segunda-feira, 28 de novembro de 2011

UMA LEITURA ALTERNATIVA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS.



Frei Celso Márcio Teixeira, OFM*
Petrópolis - RJ
    
Uma leitura que se tornou comum desde o início do século XX é a chamada sabateriana. O adjetivo “sabateriana”, termo familiar aos estudiosos de franciscanismo, provém do sobrenome de Paul Sabatier. Este pesquisador, a partir do final do século XIX, se destacou como um dos grandes estudiosos de Francisco de Assis, contribuindo decisivamente para os estudos em torno deste santo, a ponto de podermos dizer com propriedade que suas conquistas constituem um marco divisório nas pesquisas sobre o tema. Foi com Sabatier que as investigações de caráter histórico sobre Francisco de Assis ganharam notável impulso. Além de editar criticamente textos antigos sobre São Francisco, escreveu Vie de Saint François d’Assise, sua obra mais famosa e não menos polêmica. Fundou coleções de publicações sobre o santo de Assis, dentre as quais as conceituadas Collection d’Études e des documents sur l’histoire religieuse et littéraire du moyen Âge e Opuscules de critique historique. Fundou também a Sociedade Internacional de Estudos Franciscanos, com sede em Assis, aberta aos estudiosos de franciscanismo de todo o mundo, com congressos anuais. Seus méritos são incontestáveis, tendo sido ele um dos primeiros a fazer a leitura do Francisco-homem, de preferência à leitura do Francisco-santo.
Mas o que caracteriza a leitura sabateriana não é a abordagem de Francisco-homem, mas seus pressupostos. Nossa tentativa será a de fazer uma leitura alternativa à de Sabatier.
1. Leitura sabateriana
O notável pesquisador fez uma leitura muito própria de Francisco de Assis. Pelo fato de ter sido ele o inaugurador dessa leitura ou, pelo menos, o que a aplicou a Francisco, é que preferimos denominá-la de leitura sabateriana. Ela, porém, não terminou com a morte do grande estudioso, mas foi retomada por estudiosos imediatamente posteriores a ele e ainda é praticada por estudiosos e escritores de hoje, caracterizando uma maneira muito comum de abordagem da figura do santo de Assis.
Daí as perguntas: Basicamente, em que consistiria esta leitura? Quais os seus pressupostos fundamentais? Que implicações poderia ela trazer? Comportaria uma modificação da imagem de Francisco? Que imagem de Francisco ela nos apresenta?
Sem dúvida, uma leitura ou interpretação comporta uma imagem que é transmitida. Inevitável e inconscientemente, quando fazemos uma leitura de um personagem como Francisco de Assis, acabamos por projetar nele nossas próprias atitudes, anseios, lutas, problemáticas. Colocamo-nos de tal modo na “pele” dele que o fazemos pensar como nós pensamos, desejar o que nós desejamos, julgar como e o que nós julgamos. Isto, porque nunca conseguiremos desvencilhar-nos de nosso subjetivismo. Jamais alcançaremos a pura objetividade. Importante, no entanto, é ter sempre presente que nossa leitura não coincide absolutamente com a realidade lida, mas representa apenas uma busca da objetividade, um esforço de aproximação da realidade a ser lida ou interpretada. Portanto, qualquer leitura deve ser relativizada, inclusive a que nós nos propomos neste pequeno estudo.
No entanto, embora a objetividade absoluta seja inalcançável (não é o que se pretende aqui), existem abordagens que mais se aproximam e outras que mais se distanciam da realidade lida. O que nos pode garantir uma maior aproximação da objetividade é o uso criterioso e crítico das fontes e o recurso à história, embora saibamos que estas, por sua vez, foram escritas sempre a partir de subjetividades, dentro de contextos sócio-culturais determinados e determinantes.
a) O pressuposto de Paul Sabatier
O pressuposto de Sabatier é que Francisco e a Igreja são polos diametralmente opostos e em permanente tensão. De um lado, Francisco vive de uma maneira que se contrapõe à maneira da Igreja; e, de outro lado, a Igreja procura sufocar a novidade franciscana e, não o conseguindo, faz todo o possível para dominá-la através de uma aprovação jurídica, tendo como finalidade controlá-la e manipulá-la para alcançar seus próprios interesses e colocar a nova Ordem a serviço de sua política. Nessa leitura, não é Francisco que tem a iniciativa de dirigir-se à Igreja para buscar nela proteção e orientação, mas é a Igreja que pretende absorver e neutralizar os questionamentos, contestações e impactos que esse homem pobre estava apresentando por seu modo evangélico de vida. Na busca de seus objetivos, a Igreja, na pessoa do cardeal protetor e utilizando alguns frades letrados, exerce sobre Francisco constante pressão para que o movimento franciscano se curve às pretensões dela.
A leitura de antonímia, isto é, por meio de opostos, oferece o risco de santificação de um polo e de demonização do outro. Fundamentalmente, trata-se de uma leitura maniqueísta. Estabelece-se como método básico de leitura a oposição bem-mal, luzes-trevas, graça-pecado, trigo-joio, como se a realidade humana se dividisse nitidamente em dois campos antagônicos e irreconciliáveis e como se esses campos nunca se mesclassem e se interpenetrassem. Esquece-se que a experiência nos mostra que a realidade humana comporta contradições, que o ser humano é um ser de contradições, pois é, ao mesmo tempo, trigo e joio, luz e trevas, santo e pecador.
b) A utilização das fontes
A partir desse pressuposto fundamental, Sabatier vê nas primeiras fontes hagiográficas surgidas no âmbito da Ordem franciscana o dedo da Igreja. Por ter sido a primeira hagiografia escrita a pedido do papa, ele de antemão a rejeita sistematicamente, bem como outras que dela dependem, sem sequer entrar no mérito delas. Pelo fato de essas hagiografias tecerem elogios ao papa e ao cardeal Hugolino e mostrarem uma imagem positiva de certos personagens da Ordem, como Frei Elias, ele conclui que elas não são fidedignas. Dá, então, preferência a fontes tardias do final do século XIII e início do século XIV que espelham não tanto o contexto de Francisco, mas o de grupos extremistas que começaram a surgir dentro da própria Ordem franciscana a partir da metade do século XIII.
É verdade que ele insiste em que a prioridade cabe aos escritos de São Francisco. Mas a leitura dos escritos de Francisco é feita por ele dentro e a partir do mesmo pressuposto. Apenas para citar um exemplo: Sabatier vê no Testamento de Francisco um inconsciente insurgir contra a Regra definitiva. Segundo seu modo de ler, a Igreja, ao confirmar a regra franciscana por meio de uma bula papal, “teria aprisionado” a iniciativa evangélica da Ordem franciscana. O Testamento de Francisco, protestando contra a confirmação-estratificação da regra, retomaria os ideais de Francisco anulados pela bula papal. Esta leitura contradiz o próprio texto do Testamento, em que o santo explicitamente afirma que este não se opõe nem se coloca acima da regra, mas é apenas uma exortação para que a regra seja mais catolicamente observada.
c) A imagem de Francisco
Uma primeira imagem que se infere da leitura sabateriana – e aqui não se compreende apenas a leitura feita por Sabatier unicamente, mas por muitos que percorrem a sua trilha – é a de um Francisco ingênuo que, em sua simplicidade e humildade, se deixa manipular pelas autoridades eclesiásticas e se lhes submete como um cordeiro indefeso diante de um lobo voraz; a de um Francisco sem fibra diante de frades que se impõem e fazem da Ordem o que bem entendem; a de um Francisco incapaz de conduzir os destinos da Ordem, o qual deve ceder às pressões dos frades, especialmente dos letrados, e modificar a regra de acordo não com sua vontade, mas para atender aos interesses deles.
Outra imagem resultante desta leitura é a de um Francisco reformador da Igreja e da sociedade, segundo o modelo de Lutero ou de Calvino, o qual, porém, não conseguiu seu intento, pois a Igreja teria sido bastante hábil, absorvendo-o dentro da “oficialidade” para anular-lhe o impulso renovador e quaisquer pretensões de reforma. Uma justificativa talvez para o fato de Francisco não ter passado à história como um crítico reformador da Igreja e da sociedade, ou como um irreverente contestador, ou talvez até mesmo como um renitente herege.
