e páscoa das atividades, das obras, do peso daquilo que nos impede de sermos transparências do mundo que se chama reino.
10. Importante viver em profundidade. Viver em  profundidade não significa agir freneticamente ad extra nem inventar coisas demais ad intra.  Nossas instituições andam estressadas.  Projetos, programas, encontros de revitalização, reuniões e reuniões, papéis, por vezes muitos papéis. Não podemos desanimar. Necessário reavivar a brasa, a chama. Mais importante é infundir ânimo àqueles que estão com mais de sessenta e espiam o futuro da Ordem com certa reticência. Será fundamental aceitar pascalmente nossa pobreza. Importante será aceitar nossa pobreza, nossos equívocos, nossas perdas. Nessa situação é possível viver com alegria, com dignidade.  Arregui afirma: “Realismo não significa desânimo(...) É possível morrer com confiança e essa, talvez, seja a máxima fecundidade evangélica.  Se vivermos com esse realismo confiante, podesemos, mesmo sendo poucos e idosos e sem fazer nada de especial,  constituir pequenas células de busca e de esperança viva” (p.210).
11. Ignace-Etienne Motte e Gérard Hégo escreveram um livro que fez história e continua atual: A Páscoa de São  Francisco (Ed. Franciscana de Braga). Na conclusão, os autores afirmam que Francisco leva a lógica pascal  do Evangelho até últimas consequências. “Quem é apenas peregrino e forasteiro neste mundo, deve necessariamente  desprender-se efetivamente de todos os bens do mundo: daí o primado da pobreza.  Esta é a contribuição principal da espiritualidade franciscana à espiritualidade cristã. Coube a São Francisco descobri-la e trazê-la à plena luz.  Não o fez através da especulação, pois não era teólogo; fê-lo pela experiência vivida. Peregrino e estrangeiro  neste mundo, conduzido pelo Senhor para a Terra Prometida, a Terra dos Vivos, o Reino dos céus; assim, pode resumir-se a lição de sua vida. Possivelmente ninguém antes dele teria compreendido o Mistério da Páscoa, realizando-o de maneira concreta pela vida de pobreza: a pobreza franciscana é, antes de tudo, uma atitude religiosa que se explica  em grande parte pela mística da Páscoa, a Páscoa de Moisés e a Páscoa de Jesus, morto e ressuscitado e elevado ao Reino dos céus (p.203-204).
 12. Sim, somos homens e mulheres da Páscoa.  Não nos fixamos em nada, a não ser no Senhor que nesses tempos anda pedindo que caminhemos para frente, mesmo na forte e densa neblina.  Está claro: não podemos entrar nessa dança de andar de um lado para o outro, dando a impressão de que estamos renovando não sei o quê.  Visitar nossas origens, soprar as brasas,  viver unidos em nossas casas, deixar que o Senhor nos mostre caminho, deixar que nosso coração bata com as batidas do coração de Deus e não com o frenesi barulhento de um mundo, de um espírito do mundo, que anda querendo que deixemos a trilha da Terra Prometida.
13. “Volta, Pai São Francisco, ao teu trabalho de encher a terra com a paz do Reino de Deus!  Mas se não voltas, então espera-me, ó Pai, espera-me que também me quero partir contigo” ( O Poverello...p. 494).
14. Depois de tudo o que foi dito e refletido nessas linhas, me veio uma ideia não tão absurda.  Francisco, que primeiro recebeu o nome de João dado pela mãe, depois de Francesco, o francezinho, dado pelo pai  Bernardone, na realidade  foi construindo uma vida que se transformou no homem das passagens, da Páscoa, e deveria se chamar  Frei Pascoal.

Frei Almir Ribeiro Guimarães