sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

A Economia do Pobrezinho de Assis


São Francisco de Assis nasceu e cresceu em uma família rica, que comerciava tecidos finos, que seu pai trazia da França. Durante sua mocidade preocupou-se em viver intensamente sua virilidade ‘jogralesca’. Suas noitadas, suas festas, seus amigos, tudo viveu Francisco com muita intensidade. Seu pai Pietro Bernardone o educou para uma economia do lucro, fundamentada numa administração para o "cem por cento de lucro".
Após algumas experiências marcantes em sua vida começou a indagar-se, sobretudo em sua vida. E assim, o filho de Pedro Bernardone adentrou num processo de profunda reflexão sobre sua existência e, sobretudo, aquilo que até então acreditava ser os seus valores fundamentais .
Francisco de Assis a tudo possuía: prestígio, riqueza e amigos, no entanto, faltava-lhe algo extremamente necessário. Na tentativa por preencher este vazio sentido por ele é que o motivou a buscar incessantemente por algo. Depois de longa penúria encontrou seu tesouro, e que para adquiri-lo vendeu tudo o que tinha para comprar o terreno onde está o seu tesouro.
O reino dos céus é semelhante a um tesouro escondido no campo, que um homem, ao descobrí-lo, esconde; então, movido de gozo, vai, vende tudo quanto tem, e compra aquele campo” (Mt 13, 44).
O homem de Assis ao descobrir este tesouro lança-se em busca. O reino do céu, eis o grande tesouro encontrado e adquirido por Francisco. Ao que aqui chamaremos de Amor. Mas, o que seria este tesouro? Este Reino do Céu? Este Amor? E, eis que aos pouco o pobrezinho de Assis foi descobrindo que era o próprio Deus, este Deus que ora se mostra, ora se esconde.
Porém, Francisco não ficou só no primeiro contato para com Deus, para com o seu tesouro. Ele foi além. E indagou: “Senhor o que queres de mim?” Juntamente com esta pergunta, Francisco colocou-se inteiramente nas mãos do Amado e suavemente foi deparando-se que este Amor era o seu tudo. E durante toda a sua vida afirmou “Meu Deus e meu Tudo!
Se antes era o filho de um dos comerciantes mais ricos de Assis, tornou-se, então, o homem mais rico ainda, mesmo não possuindo nada, inclusive suas roupas (de baixo). Pois, descobriu o grande tesouro e por este tesouro teceu um compromisso com o verdadeiro amor, o próprio Deus, O Tesouro.
Então, por que Francisco foi e continua sendo este magno expoente para o mundo? Porventura seria pela razão de ter renunciado tudo por causa do Reino? Certamente que não, mas sim porque “verdadeiramente amou a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como Cristo nos amou” e isto, com radicalidade. Aqui está a economia do pobrezinho de Assis.
A palavra Economia entre tantos significados que possui pode ser entendida como a administração da escassez. E, Francisco de Assis soube com maestria administrar suas mazelas para viver com radicalidade o mandamento do Amor; eis o segredo da economia do Poverello.
Francisco administra as suas misérias, suas mazelas humanas, e por isso é que ele apresenta um novo tipo de economia. A economia de sua vida; como? Atrás de seu segredo, o de amar o Amado, e antes mesmo de amar o Amado ele permite que o próprio Amado o ame. E só por isso é que o Poverello se torna capaz de opor-se aos erros do seu tempo e, superá-los na sua pessoa, na sua vida, nas suas ações.
Francisco “superou o ‘dinheirismo’, a idolatria da riqueza, a prepotência de quem possui, com a pobreza evangélica [...]” e que por isso “superou o consumismo daquele tempo, expresso no luxo e no refinamento de todas as formas do viver social, com a simplicidade mais radical, mas sem repudiar a civilidade, a cortesia e a gentileza para com todos”.
Francisco superou a discriminação social, que em sua época era extremamente visível, através das classes, aqueles que eram nobres, possuidores de bens, aqueles vassalos, serviçais. A todos o homem de Assis amava com o mesmo amor. Como pode ser percebido nas diversas hagiografias do santo.