Ainda outra imagem é a de um Francisco vítima não apenas das manipulações de poder por parte da Igreja, mas também das incompreensões e rebeldia dos frades, como se estes se conspirassem contra ele, no intuito de colocar a Ordem em caminhos contrários às opções das origens. E a redação da regra bulada seria o resultado das manobras dos frades, contra a vontade de Francisco.
2. Considerações críticas
Antes de apresentarmos uma leitura alternativa, faz-se necessário tecer, ainda que brevemente, algum comentário ou consideração às posições de Sabatier com relação aos três itens abordados: pressuposto, utilização das fontes e imagem de Francisco.
a) Quanto ao pressuposto – Pressupostos podem ser evidentes, porque devidamente provados, menos evidentes e não evidentes. Nos dois últimos casos, eles têm que ser fundamentados, as afirmativas justificadas, e as conclusões comprovadas. Deve-se levar em conta aquele princípio básico da lógica que diz: quod gratis affirmatur gratis negatur. Este princípio adverte que tudo aquilo que é afirmado gratuitamente, sem comprovação, é passível de negação gratuita. Portanto, sem uma comprovação suficiente dos pressupostos, corre-se o risco de uma leitura puramente hipotética, perpassada de suspeições, na qual prevalece não tanto a realidade lida, quanto o subjetivismo de quem a lê e interpreta. E a hipótese, em qualquer campo da ciência, é “verdade” a ser comprovada.
b) No que concerne à utilização das fontes – A rejeição apriorística das primeiras hagiografias, igualmente sem uma comprovação que a justifique, negando-lhes sem mais a fidedignidade, não deixa de caracterizar-se como posição de puro subjetivismo. E, curiosamente, as fontes tardias que a leitura sabateriana utiliza também não lhe dão respaldo em seu pressuposto fundamental.
É claro que as primeiras hagiografias, como quaisquer outras, espelham a ótica de seus escritores com todos os seus condicionamentos sócio-culturais. A rejeição de um grupo de fontes por causa de subjetivismos levaria coerentemente à rejeição de toda e qualquer fonte.
Além do mais, não se pode esquecer que os primeiros hagiógrafos estavam sob o controle da comunidade, isto é, eles não podiam inventar ou falsificar os dados, pois aqueles que viveram com Francisco ainda estavam vivos. Interessante é que Frei Leão, companheiro de Francisco e apontado por Sabatier como o legítimo hagiógrafo dele em oposição aos primeiros, em uma carta escrita em Gréccio em 1246, atesta, juntamente com Ângelo e Rufino, a fidedignidade das primeiras hagiografias. Literalmente se diz na carta: “há algum tempo foram redigidas legendas de sua vida... em linguagem tão verídica quão elegante”.
c) Com relação à imagem de Francisco – Uma primeira consideração a ser feita é a de que Francisco era filho de Pedro Bernardone e herdara do pai a tenacidade. Se ele enfrentou o pai de igual para igual, é porque tinha a mesma têmpera, sem temer as consequências (ser deserdado pelo pai, sem sequer levar consigo a roupa do corpo). Na leitura sabateriana, não sobressai aquele Francisco vigoroso que, em 1209, ainda desconhecido, se dirigiu a Roma para pedir aprovação de sua “forma de vida” e, questionado sobre a dificuldade de seu propósito, o defendeu sem concessões, recusando com consciência e firmeza a proposta do cardeal encarregado de encaminhar ao papa os pedidos de aprovação de regras religiosas. E manteve, na mesma ocasião, esta firmeza diante do papa Inocêncio III, firmeza mostrada também ao bispo de Assis que lhe propusera adquirir propriedades como as Ordens monacais. A imagem de um Francisco manipulável não condiz com o que algumas fontes tardias narram sobre ele em episódio, a ser datado dez anos depois ou pouco mais, em que, diante de um pedido de alguns frades letrados com relação à regra, apresentado pelo cardeal Hugolino, o santo mostrou a mesma inflexibilidade de 1209. Noutra ocasião, ao mesmo cardeal Hugolino, que queria nomear alguns frades como prelados da Igreja, Francisco respondeu com humildade, mas também com firmeza: “Quero que meus frades deem frutos na Igreja em sua condição de menores, não como prelados”.
Com esta resposta, cai por terra também a imagem de Francisco-reformador. Se ele quisesse ser um reformador da Igreja, ele próprio promoveria estrategicamente seus frades a cargos de influência. A minoridade franciscana, de fato, não condiz com a pretensão de tornar-se reformador da Igreja ou da sociedade.
Quanto a Francisco-vítima, trata-se de uma imagem transmitida muito sutilmente pelas fontes tardias, especialmente quando estas mostram Francisco como que doentiamente ocupado em lamentar e em recriminar os maus comportamentos dos frades. Sem dúvida, havia maus frades naquela época, como sempre os houve e há. Certamente Francisco sofria ao ver abusos, ao constatar a defasagem entre ideal proposto e realidade vivida. Mas deduzir disto uma conspiração dos frades contra Francisco é tirar conclusões que as premissas não permitem. Concluir que a regra bulada foi redigida à revelia de Francisco ou por pressão dos frades é advogar um complexo de perseguição ao santo.
3. Uma leitura alternativa
Ao iniciar seu processo de conversão, Francisco não pensava em fazer oposição a ninguém nem a nada. Motivo para recriminar a Igreja e a sociedade da época ele tinha em profusão. Ele próprio reconhecia que a Igreja tinha seus pecados e que a hierarquia estava caminhando à distância do Evangelho e, algumas vezes, na contramão do Evangelho. Ele tinha inteligência suficiente para perceber a realidade eclesial que o cercava. Prova disto é que em seus escritos ele faz alusão ao pecado do clero. Mas em lugar nenhum de todos os seus escritos se percebe qualquer indício de que ele se propunha, a si e aos frades, a tarefa de reformar a Igreja e a sociedade. Em lugar algum dos seus escritos se percebe o mínimo sinal que pudesse sugerir que ele fizesse oposição à Igreja como um todo ou à hierarquia. Pelo contrário. Chegou a afirmar que, mesmo sendo pecadores, os membros da hierarquia eram seus senhores. Aliás, se Francisco quisesse fazer oposição à Igreja, ter-se-ia tornado de início um herege, caminho mais fácil e coerente para a oposição naquela época.
Quando ele se dirige à Igreja para pedir aprovação de sua “forma de vida”, tem plena consciência de que seu propósito constitui uma alternativa, não uma oposição. Se fosse oposição, como entender que pedisse aprovação exatamente ao suposto adversário?
De sua parte, a Igreja o questiona, propondo-lhe os caminhos já existentes, a saber, que ele vivesse com seu grupo uma das regras antigas. Não se trata de querer manipular desde o início o propósito de Francisco e de seu grupo, mas de um procedimento normal, em que se questiona o que se propõe como específico e se discutem os detalhes da vida, tais como sobrevivência, trabalho, organização do grupo, possibilidades e maneiras de aceitação de novos membros, presença e atuação dentro da Igreja, etc. Trata-se de uma negociação. E é possível que em matéria de somenos importância Francisco tenha cedido às sugestões de quem o questionava. Pequenos acertos necessários para dar consistência e coesão organizativa ao grupo, uma ajuda antes que uma manipulação. Alegar que a Igreja os manipulou por se tratar de pessoas ignorantes, é desconhecer a realidade do grupo. Três dos doze frades que compunham e que estavam à frente do grupo podiam não ter grandes estudos, mas eram pessoas experientes. Francisco tinha experiência do comércio, sabia negociar; Bernardo de Quintavalle era um homem rico, certamente não devia ter sido tão ignorante; Pedro Cattani era formado em Direito.
Interessante é observar que o cardeal encarregado desses questionamentos foi considerado pelos frades da primeira hora não como adversário que os queria sufocar, mas como “cardeal protetor” da Ordem, consistindo sua ajuda não somente nesses questionamentos iniciais, mas principalmente na defesa da novidade que ele assumiu diante do colégio dos cardeais reunidos em consistório.
E a Igreja compreende e aprova o diferente de Francisco como caminho alternativo, não como oposição. Com toda a certeza, não o teria aprovado, se tivesse visto nele uma oposição. Mais ainda, teria proscrito o grupo como um bando de hereges, como soía acontecer. Pelo contrário, deixou liberdade ao grupo para que explicitasse melhor os caminhos a percorrer, pois a Igreja também era consciente de que se tratava de algo realmente novo.