O pobrezinho de Assis sentava-se a mesa com os nobres em seus magníficos palácios, mas também se sentava nas escadarias das igrejas junto com os mendigos. E tudo isto porque para Francisco a sua economia era fundamentada no Amor e não no lucro, ou no que os outros poderiam pensar dele. E que por isso a sua relação era sempre cordial para com todos sem distinção, uma vez que seu “olhar econômico” via a beleza de cada ser humano.
Francisco de Assis também superou “a violência, que serpeava na sociedade de então, vivendo como homem de paz, fazendo, desta maneira, resplandecer diante dos olhos o valor e a eficácia da paz de Cristo”.
Eis que o Pobrezinho de Assis com sua economia superou o “dinheirismo”, o “consumismo”, a “discriminação social” e a “violência”. Então, como nós hoje podemos colocar em nossa vida a vivência da Economia de São Francisco de Assis?
Primeiramente colocando no centro de nossas vidas o mandamento do amor. “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como Cristo nos amou”. Em segundo lugar, deixar ser amado pelo próprio amor; permitindo que o Amor nos envolva em todos os aspectos da existência humana, ou seja, na vida pessoa, comunitária; nas relações consigo, com o próximo; na dimensão financeira, sexual e emocional. Ao colocarmos no centro de nossas vidas o Amor, logo deixamos que este amor possa agir em nossa existência, consequentemente predispomo-nos a sair de nós mesmo e a perceber nos outros as qualidades, tornando-nos abertos para sermos cada vez mais cordiais para com quem quer que seja.
Na economia de Francisco Deus não é posto de lado, como fez o homem moderno, mas Deus ocupa a centralidade da vida.
Na economia de Francisco o Amor tudo passa pelo Amor, que é o Amado, ou seja, Deus.
Na economia de Francisco a vida ocupa grande relevância.
No entanto, não é o que se pode presenciar na atualidade, uma vez que o relevante é o ter, esquecendo-se de que este ter perpassa a dimensão do modo como ter e possuir.
Sendo assim, o que nos resta por fazer enquanto cristãos e franciscanos “é entender que a grandeza do homem se funda precisamente em Deus e na relação com ele”.
Lembre-se que a sua economia pode ser fundamentada no valor do Amor e não no valor monetário, como fez o Pobrezinho de Assis.
Referência Bibliográfica:
ZAVALLONI, R. Pedagogia Franciscana. Petrópolis: Vozes, 1999.
Fonte WWW.reflexoesfranciscanas.com.br

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Os conselhos evangélicos, terapia espiritual?

"Vossa vida está oculta com Cristo em Deus” (Cl 3,3)

fonte: http://www.franciscanos.org.br/n/?p=9648

Por Frei Almir Ribeiro Guinarães

Aqueles que seguem os conselhos evangélicos, ao mesmo tempo que procuram a santidade para si mesmos, propõem, por assim dizer, uma “terapia espiritual” para a humanidade, porque recusam a idolatria da criatura e tornam de algum modo visível o Deus vivo. A vida consagrada, especialmente em tempos difíceis, é uma bênção para a vida humana e para a própria vida eclesial (Vita consecrata, n.87).
1. Uma religiosa e um religioso. Ela se trajava com simplicidade. Uma saia cinza e uma blusa clara. Tinha uma pequena cruz de madeira pendendo do pescoço. Saiu de seu quarto e foi para a cozinha. Queria fazer um doce de abóbora com coco para a comunidade. Vida simples e despojada. Uma religiosa. O coco ralado estava no armário da despensa e ela começou a descascar duas abóboras pequenas. Tudo com simplicidade. Uma mulher de seus 40 anos que fizera a promessa de vida religiosa com os votos de uma vida pobre e despojada, como esposa do Senhor e desejosa de fazer a vontade do Amado. Ele, um religioso, estava entrando em casa pelas dez da noite. Tinha acontecido mais uma quinta-feira de curso sobre a espiritualidade franciscana. Passa rapidamente pelo refeitório, toma um copo de suco. Troca uma palavra com um confrade. Entra na capela, reza completas, faz uns breves momentos de adoração e vai descansar. Um religioso. Vidas singelas e cheias de significado. Desde a juventude, tanto um quanto outro, compreenderam que haveriam de ser do Senhor e dos irmãos. Seguir o Senhor numa vida de pobreza, obediência e castidade. Seres que recusaram a idolatria da criatura e, pelo seguimento dos conselhos evangélicos, verdadeiras transparências do Altíssimo.
2. Na capela das irmãs carmelitas de Petrópolis (Rua Barão do Rio Branco), por sobre as grades que separam a comunidade da dita capela, há uma frase em latim: Vita vestra abscondita est cum Christo in Deo (Cl 3,3). Sempre me impressionou aquele rigor, aquela severidade. Mulheres frágeis, atrás das grades, que tinham sua vida escondida em Cristo. Sem vê-las sentia que elas eram importantes para a humanidade e para a Igreja. Depois compreendi que assim é que deve ser a vida de todo cristão: uma vida escondida com Cristo em Deus.
3. Em nossos dias, por vezes, em certos ambientes, pode-se ter a impressão que é meio fora de moda falar dos conselhos evangélicos. Os religiosos fazem a profissão, vivem os conselhos, mas preferem não falar muito a respeito de cada um deles. Parecem meio perplexos com tantas interpretações. Há muitas pessoas que desconfiam da eficiência de vidas que seguem os conselhos. Muitos religiosos mergulham em suas tarefas e isso parece bastar. Os que se debruçam sobre o tema da vida consagrada são unânimes em afirmar que ela é fundamental para a vida da Igreja. Ela torna viável e visível a radicalidade do Evangelho. As exigências mais radicais do Evangelho estão estampadas na vida dos religiosos. A Igreja necessita desses homens e dessas mulheres. Uma Igreja local sem vigorosas expressões de vida consagrada é uma Igreja empobrecida. Necessita desses homens e dessas mulheres que, vivendo reclusos em mosteiros ou em fraternidades atuando no meio do mundo, se tornam, no dizer de Congar, “parábolas do Reino”. Atestam que a radicalidade do evangelho está encarnada em suas vidas.
4. Miguel de Unamuno escreveu: “O ofício dos religiosos não é vender pão, mas ser fermento”. Gianluigi Pasquale, OFMCap, fala da vida consagrada como sintoma da verdadeira Igreja. Não há possibilidade na Igreja de visualizar a radicalidade evangélica sem a referência essencial à vida consagrada. Os fiéis cristãos, olhando a vida dos religiosos, mormente daqueles que já foram declarados santos, constatam que é possível viver a boa nova do Evangelho de maneira radical. A vida consagrada nunca faltou na Igreja. Os religiosos vivem no agora do mundo o mundo que vem. Trata-se do famoso argumento escatológico da vida religiosa e que daria, segundo muitos, sentido aos votos (Remetemos para o estudo do frade capuchinho “I consigli evangelici, guardiani della totalità del Vangelo”, in Verdad y Vida 255 (2009) p. 477-490). Curioso o título que o frade dá ao seus estudo: os conselhos evangélicos como guardiães da totalidade do Evangelho. O Autor é de parecer que o aspecto escatológico da vida consagrada, assinalado em Vita Consecrata, não foi suficientemente valorizado. No seu texto transcreve palavras do documento: “Dado que hoje as preocupações apostólicas se fazem sentir com maior urgência e o empenhamento nas coisas deste mundo corre o risco de ser cada vez mais absorvente, torna-se particularmente oportuno chamar a atenção para a natureza escatológica da vida consagrada (…) É nesse horizonte que melhor se compreende a função de sinal escatológico. De fato, é constante a doutrina que a apresenta como antecipação do Reino futuro” (n.26).