A aprovação, porém, não significava ausência de conflitos. Certos setores da Igreja, como bispados e paróquias, viam o caminho alternativo de Francisco com desconfiança e suspeita. Em algumas dioceses e paróquias, os frades eram proibidos de pregar. Em outras, eram considerados hereges ou confundidos com eles. Mas isto não significa que devamos considerar a Ordem como vítima de uma oposição sistemática da Igreja. Trata-se de um processo normal. Em qualquer sociedade, o aparecimento de um grupo diferente ou de uma proposta alternativa causa estranheza a certos setores. E a inserção de um grupo novo na sociedade não se dá sem arranhões. E o grupo novo tinha a tarefa de encontrar na Igreja e na sociedade o seu espaço e desempenhar seu papel específico, caso contrário, ou se colocaria à margem da sociedade ou teria que abandonar o caminho alternativo. Trata-se, portanto, de processos históricos absolutamente normais. Com a Ordem franciscana não se deu de modo diferente.
Conclusão
A leitura alternativa apresenta um Francisco também alternativo, no sentido de que ele propôs um caminho alternativo de vida evangélica. Ele não pretendeu substituir nada do que já existia nem opor-se a instituição alguma; nem fazer um caminho paralelo, como foi, por exemplo, a reforma luterana, mas inserir-se na instituição existente; nem impor-se como o único caminho válido, mas respeitando a pluralidade. Ele deu sua contribuição própria, sem tornar-se reformador.
Esta leitura evita dramatizações que se criaram em torno de Francisco e liberta-o da síndrome de vítima que comumente se lhe atribui ou sob a qual ele é interpretado (vítima de conspiração dos frades e das manipulações da Igreja). Reconhece que houve conflitos nas relações com setores da Igreja, que ele sofria quando seus frades não viviam de acordo com as opções de origem, mas considera isto como processo histórico normal.
Apresenta um Francisco não ingênuo, mas inflexível no essencial; iletrado, mas suficientemente experiente e capaz de propor e de defender seu propósito diante da autoridade máxima da Igreja.
Enfim, esta leitura prefere valorizar Francisco pela sua vida a engrandecê-lo por supostas perseguições sofridas.
Texto publicado na Grande Sinal de setembro/outubro 63/2009/5
* Frei Celso Márcio Teixeira é da Ordem dos Frades Menores, doutor em Espiritualidade atualmente leciona Teologia Espiritual e Espiritualidade Franciscana na Faculdade de Teologia - ITF. 
Fonte: Http://www.franciscanos.org.br/itf/artigos/2011/011.php

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

JESUS CRISTO EM S. FRANCISCO.


Por  Fr. David de Azevedo OFM


Fonte cadernos franciscanos paginas edição 35 paginas 18 -25
JESUS CRISTO EM S. FRANCISCO
O documento “Declaração sobre a Vocação da Ordem nos Dias de hoje”, produzido pelo Capítulo Geral da Ordem dos Frades Menores celebrado em Madrid em 1973, declara logo no início: ―No centro da vida franciscana encontra-se a experiência de fé em Deus no encontro pessoal com Jesus Cristo. É o que atestam os escritos de Francisco e outros textos. Sob qualquer aspecto que se aborde – oração, fraternidade, pobreza, presença no meio dos homens – todo o projeto evangélico nos remete continuamente para a fé. (n. 5). A palavra principal é: ―encontro pessoal.
Verdadeiramente a Pessoa de Jesus é a fonte, o centro e o segredo da vida de S. Francisco; e deveria ser também o coração de toda a experiência franciscana, Francisco não teve em vista qualquer problema de apostolado: combater os albigenses ou restaurar a santidade do Povo cristão. Nem tão pouco um problema espiritual: promover a sua santificação pessoal ou definir e estruturar um perfil de santidade. Tudo brotou espontaneamente de uma paixão de amor por Jesus. Foi uma vivência totalmente centralizada na Pessoa de Jesus. Uma relação de amor. Não uma relação de interesse, fosse este em favor da Igreja em geral, fosse em favor do aperfeiçoamento pessoal seu ou dos outros. Esta postura, indispensavelmente de relação pessoal tem depois reflexos práticos na sua vida e impulsos revolucionários quer no que se refere à vida dos indivíduos, quer no que se refere ao conjunto da humanidade como tal. É decisivo, porém, tanto para a renovação da Ordem, como para a formação dos novos franciscanos, ter consciência do ponto de partida que se toma: se o funcional – ver a Ordem em função da Igreja -; se o relacional – ver o franciscanismo como relação de amor. Ter consciência de que a grande prioridade é a relação de amor. Também para a felicidade dos homens.
Vamos limitar-nos aos Escritos de S. Francisco, embora abertos a alguns testemunhos dos seus biógrafos. Demorar-nos-emos, primeiro, a contemplar a paixão amorosa de Francisco por Jesus; depois, os mistérios de Jesus mais vívidos por Francisco; e, finalmente, esboçaremos alguns traços do perfil de Jesus.
A Paixão Amorosa de Francisco por Jesus
Depois dos primeiros passos da sua conversão, é a Pessoa de Jesus que surge imediatamente diante do olhar infantil e extasiado de Francisco. A Pessoa de Jesus em primeiro plano: grande, linda, luminosa, encantadora, avassaladora. Tudo o mais se esbate e perde na sombra. Fica só ela. Os problemas sociais e religiosos do mundo de então, os pecados e as preocupações da Igreja, as inter-rogações da inteligência e as opiniões dos teólogos, os problemas pessoais dele, sonhos de grandeza e tribulações do espírito – os seus problemas interiores, sobretudo – tudo isso passa para segundo plano ou fica como que perdido no vazio da memória que de repetente se forma. São Boaventura, referindo uma aparição do Crucificado anterior à que aconteceu na capelinha de S. Damião, parece acentuar este aspecto puramente pessoal do encontro de Francisco com Cristo. Não há ali a preocupação da igreja que ameaça ruína, como na visão de S. Damião, mas tão-só a presença de Jesus. (FV p. 21). Tomás de Celano, igualmente, captou bem este segredo da experiência de Francisco: ―Toda a sua alma tinha sede de Cristo. O Cristo votava, não apenas o coração, mas todo o corpo (2 C94). E na Vida Primeira: ―Os irmãos que com ele viveram sabem como a toda a hora lhe aflorava aos lábios a recordação de Jesus e com que enlevo e ternura sobre ele discorriam (…). Que intimidades as suas com Jesus! Trazia Jesus no coração, Jesus nos lábios, Jesus nos ouvidos, Jesus nos olhos, Jesus nas mãos, Jesus presente em todos os seus membros! (1 C 115).
Mas voltemos a S. Francisco. A sua paixão transparece primeiro na própria maneira de falar, nos nomes que dá a Jesus e na emoção que lhes acrescenta servindo-se de adjetivos de encanto. O nome mais freqüente é ―Nosso Senhor Jesus Cristo”, que aparece pelo menos quarenta e cinco vezes, com freqüência aquecido com os adjetivos “santíssimo”. Em contexto eucarístico: ―Santíssimo Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo” (8 vezes); e noutros: ―Mãe do nosso santíssimo Senhor Jesus Cristo” (OP, antífona); ou “altíssimo”: “quero seguir a vida e a pobreza do nosso altíssimo Senhor Jesus Cristo (UVC).
Outro nome muito freqüente é o de “Filho de Deus” (Umas 25 vezes). Também este enriquecido com adjetivos ardentes. “Teu dileto Filho”(PPN 6;OP 7, 3; 15, 3; Ex 5, 1); ―Teu amado Filho” (PPN 7; OP 9, 2; SVM 2; 1 R 23, 5; T 40) Teu filho muito amado” (1 R 23, 6).; ―Teu santíssimo e dileto Filho” OP antífona); ―seu Filho bendito e glorioso”(2 CF 11); “Cristo, Filho de Deus vivo” (CO 26; 1 R 9, 4); “Deus e filho de Deus”(CO 27) “verdadeiro Filho de Deus”(Ex 8); “Altíssimo Filho de Deus”(T 10); “Teu único Filho”(1 R 23, 1). E outros semelhantes.
A emoção, porém, tem mais força e mais ternura quando se lê o texto seguido. Só dois. Na Segunda Carta aos Fiéis, ao referir-se à Anunciação, conta: ―O Pai altíssimo, pelo seu arcanjo S. Gabriel, anunciou à santa e gloriosa Virgem Maria, que esse Verbo do mesmo Pai, tão digno, tão santo e glorioso, ia nascer do céu a tomar carne verdadeira da nossa humana fragilidade em suas entranhas. E sendo Ele mais rico do que tudo quis, no entanto, com sua Mãe bem-aventurada, escolher vida de pobreza (2 CF 4-5). E na primeira versão da mesma carta, referindo-se a Jesus: ―Oh! Como é glorioso ter no céu um Pai santo e grande! Oh! Como é santo ter tal esposo, consolador, belo e admirável! Oh! Como é santo e amável ter tal irmão e tal filho, agradável, humilde, pacífico, doce e mais que tudo desejável, Nosso Senhor Jesus Cristo, que deu a vida pelas suas ovelhas (1 CF 11-13).
Outra forma eloqüente e singela desta paixão de Francisco por Jesus era espontaneidade com que tudo lhe acordava na mente a lembrança do seu Senhor: ―Ao ver as flores, diz Tomás de Celano, imediatamente se reportava à contemplação dessa outra flor primaveril, radiosamente nascida do tronco de Jessé (1 C 81); (…) uma ovelhinha num rebanho de cabras fazia-lhe lembrar Jesus entre os fariseus (1 C 77); um vermezinho rastejando pelo chão trazia-lhe ao pensamento Aquele de quem o profeta disse ―Eu sou um verme e não um homem‖ (1 C 80); as pedras do caminho recordavam-lhe Jesus que foi a ―pedra angular; o fogo evocava no seu espírito Aquele que de si disse: ―Eu sou a luz do mundo; e assim praticamente a propósito de todas as criaturas.
Mistérios de Jesus mais presentes na alma de Francisco
Se em algum campo Francisco viveu a pobreza – a pobreza como gratuidade – foi na contemplação de Jesus. Francisco não se preocupa de si. Só vive o encanto e a gratidão de ser amado. Só vive o seu fascínio por Jesus. Devido à obsessão do pecado, a espiritualidade cristã está muito inclinada para o homem: salvação eterna, conversão moral, caminhada na perfeição… Francisco parece esquecer-se de si. Contempla Jesus. Mesmo na Paixão, não são os problemas humanos que dominam Francisco mas aquilo que Jesus viveu nesses momentos. Os mistérios mais presentes são a Encarnação, a Eucaristia e a Paixão.
Uma das originalidades de Francisco é a aproximação dos dois primeiros: a Eucaristia e a Encarnação. Não como faz S. Paulo, que relaciona a Eucaristia mais com a Paixão. Além do que contam as Legendas sobre o Natal, a Encarnação está muito presente nos Escritos de Francisco: na 2 Cf 4-18, na 2 Cf 23-29; e OP 7. 11.15.
O aspecto que mais encanta S. Francisco é a infinita descida de Deus. Tanto na Encarnação como na Eucaristia. A motivação não é primeiramente o pecado, mas a aproximação de Deus ao homem. O desejo de estar com o homem. Na Exortação 1ª: : ―Por isso, ó filhos dos homens, até quando haveis de ser de cora-ção duro. Porque não reconheceis a verdade e acreditais no Filho de Deus? Eis que Ele se humilha cada dia, como quando baixou do seu trono real, a tomar carne no seio da Virgem; cada dia vem até nós em aparências de humildade; cada dia desce do seio do Pai, sobre o altar, para as mãos do sacerdote‖ (Ex 1ª 14-18). E com maior emoção na Carta a toda a Ordem. Depois de uma exortação aos irmãos sacerdotes, exclama: ―Que o homem todo se espante, que o mundo todo trema, que o céu exulte, quando sobre o altar, nas mãos do sacerdote, está Cristo o Filho de Deus vivo! Oh! Grandeza admirável!, Oh! Condescendência assombrosa, oh! Humildade sublime, oh! Sublimidade humilde, que o Senhor de todo o universo, Deus e Filho de Deus, se humilde a ponto de se esconder, para nossa salvação, nas aparências de um bocado de pão. Vede irmãos, a humildade de Deus e derramai diante dele os vossos corações; humilhai-vos também vós para que ele vos exalte. Em conclusão: nada de vós mesmos retenhais para vós, para que totalmente vos possua aquele que totalmente a vós se dá‖ (CO 26-29). Note-se a alusão implícita ao amor esponsal. O fundo do pensamento não é o pecado, mas o amor de esposo de Deus conosco. Na Segunda Carta aos Fiéis há referência mais clara à remissão do pecado, mas a presença da Eucaristia ouve-se como uma melodia de fundo aberta pela palavra: ―sobre eles repousará o espírito do Senhor e neles fará morada e mansão” (2 CF 48-56). O mesmo pensamento na 1 R 22, 25-27.
A Paixão é contemplada principalmente no chamado Ofício da Paixão, mas também aí o que aconteceu a Jesus faz esquecer o lado humano. Francisco como que se faz possuir pela Pessoa de Jesus e é Este quem entra em diálogo com o Pai celeste. Neste diálogo é também muito significativo que Jesus pouco se lamente dos sofrimentos físicos e quase só se lamente dos sofrimentos do coração: a ingratidão e perfídia dos inimigos, ― E me tornaram o mal em paga do bem e o ódio em paga do amor (1,3.4); Armaram-me laços aos pés e encurvaram-me a alma(3, 6); ―Calcam-me aos pés.. os meus inimigos e espezinham--me todo o dia (4, 1. 2); o abandono dos amigos: ―Meus amigos e vizinhos já vinham para mim, mas pararam; e os meus parentes detiveram-se ao longe‖ (1, 7); ―Procurei quem de mim tivesse compaixão, mas não achei‖ (2,8), ―Mais que os meus inimigos, tornei-me objeto de muito opróbrio para os meus vizinhos‖ (4,8), ―Tornei-me como que um estranho para os meus irmãos, como um estran-geiro para os filhos de minha mãe‖(5,8); a humilhação: ―Tu conheces a minha humilhação e confusão e a minha ignomínia (2,6), ―O meu coração fez-se como cera a derreter-se no meu peito (6,7). Com muitas lamentações semelhantes, Jesus, pela boca de Francisco, vai apresentando seus sofrimentos ao Pai. O sofrimento físico também aparece, mas de relance e sintetizado numa ou outra palavra: ―golpes de azorrague (5,10); ―tenho os ossos desconjuntados (6,6); ―agravaram as dores das minhas chagas(6, 10).
A par do queixume, abundam outros sentimentos positivos, em expressão bela e emocionada: a prece ao Pai para que venha em seu favor; a confiança no poder e amor do Pai; o louvor ao Pai pela sua intervenção e vitória sobre os inimigos, etc. Assim em alguns salmos, principalmente a partir do salmo 7, que nos fazem captar fulgores de ressurreição: ―Gentes todas aplaudi batendo palmas… Porque o Santíssimo Pai do céu, nosso Rei desde toda a eternidade, resolveu enviar lá do alto a seu dileto Filho e Ele operou a salvação no meio da terra (7, 1. 3.); ―Cantar-Te-ei, Senhor, Pai santíssimo, Rei do céu e da terra, por me teres consolado. Tu és o meu Deus e salvador (14 1-2).
O mistério da Salvação aparece noutros muitos escritos – CO 3, CO 46; Ex. 6ª; 1 R 22, 2; 1 R 23, 3 – as mais das vezes como simples referência; mas, com um simples adjetivos, Francisco envolve o mistério de ternura e adoração. Só um texto. Na 2 Cf, depois de falar da Encarnação e da instituição da Eucaristia, entra na Paixão do Senhor com a oração no Jardim das Oliveiras, no fim da qual recorda: ―Ora a vontade do Pai foi esta: Que seu Filho bendito e glorioso, que Ele nos havia dado e que por nós nascera, se oferecesse, por seu próprio sangue, como sacrifício e hóstia no altar da cruz; não por si mesmo, por quem todas as coisas foram feitas, mas pelos nossos pecados, deixando-nos o seu exemplo para seguirmos os seus passos (2 CF 11-13). Na grande ação de graças do capítulo 23 da Regra Primeira, Francisco não esquece Jesus em nenhum dos grandes mistérios da fé: na Criação, na Encarnação, na Redenção e na Ressurreição e Juízo Final; mas se quisermos fazer uma pergunta sobre em qual deles Jesus tem maior relevo para Francisco, diremos que a Encarnação. (1 R 23, 3).