5. Anna Bissi, psicoterapeuta, escreve sobre os conselhos evangélicos como terapia espiritual para a humanidade (in Consecrazione e Servizio, n.10/2010, p. 71-75). Servimo-nos aqui, em parte, de suas reflexões. A autora começa sua reflexão retomando um famoso dito de Santo Inácio de Antioquia. O bispo suplicava que seus leitores ou ouvintes não impedissem o seu martírio. Para o velho bispo o sacrifício da vida correspondia à plenitude de humanidade. Somente passando pela morte a pessoa revela sua verdadeira grandeza. Essas palavras podem parecer exageradas, mas não devem ser interpretadas como masoquistas. Olhando mais profundamente elas rescendem verdade. A pessoa humana é somente humana quando aberta ao amor, capaz de relação e portanto de dom e de acolhimento. Aos olhos da Igreja o martírio sempre apareceu como sinal de um grande amor, portanto um lugar onde a dignidade do homem se manifesta em toda a sua plenitude.
6. Quando na Igreja cessa o martírio, seu lugar é assumido pela vida religiosa, chamada a viver a mesma tensão escatólogica, quer dizer o homem em sua completude, e por conseguinte, em sua dimensão transcendente, ou seja, a capacidade de não dobrar-se sobre si mesmo, mas dar-se ao outro no amor. Observados deste ponto de vista os conselhos evangélicos aparecem sob diferentes. Não são meios repressivos, e não constituem um obstáculo para a liberdade humana. Aparecem como remédio para o homem doente de egoísmo, e, portanto, não plenamente homem. Assim, como diz Vita Consecrata, eles aparecem como forma de terapia da pessoa humana. O coração de cada pessoa é um campo de batalha entre as forças egoísticas e aquelas que apontam para o amor. Somente quando vive no amor e para o amor, aceitando entrar na dinâmica de crescimento feita de morte e ressurreição, que vai tocar cada nível de sua existência, corpo, psique, espírito, somente então o ser humano se torna ele mesmo. Não somente o crescimento espiritual, na verdade, é estruturado como passagem da morte – dada pelo batismo, renovada através dos sacramentos, a oração, a ascese – à vida, mas também o desenvolvimento psíquico se inscreve no mistério da Páscoa. Ora, os conselhos evangélicos estão prenhes da força do mistério pascal. Os que perdem, ganham. O grão morre para dar fruto.
7. A evolução da pessoa é um caminho em que se alternam frustrações e gratificações, satisfações e privações. A única lei do aceitar, permitir, consentir ao que é solicitado mantém a pessoa num dobrar-se narcisista inicial e bloqueia sua humanidade, enquanto que o equilíbrio entre o receber e o dar, entre a plenitude e a falta abre o indivíduo ao desejo, o estimula ao dom, dilata seu universo. Pobres esses seres que vivem girando em torno de suas necessidades verdadeiras e falsas de coisas, do ter. Pobres e tacanhos seres que nunca conseguiram viver um relacionamento conjugal e familiar de dom límpido. Pobres os que ao longo da existência sempre se preocuparam em fazer valer sua vontade, seus desejos e que nunca, em todas as situações descritas foram capazes de morrer. Quem perde a vida, a encontra. Se o grão de trigo não morre não pode dar fruto.
8. Os conselhos evangélicos são terapêuticos porque se manifestam como um modo – não o único, mas sem dúvida muito importante – de entrar nesse dinamismo de plenitude e de falta, de morte e de vida, que permite que o ser humano cresça e o torna verdadeiramente humano, eliminando as falsas certezas, os ídolos através dos quais as pessoas pensam serem imortais, as máscaras que vamos usando para não enfrentar a verdade de nós mesmos. Os cristãos se convertem… Se não se convertem, perecem. Ora, a vivência dos conselhos evangélicos nos torna pessoas que apreciam o amargo e rejeitam o doce.