Traços do perfil de Jesus
Quais os traços principais do rosto de Jesus para S. Francisco? Não vamos demorar-nos naqueles que pertencem já à fé cristã – Verdadeira Deus, Verda-deiro Homem, Redentor, Ressuscitado – mas fixar-nos nos que estão mais ilu-minados pelo amor de Francisco. Em primeiro lugar.
Filho de Deus
Já nos referimos a este nome e dissemos que aparece umas 25 vezes, mas de forma implícita a sua presença é maior. Embora não apareça a palavra, o significado está presente na palavra Pai que S. Francisco usa tão freqüentemente. Presente duma forma singular no Ofício da Paixão, pois aí o nome Pai tem uma força muito especial pela ousadia com que Francisco a emprega substituindo a palavra Deus que estava no texto original dos salmos. Sobretudo quando acompanhada do pronome meu: ―Meu Pai santo‖ (1,5); ―Meu Pai santíssimo (2, 11).
A palavra filho não é só uma verdade dogmática, fria e exterior, mas uma expressão densa de afetividade e valor relacional. Diz que Jesus é querido, amado, envolvido de ternura… que Jesus é gerado, alimentado, sustentado na existência, segundo a segundo, pelo Pai, com a doação total do seu ser… É a mais radical forma de pobreza, pois tudo lhe vem do Pai; e, por isso, a mais inestancável fonte de gratidão. a mais radical fonte de alegria e de júbilo.
Dado pelo Pai
Outro traço que marca o perfil de Jesus é o facto de ser dado pelo Pai, verdade sentida vibrantemente por Francisco. É encantadora a Segunda Carta aos Fieis. Já oferecemos esse texto, mas repetimos: ―O Pai altíssimo, pelo seu arcanjo S. Gabriel, anunciou à santa e gloriosa Virgem Maria, que esse Verbo do mesmo Pai, tão digno, tão santo e glorioso, ia descer do céu, a tomar carne verdadeira da nossa humana fragilidade em suas entranhas‖ (2 CF 4-5). E com a mesma emoção, numa alusão explícita ao momento do dom, o Natal, no Ofício da Paixão: ―Porque nos foi dado o santíssimo e dileto Menino e por nós nasceu durante uma viagem e foi deitado num presépio (OP 15,7). E um pouco antes: ―Porque o santíssimo Pai do céu, nosso rei desde toda a eternidade resolveu enviar lá do alto a seu Filho dileto e operou a salvação no meio da terra (OP 7, 3; cf. 11, 6).
Se S. Francisco chorava de alegria ao comer umas côdeas duras porque via nelas uma dom de Deus, qual não seria a sua gratidão ao contemplar ―o santíssimo e dileto Menino que lhe foi dado pelo Pai altíssimo?!. Daqui toda a teologia de Francisco sobre o Pai e sobre a providência divina. Daqui o seu encanto por Jesus. Daqui a ternura que enche toda a espiritualidade franciscana. Jesus era um tesouro, não só pela sublimidade da sua pessoa e da sua obra redentora, mas, sobretudo por ser dado pelo Pai: ―Copiosius namque donat qui maiore corde donat‖, diz S. Boaventura. O dom é tanto maior quanto maior é o coração que dá. No caso de Jesus trata-se do coração do próprio Deus. Daqui a paixão da S. Francisco pela Eucaristia. Tinha saudades de Jesus. Daqui o seu amor pelas criaturas. Não as amava só por terem sido criadas por Deus, mas porque via nelas uma ligação íntima com Jesus. Tudo foi criado para, ―um dia, na plenitude dos tempos, tudo ser instaurado em Cristo Jesus, tudo o que há no céu e na terra (Ef. 1, 10).
Jesus Nosso Irmão
Desse amor divino nasce em Francisco o sentido da fraternidade. Os textos são vibrantes: ―Oh! Como é glorioso ter no céu um Pai santo e grande! Oh! Como é santo ter um esposo consolador, formoso e admirável! Oh! Como é santo e agradável ter tal irmão e filho, aprazível, humilde, pacifico, doce e mais que tudo desejável, que deu a vida pelas suas ovelhas‖ (2 CF 48-56). Foi esse coração divino que deu seu filho com tanta força, que comunicou ao homem sua mesma vida: ―Assim como o Pai vive e eu vivo pelo Pai, assim aquele que me come viverá por mim (Jo 6, 57). Tomás de Celano apanha com muita beleza a alma de S. Francisco ao escrever: ―Rodeava de um amor indizível a Mãe de Jesus, por ter feito nosso irmão o Senhor de toda a majestade‖ (2 C 198). Feito nosso irmão.
Esta fraternidade concretiza-se de muitos modos na convivência de Jesus com os homens, mas há duas linhas particularmente fortes: uma, em relação ao  Pai; e outra, em relação ao homem. Em relação ao Pai, a obediência; em relação aos homens, a solidariedade. Na sua obediência Jesus incorpora toda a humanidade. No drama da Paixão, desde a Oração da Agonia até ao grito “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”, toda a humanidade se tornou “humanidade obe-diente”. Quanto à solidariedade, Jesus é como que a cabeça de família. Torna--se fiador que responde por todos os seus irmãos. Ora Jesus levou esta solidariedade até ao extremo. Podia ter mudado de programa, podia ter organizado um corpo de defesa, podia ter fugido. Não o fez. Foi até à morte. A Cruz é um monumento de fidelidade, de honra, de solidariedade, de fraternidade.
Jesus Pobre
Para S. Francisco a pobreza não é a pobreza sem mais. Não pensa na pobreza como virtude ascética. Não pensa na pobreza como o mundo dos pobres. Para ele, a santa pobreza é a ―pobreza e humildade de nosso Senhor Jesus Cristo‖ (2 R 12,4); a ―pobreza do altíssimo Senhor Jesus Cristo e de sua santíssima Mãe (UVC). Diz na 2 CF: ― E sendo Ele mais rico do que tudo, quis, no entanto, com sua Mãe bem-aventurada, escolher vida de pobreza‖ (2 CF 5).
Por quê?… Porque é que o Verbo de Deus escolheu vida de pobreza?… Não sabemos. Pertence à Liberdade de Deus. Mas parece-nos que podemos fixar duas razões: uma, a verdade; outra, o sentido da pessoa. Se Jesus se apresentasse em trajes de grandeza, havia o perigo de os homens se perderem no caminho: em vez de se dirigirem e prenderem a Ele, Jesus, serem arrastados pela idolatria das grandezas materiais: a riqueza, o prestígio e o poder. Tal terá sido o significado das três tentações no deserto. Jesus afirmou a unicidade radical do Amor: ―Só a Deus adorarás. – Segunda, o sentido da pessoa. Jesus optou pela pobreza para facilitar a convivência com todos… com a pessoa de cada um: pobres, crianças, pecadores, samaritanos, gentios, etc. As riquezas, os títulos acadêmicos, as fidalguias, os cargos públicos… ou mesmo as grandezas religio-sas às vezes funcionam como biombos ou bastidores que dificultam o contacto com o homem na sua intimidade de pessoa. Ora, é na intimidade que nasce o amor.
Jesus Cristo Crucificado
O Cristo Crucificado é o maior contemplado nas Legendas. Não assim nos Escritos de Francisco. As referências são relativamente poucas (PPN 7; 2 CF, 11; Ex 5, 3; Ex. 6, 1; 1 R 23, 3); e, na maior parte delas, limitam-se a uma alusão ao acontecimento. Não tem descrições: da flagelação, da coroação de espinhos, da crucifixão, das três horas na cruz…. Da morte do Senhor. Isto não quer dizer que a figura do Senhor Crucificado não estivesse presente com insistência na sua mente e no seu coração. A prova mais eloqüente é o Ofício da Paixão. Primeiro pela sua beleza humana; e, segundo, por ser uma oração composta por Francisco e por ele recitada, como ofício votivo, todos os dias. Mas significativo ainda é o facto de quase silenciar os sofrimentos físicos e as descrições sangrentas. A Sua oração é silêncio adorador, é contemplação emudecida, é nobreza de alma ajoelhada.
Temos, pois, os seguintes traços. Filho do Pai, Dado, Nosso Irmão, Pobre e Crucificado.
Há ainda uma diferença que não se pode omitir: a atenção dada à humani-dade de Jesus. O primeiro milênio cristão viveu principalmente a divindade de Jesus. A divindade de Jesus aparece bem patente no tímpano das grandes catedrais. Com S. Bernardo começa a impor-se a devoção à humanidade de Cristo, que já fora apontada por Orígenes, Santo Anselmo e S. Pedro Damião.
Esta diferença tem uma importância enorme e revolucionária. A devoção à divindade – Cristo Senhor, Cristo Rei, Cristo Pantocrator, Cristo Altíssimo, etc. – é a teologia da sociedade hierárquica e piramidal do tempo: Papa, Imperador, Senhor feudal, Clero, Povo. A devoção à humanidade faz germinar uma sociedade diferente, caracterizada pela igualdade. Lothar Hardick, em Francisco Símbolo da Mudança da Religiosidade da Idade Média, diz: ―Toda a estrutura do sistema vem do alto para baixo, de cima para a base. Cada superior atribui o feudo e o poder ao inferior. Todo o tecido social aparece com a sua origem em Deus, o Senhor Altíssimo. Para além do Papa e do Imperador, numa graduação descendente até ao último nível social. Encontramos esta mesma concepção também fora do direito feudal. Tudo está ordenado de acordo com o nível da sua relação interior com Deus. o Senhor Altíssimo. Com S. Bernardo, porém, a nova ideologia mantinha-se dentro do mundo monacal. S. Francisco, sem pensar em revoluções, levado pelo seu amor a Jesus, fez com que fosse surgindo no mundo uma nova relação entre os homens, não só de igualdade, mas de fraternidade.
Nós franciscanos temos, por isso, uma grande dívida aos homens do nosso tempo: oferecer-lhes este retrato de Jesus. Francisco conseguiu assimilá-lo, reproduzi-lo… na sua vida e na sua palavra. Foi pena que os seus filhos não lhe apanhassem o segredo: uns fixaram-se no serviço da Igreja; outros fixaram-se na sua santidade pessoal. E Jesus ficou na sombra. Estamos tentando recuperá-lo, mas, por enquanto, ainda não soubemos passar do estudo para a pregação e desta para a vida… porque não começou pelo coração. É um desafio que continua.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O QUE SE DIZ A RESPEITO DE FRANCISCO?

O QUE SE DIZ A RESPEITO DE FRANCISCO?
Por que a ti? Por que a ti? Por que a ti?
Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
 
1.  
 Por que as pessoas andavam atrás de Francisco? Conhecemos o diálogo entre Frei Francisco e Frei Masseo conservado nos Fioretti (n. 10).  Masseo quer saber os motivos pelos quais  todo mundo andava atrás de Francisco.  Por que a ti? Por que a ti?  Por que a ti?  Conhecemos a resposta que o autor coloca nos lábios de Francisco: “Isto recebi dos olhos do Deus altíssimo, os quais, em cada lugar contemplam os bons e os maus; porque aqueles olhos santíssimos não encontraram nenhum mais vil nem mais insuficiente, nem mais pecador do que eu; e assim, para realizar esta operação maravilhosa, a qual entendeu fazer, não achou outra criatura mais vil sobre a terra; e por isso me escolheu para confundir a nobreza e a grandeza e a força e a beleza e a sabedoria do mundo, para que se reconheça que todo bem é dele e não da criatura e para que ninguém se possa gloriar  na presença dele; mas quem se gloriar que se glorie no Senhor, a quem pertence toda honra e glória na eternidade”. Francisco começa dizendo simplesmente que ele existe para dizer com palavras e gestos que todo o bem vem  do Sumo Bem!  Vamos dar a voz  a alguns entre tantos que escreveram sobre Francisco. Eles tentam dizer os motivos  pelos quais tantos andaram e andam ainda hoje atrás de Francisco e ajudam-nos, por nossa vez, nesse tempo refundação e de volta à graça das origens, a formular também a resposta a esta pergunta: Quem é Francisco para nós?   Que a reflexão sobre estes pensamentos nos tornem mais leves, mais lépidos, mais alegres para começar a caminhada rumo a Agudos!!!
2. Omer Englebert escreve: “Francisco é dessas figuras das quais a humanidade sempre sentirá orgulho. Suas qualidades forçam a simpatia; seus defeitos, se os tem, são atraentes; sua santidade nada  tem de esotérico, afetado ou ameaçador; seus dons naturais suscitam geral admiração; e seus ensinamentos exalam tal frescor, poesia e serenidade, que mesmo espíritos embotados podem encontrar neles razões para amar a vida e crer na bondade divina” (Vida de São Francisco de Assis, Omer Englebert. Trad. Frei Adelino G. Pilonetto. EST Edições, P. Alegre, 2004. p. 9).
3. Tomemos as observações feitas por Gérard Guitton  na Introdução de seu Découvir Saint François d’Assise, Salvator, Paris  2004. O Autor elenca opiniões e vários autores e escritores: O agnóstico Ernest Renan diz: “Deve-se dizer que depois de Jesus, Francisco de Assis foi o único cristão perfeito”.  Outro escritor agnóstico, André Malraux: “Será que se pode dizer que Francisco de Assis  tenha sido, na história da Igreja, o último gigante da santidade? Sem dúvida, depois dele, houve outros, mas nenhum deles conseguiu, unicamente por sua força espiritual, revolucionar o mundo ocidental e transformar a civilização como ele fez e até mesmo inspirando uma arte completamente nova...”.  Fr Gérard menciona ainda outros. Lenine afirmaria que ele não teria tido necessidade de fazer a revolução na Rússia se tivesse encontrado três ou quatro  Franciscos de Assis.  Clemenceau  disse que gostaria de ter em seu sangue algumas gotas do sangue de São Francisco.
4. Dois depoimentos fora dos muros da Igreja. O primeiro do austríaco, Kurt  Waldheim, antigo secretário geral da ONU: “São Francisco de Assis é o símbolo da paz, do respeito pela natureza e do amor pelos pobres que fazem parte do ideal seguido pela ONU cuja Carta foi assinada na cidade de São Francisco, que leva o nome do Pobre de Assis.  M. Amadou  Mahtar M’Bow lembra  “ a universalidade, o altruísmo caracterizado por uma vontade de diálogo e defendidos por Francisco de Assis que deseja ser instrumento da paz”.
5. Francisco não está morto. Ele vive. Não se pode “clonar” Francisco. Armindo Trevisam, na Apresentação da versão brasileira do livro de Omer Englebert:  “Em termos absolutamente concretos, a repetição de Francisco de Assis, a sua – digamos com humor – “clonagem” espiritual não teria sentido. Francisco é irrepetível. Foi um carisma concedido à Igreja num determinado século, em meio a determinadas necessidades espirituais. Mas é aqui, precisamente, que intervém um elemento supra-histórico: a graça de Deus. Francisco não está morto, está vivo. Está na glória de Deus e é nosso intercessor. Portanto, não desapareceu da História, porque a graça de Deus o mantém atuante dentro dela. É esse o mistério da comunhão dos santos e da esperança geral da humanidade” (...) “... a figura de Francisco de Assis possui uma tríplice dimensão: “a dimensão histórica, a dimensão sobrenatural, e a dimensão poético-mística que o converte num ideal e num sonho cultural da humanidade. Como promover a ecologia sem nos referirmos ao seu patrono? Como neutralizar as perversões da globalização sem evocar o homenzinho de Assis que pregava o anticonsumismo, limitando-se às necessidades básicas?  Como preservar um mínimo de relacionamento pessoal entre as classes sociais sem reviver a sua caridade universal, que abarcava os próprios lobos e cotovias?”