9. Por que os votos “entraram” em crise? Não é aqui o espaço para abordar em profundidade a questão. Fato que eles continuam válidos e são capazes de levar os que os professam a uma profundidade humana e cristã. Talvez se deva dizer que por vezes os que fazem os votos tenham perdido o fogo do começo. Num texto bastante instigante, Frei José Rodriguez Carballo, faz uma distinção entre uma formação para a observância e uma formação para a fidelidade. O texto não se refere em primeiro lugar aos conselhos, mas visa à formação do frade em geral. Os votos precisam ser vividos a partir de uma paixão por Cristo. Do contrário tudo é relativo, tudo é jurídico, tudo é seco. Há uma observância (quando há) fria. Assim o Ministro Geral se exprime no seu texto Com lucidez e audácia: “Mesmo sendo óbvio que seria errado contrapor a observância à fidelidade, seria também errado não distingui-las. A fidelidade inclui a observância, mas não se identifica com ela, supera-a. Em outras palavras, a observância é somente uma parte da fidelidade. Pode-se ser observante e não ser fiel, pois a fidelidade, como a fé, refere-se a uma pessoa: enquanto a observância faz referência a uma lei e consiste em seu cumprimento. Nossa vida tem como fim seguir “mais de perto a Cristo”. Uma primeira exigência de formação é, pois, formar na e para a fidelidade a uma pessoa: a pessoa de Jesus. Não queremos seguir uma ideologia, mas uma pessoa: Jesus Cristo”. O formador deverá levar o frade a descobri-lo como pessoa, para depois amá-lo como amigo. “Esse encontro pessoal com Jesus Cristo não deve ser dado como garantido na vida dos frades. Alguém pode fazer a profissão solene sem ter-se encontrado com pessoa de Jesus. Nesse caso a ideologia ocupará o lugar de Jesus. Mas uma ideologia pode trazer consigo: fundamentalismo, divórcio entre vida e doutrina e frustração (…) Só quem descobre Jesus como uma pessoa e como amigo poderá entregar-se totalmente a ele. Só assim as exigências mais radicais do seguimento de Jesus poderão ser fonte de alegria. Jesus não pode aparecer aos olhos dos frades como o rival de sua realização, mas como amigo que tudo pede porque antes tudo deu (…) Só uma pessoa que realmente se encontrou com Cristo, que se deixou seduzir pela beleza do Senhor e tenha provado sua amizade, estará disposta a vender tudo para seguir o Senhor com a radicalidade que tal seguimento exige: até a morte”. Votos sem paixão por Cristo é uma contradição. Emitir votos sem convivência com Cristo é mero legalismo e as interpretações passam a ser as mais díspares e controversas.
10. Xavier Pikaza Ibarrondo, professor em Salamanca, falando sobre a vida religiosa: “O Deus do evangelho não impõe obrigações legais, mas apresenta uma palavra simples de fidelidade diária. Damos demasiada importância a cerimônias externas dos votos religiosos, como ato social e oblação vitimista. Deus não exige vítimas, quer amigos. Não busca seres submissos mas fiéis que cresçam na liberdade. Os votos serão vividos como gestos de plena liberdade…”
11. Pobreza ontem, pobreza hoje. Quantos de nós, em nossa infância vivemos o duro da pobreza quase miséria que nos fortaleceu por dentro e nos fez menos moles. Aí está esse mundo do dinheiro, do lucro, das bolsas, das “bolhas”, do capital que foge, dos lucros astronômicos, mundo das roupas bonitas, dos carros suntuosos, da aquisição de tudo o que é produzido, sociedade do consumismo, da corrupção, da quebra de bancos… mundo em que as pessoas acreditam que são na medida de suas posses. A segurança do ser humano não está no dinheiro, nas aparências do ter. A pobreza faz com que o homem tenha consciência de não encontrar nem felicidade nem segurança no possuir. As pessoas, diante da precariedade da vida confiam nos bens. Exageram tal confiança. De repente o religioso sem dinheiro, sem posses, sem aparência, vivendo de seu trabalho é antídoto desse mundo de novos aparelhos, de carros novos, de casa sofisticada, de passeios em torno do mundo, seres vazios. O religioso se encanta com a singeleza do Filho do Homem que nasceu na singeleza de uma gruta e morreu na nudez da cruz. Os que fazem o voto de pobreza são uma terapia para a ímpia sociedade de consumo. Não vive de verdade quem não morre.