6. Éloi Leclerc  escreveu inúmeras obras cheias de profundidade e sabor a respeito de Francisco. O autor se encantou por Francisco antes da última guerra, viveu o inferno dos campos de concentração nazista e completou as etapas do seguimento do Poverello depois do fim da guerra e a chegada da paz. O Francisco de Leclerc sempre encanta.  “Há uma secreta vinculação entre a pureza do coração e a mansidão, entre a transparência das profundezas e a serenidade, entre a santidade e a bondade essencial. Talvez, no fundo, a pureza não seja mais do que a transparência do ser, frente à Bondade original. Um homem, pelo menos, assim a entendeu. Era um sábio, embora não cuidasse de o aparecer. Ele viu que a pureza e a mansidão, irmanadas, formavam a face de Deus. Por assim o haver entendido, esse homem renunciou ao poder que gera a violência, e ao dinheiro que está na raiz do poder. Deu de mão a toda ambição de domínio, incluindo a mais sutil de todas, a dos clérigos. Rompeu com o sistema político-religioso de seu tempo, a supremacia temporal da Igreja, as lutas feudais, as guerra santas. Fê-lo sem clamor, sem subverter a opinião pública, com suavidade, humildemente, mas realmente. Num mundo violento, eriçado de torreões, cavado de fossos, o seu universo não conhecia muralhas e torres de vigia. Pobre de bens e de poder, estava em paz com todos, vivia  ao nível de todos os seres, para todos tinha um olhar cheio de luz e de respeito. O olhar, sobretudo, era nele maravilhosamente humano; humanos os sentidos todos. As criaturas já não eram objeto de posse e de domínio. Irmão do sol e das criaturas, caminhava num mundo aberto e  esplendoroso. Era o pai de uma multidão de amigos.  Nele se congraçavam a pureza e a ternura, e nenhuma barreira lograva impedir que se expandissem pelo mundo. O seu horizonte  não era a Cristandade temporal, com seu prestígio, as suas fronteiras  a defender ou  a dilatar, mas apenas Jesus Cristo que urgia amar e servir, o homem que se impunha salvar.  Foi longe nesse propósito, para além das fronteiras da Cristandade. Em plena Cruzada, foi para o Oriente, não para combater ou desempenhar meras funções de assistente espiritual, mas para reencontrar os outros, os que não pensavam como ele. Várias vezes se avistou com o sultão Melik-el-Kamil. O desprezo de qualquer sucesso pessoal, o brilho que de si próprio irradiava impressionaram de tal modo o chefe muçulmano que chegaram a discorrer longamente, como bons amigos, sobre as respectivas religiões. Teve mesmo que declinar honrarias e benesses com que o sultão o desejava distinguir. E se este não aceitou a fé cristã ficou lançada uma ponte entre o Ocidente e o Oriente.  Foi, sem dúvida, um grande momento da história dos homens (...).  “... a sombra perseguia esse homem de coração solar. A sombra de seu tempo na qual trabalhava o Maligno, agarrava-se-lhe aos pés para o vergar ao fracasso. E fracassou, com efeito. Não  converteu o sultão à fé cristã, nem os cristãos à mansidão evangélica. Não reconciliou os homens, nem realizou a unidade.  Viu até germinar a discórdia entre os próprios discípulos. Um tal fracasso poderia fazê-lo vacilar, lançá-lo num abismo de desespero. Depois de ter trabalhado na paz, conheceu durante dois anos  o acicate da turbação – a turbação que é, para o homem a revelação de que não é totalmente puro nem perfeitamente  transparente e permeável à Bondade original.   Mas que faltava a este homem para estar inteiramente aberto à luz e realizar em plenitude a semelhança com o Pai?  Nada, talvez.  Ou apenas isto: aceitar até o fim a prova da paternidade e entrar, desse modo no mistério do Pai. Para conseguir a semelhança divina não basta invocar o Pai, nem sequer manter com Ele relações filiais. É necessário conhecer por si mesmo, no apagamento,  o que é ser Pai à maneira de Deus.  Conhecê-lo, sendo-o, ele próprio também.  Este homem aceitou. E começou então, para ele, uma lenta migração interior para as regiões do ser, onde o último segredo do mundo se revela cada vez mais transparente.   Conheceu finalmente a alegria do Pai.  Doravante, nada o perturbará. Com igual regozijo poderá cantar o sol e a morte. E recolher no coração, de quando em quando, as secretas harmonias vindas da outra margem do silêncio” (in Desterro e Ternura,  Braga 1974, p. 10-12).  Que estupendo este texto a respeito de Francisco.
7. Donald Spoto, estudioso americano, publicou um livro interessante sobre Francisco ( Francisco de Assis. O Santo Relutante, Objetiva, 2002). Primeiramente ele nos fala da influência de Francisco na cultura: “Francisco deixou sua marca na arte, na literatura e na história da civilização ocidental, a começar por Dante, que nasceu 40 anos após sua morte  e que dedicou a Francisco a quase totalidade de um dos cantos da Commedia. Não é exagero dizer que todas as expressões italianas subseqüentes  de cultura religiosa devem  algo a Francisco, desde os afrescos de Cimabue e Giotto até os filmes de Vittorio de Sica e Federico Fellini, que estão impregnados de uma profunda sensibilidade franciscana” (p.20).
8. Estas reflexões são completadas pelas palavras  vigorosas e contundentes  de  Paul Sabatier, na sua Vida de São Francisco de Assis (IFAN). Transcrevemos umas poucas linhas da Introdução. Discorre o autor sobre as religiões que visam à divindade. Todo esforço nessas religiões, segundo Sabatier, se concentra no culto e, em particular,  no sacrifício. A finalidade a ser alcançada é uma mudança nas disposições dos deuses.  Esses são reis poderosos, dos quais se deve comprar o apoio ou o favor por meio de presentes. A maior parte das religiões pagãs faz parte dessa categoria, bem como o judaísmo farisaico. É também a tendência de certos católicos  atrasados para quem o grande negócio é apaziguar Deus ou comprar, à custa de orações, de velas e de missas, a proteção da Virgem e dos Santos”. Espero que meus leitores compreendam a rudeza das palavras do Sabatier. Coloquem-na no vigor crítico. Depois ele escreve a respeito das religiões que querem mudar o homem. Diz que a partir da conversão Francisco tem maneira diferente de rezar.  Ali ela manifesta sua mudança e sua grandeza:   “... a oração, que se tornou  ato essencial da vida, perde seu caráter de fórmula mágica; torna-se impulso do coração; é a reflexão e a meditação que se eleva acima da vulgaridade do aqui para penetrar os mistérios da  vontade divina e conformar-se com ela; é o ato do átomo que compreende sua pequenez, mas mesmo que seja apenas um som, quer que este som, esteja em sintonia com a sinfonia divina. Ecce adsum, Domine, ut faciam voluntatem tuam. Quando alguém alcança essas alturas, não pertence mais a seitas, mas  à humanidade. É semelhante a essas maravilhas da natureza que o acaso coloca em território de tal ou tal povo, mas que pertencem a toda a humanidade, porque no fundo não pertencem a ninguém ou, antes, são propriedade comum e inalienável de todo o gênero humano. Homero, Shakespeare, Dante, Goethe, Miguel Ângelo, Rembrant pertencem a  nós todos, tanto como as ruínas de Atenas ou  de Roma, ou antes, pertencem a quem mais os ama, a quem os compreende melhor”.
 9. Francisco não era um teórico da vida espiritual.  Falava de Deus em termos de experiência. “Falava somente daquilo que conhecia, ouvia e sentia. Nesse particular, nós o vemos, ao longo dos séculos, como exemplo do que Deus é capaz de fazer, isto é, principalmente maravilhar-nos, alterar radicalmente a maneira pela qual vivemos e agimos. Nos trechos dramáticos de sua própria vida, e na forma pela qual um playboy simpático  mas um tanto vazio se transformou em modelo servidor do mundo, ele revelou a presença de Deus no tempo e na história. Em outras palavras, sua credibilidade é grande por haver demonstrado que nosso melhor momento acontece quando ousamos permitir que Deus penetre nossas vidas. Os extremos da vida de Francisco, durante os quais ele passou de playboy a penitente, e de pobre a santo, revelam um indivíduo que se colocou à margem do mundo.  Em sua identificação com aqueles que a sociedade polida rejeita, Francisco questionou a insensatez de confiar no dinheiro, nos bens e coisas materiais em busca da felicidade. Sua figura atrai praticamente a todos, provavelmente porque (ao contrário da maioria dos santos) ele não é propriedade da Igreja Católica Romana. Sua primeira grande biografia moderna foi escrita por um protestante francês; um dos mais importantes historiadores do franciscanismo foi um bispo anglicano; um ortodoxo grego é o autor de um vigoroso romance sobre sua vida; e para ser fotografado em uma conferência de paz em Assis, o Dalai Lama quis sentar-se no lugar que Francisco mais amava e no qual morreu” (Spoto, p. 21-22).
10. O texto da FFB  sobre os 800 anos do Carisma (Reviver o sonho de Francisco e Clara de Assis no chão da América Latina e do Caribe) teve sua primeira e principal redação, segundo informações, de Frei Prudente Nery, capuchinho querido, de boa cepa e de veia poética, que a Irmã Morte veio buscar muito cedo, muito cedo...  Falando do encontro de Francisco com o Evangelho da missão, assim se exprime o texto: “Para dentro desse encontro, Francisco traz tudo aquilo que lhe era próprio. Não apenas o que lhe dera, em prodigalidade, a natureza, mas também o que ele havia visto, discernido, aprendido e construído, em sua vida, no momento histórico em que lhe fora dado viver. Nada disso é aniquilado em seu encontro com o Evangelho (Jesus Cristo). Antes constitui o chão bom e fértil onde a graça se deposita e floresce em única e copiosa beleza.  Como de todo encontro verdadeiro nunca saímos o mesmo, assim também aqui, Francisco, por sua natureza sui generis, retira desse tesouro (Evangelho) coisas novas e velhas, desoculta-lhes desconhecidas riquezas. Nele, o Evangelho se ergue da letra das Escrituras repleto de espírito, ressurge em nova vitalidade e manifesta-se em surpreendente atualidade. Por sua vez, o encontro com Jesus Cristo depura, fortalece, torna ainda mais luminosas as virtudes de Francisco” (p. 13).
11. Chesterton escreveu uma apaixonante biografia sobre o santo. Dele retenho apenas, por necessidade de brevidade, poucos parágrafos. Falando de Francisco, escreve: “Não é possível ler racionalmente a história de um homem apresentado como um espelho de Cristo sem compreender sua fase final como Homem das Dores e sem ao menos apreciar artisticamente a propriedade de ele ter recebido, numa nuvem de mistério e de isolamento, e não provocadas por mão humana, as feridas sempre abertas que curam o  mundo”  (G.K. Chesterton,  São Francisco de Assis. A Espiritualidade da Paz, Ediouro, 2001, p. 18).  “.... a vinda de São Francisco foi como o nascimento de uma criança numa casa escura que tivesse acabado com sua maldição; uma criança que cresce sem ter consciência da tragédia e que a vence por sua inocência. Nele, é preciso não só inocência, mas desconhecimento. É da essência da história que ele  se jogue na grama verde sem ver que ela esconde um cadáver ou que suba numa macieira sem saber que é a forca de um suicida. Foi essa anistia e reconciliação que o frescor  do espírito franciscano trouxe a todo o mundo” (p. 171).
12. Neste elenco riquíssimo de  depoimentos a respeito da beleza da vida de Francisco não convém deixar de lado o tocante depoimento de Julien Green, conhecido escritor: “Desde  a minha infância, em tempos perdidos nas brumas do passado, na rue de Passy onde morávamos, eu ouvia o nome de Francisco pronunciado com a ternura que sempre o acompanhava. Minha mãe, de modo especial,  protestante de boa cepa, devotava-lhe uma afeição que me leva a crer que ela o havia conhecido. Ele era e continua sendo o homem que vai além das tristes barreiras teológicas. Ele é de todo o mundo, como o amor que sempre nos é ofertado. Não se podia vê-lo sem amá-lo, dizia-se dele no seu tempo, e tal amor continua existindo.  Já tive ocasião de contar, em outro lugar, como, no momento da morte de minha mãe, que fraturou nosso pequeno universo familiar procurei a religião que ela parecia ter levado junto com ela. Meus laços com a Igreja anglicana iam sendo desfeitos. Caiu em minhas mãos um livro que expunha a fé católica e, em poucos dias, o lia apaixonadamente. Em menos de um ano aconteceu a conversão e fui recebido na Igreja em 1916.   Nesse meio tempo, grande devorador de livros, descobri a pesquisa séria de Madame Arvède Barine, sobre São Francisco e a Legenda dos Três Companheiros.  Fiquei louco de amor por esse mundo maravilhoso. Sonhava tornar-me como Francisco de Assis e quando o diretor encarregado de minha instrução religiosa perguntou-me o nome que queria  receber no  batismo, respondi com firmeza: “São Francisco de Assis”. Ele não manifestou nenhum entusiasmo e, com voz calma, disse: “Eu teria preferido São Francisco de Sales, mas a escolha é sua e será respeitada”. Eu não conhecia São Francisco de Sales e o padre jesuíta, certamente um santo homem, não acreditava ser oportuno me falar de Francisco de Assis, mas eu, em geral discreto, tornava-me falante quando podia cantar as loas do Pobrezinho.  Sentia-me na obrigação de completar um pouco a instrução que o reverendo padre, sobre esse grande personagem, dava a entender não conhecer tão bem.  Quantos pensamentos loucos se agitavam dentro de mim parecidos a um turbilhão.  Ser como São Francisco de Assis, que glória!  Eu era mesmo mais categórico em meu entusiasmo religioso: “Eu quero ser São Francisco de Assis”, declarei  um dia a meu diretor espiritual. Sua resposta se limitou a um  olhar sério e demorado e nada mais”. (Julien Green, Frère François, Ed. Du Seuil, Paris 1997, p. 341-342).
13. Fernando Felix Lopes, em seu O Poverello São Francisco de Assis, biografia com sabor português, encantadora em cada uma de suas páginas, faz uma pela de despedida de Francisco: “Voou para o Alto. Não voltará? Volta de novo à terra, ó Pai S. Francisco. Andaste no trabalho ingente e doloroso de arredar os espinhos que escondem no coração do mundo o Reino dos céus;  chagaste no trabalho os teus pés e mãos, teu peito estalou de cansaço num rasgão sangrento. E já os lobos amansavam suas gulas e sanhas, e as andorinhas andavam presas no encanto da tua voz, e os homens deixavam os campos de batalha para correr atrás de ti em convívio fraterno, e até os infiéis, enternecidos, escutavam teus cantares de Paz e Bem. Parece que já nos sorria o paraíso.  Mas foste embora naquela madrugada de luz que num instante fulgiu nos negrumes da terra, e logo se apagou. E foi outra vez a noite do pecado. Há mais espinhos sobre a crosta da terra; andam à solta, mais açulados e gulosos, os lobos que nos espreitam; fugiram aterradas as andorinhas; e as irmãs cotovias, tristes encapuchadas, vivem numa saudade imensa daquela madrugada que não chegou a amanhecer. Volta, pai S. Francisco, ao teu trabalho de encher a terra da paz do Reino de Deus!  Mas, se não voltas, então espera-me, ó Pai, espera-me, que também quero partir contigo!” (Ed. Franciscana, Braga,  1996, p. 493-494).
E agora?
Estamos afivelando nossas bolsas para empreender a viagem até Agudos.  Vamos viver a experiência do Capítulo da Imaculada!  Levamos o perfume de Francisco de Assis, alegria de sermos seus discípulos e a responsabilidade de mantermos viva sua memória.   Depois de percorrer tantas e tão extraordinárias “versões”  de Francisco, sentimos o peso de nossa responsabilidade. Somos franciscanos. Não é possível esquecê-lo. Faz parte de nossa identidade. Na cortesia de todos os momentos, na oração que brota dos cantos mais escondidos do coração, na simplicidade do vestir, do comer e do falar,  no trabalho de tornar o amor amado, na acolhida de todos, na vontade de ser irmão, vamos rumo a Agudos.  Que o espírito de Francisco nos preceda e nos acompanhe para sermos fiéis a nós  mesmos, ao que prometemos e para que, assim,  os lobos se tornem mais mansos, as águas mais puras, as comunidades dos cristãos mais evangélicas  e menos burocráticas,  nossas casas não apenas residências mas pequenas células do Reino novo. Nossas bolsas estão prontas para o Capítulo... Boa viagem.