12. A posse não é o único ídolo que construímos na tentativa de encontrar a felicidade evitando a frustração. Outra grande tentação que cada ser humano experimenta é a sede do poder, da ilusão que, afirmando a própria vontade, seremos vitoriosos e fortes. A sedução da onipotência acompanha o homem desde as suas origens, levando-o a um jogo perverso do qual nunca sairá vitorioso. Tal tentação torna a pessoa cega e incapaz de ver a própria mesquinhez de sua sede de poder: ambição por cargos, afirmar sempre seu ponto de vista, marcar os relacionamentos fazendo que os outros se subordinem, praticamente querer ter preeminência em tudo. O conselho da obediência aparece como uma terapia que tenta não morrer sempre impondo sua vontade. Enquanto a pobreza lembra ao homem que não vale a pena preocupar-se com a própria vida, pois temos um Pai que sabe do que precisamos, a obediência chama atenção para uma Vontade capaz de realizar nossos anseios mais profundos para além de nossas pequenas e grandes expectativas. Terapia da vontade de poder, do individualismo, da imposição de nossos caprichos. Não ter medo de deixar uma posição e viver a singeleza do lava-pés. Os religiosos, ao longo de sua vida, estão preocupados em fazer em suas vidas a vontade de Deus. Felizes aqueles que, em suas casas, na Leitura orante da Bíblia e no cultivo da delicadeza de consciência, dizem sempre que vieram para fazer a vontade do Pai. Há religiosos que são exemplo de fidelidade a Deus. Todas essas palavras, no entanto, sem paixão por Cristo são flatus vocis…
13. Finalmente o mundo dos relacionamentos, da valorização ou da coisificação do outro, mundo dos relacionamentos sexuais de qualquer jeito e de qualquer modo, aberrações e dramas, infidelidades e duplicidade de vida… e os religiosos emitem um voto de castidade consagrada. A castidade é a terapia dos relacionamentos. Todo amor seja ele religioso ou conjugal deve crescer na transcendência, na capacidade de esquecer-se para fazer-se dom para o outro. Como são miseráveis essas relações sexuais de qualquer jeito. O mistério pascal está inscrito em toda forma de vida, na do casado como na do celibatário. O celibato é terapêutico porque tende a transformar o amor egocêntrico num amor dom. “Através da renúncia à vida conjugal e à paternidade-maternidade opera-se na vida do religioso aquela transformação que se opera no interior do matrimônio através da acolhida da diferença do cônjuge, realidade pela qual o eu narcisista é crucificado e faz prevalecer o dom de si.
14. Os conselhos evangélicos, que se destinam a todos os cristãos, mas que de modo particular informam a vida dos religiosos, são uma terapia capaz de salvar o homem das tentações mais profundas e perigosas, que o levam à verdadeira morte, para restituir-lhe a dignidade de filho de Deus. Por ter a convicção de ser um filho amado que o cristão pode não se deixar levar pela tentação da posse, do poder e do amor captativo e egoísta para empreender a aventura do amor verdadeiro. Precisamente porque filho o ser humano pode descobrir que a passagem através da ausência, da falta, do vazio, das coisas pequenas são experiências apenas aparentemente limitadoras, quando na verdade se revelam como meios através dos quais a capacidade de desejar se dilata, e a de amar se regenera. Para tanto, os que querem seguir os conselhos precisam ter experimentado a paixão pela pessoa de Jesus, o pobre feliz, o obediente delicado e o amoroso para com o Pai, seu único amor… Quem puder compreender, que compreenda…
15. Os conselhos evangélicos não podem, pois, ser interpretados e compreendidos fora da dinâmica das relações. Não são apenas meios de cultivo de espiritualidade. Constituem uma modalidade através da qual é possível viver como batizados, como seres ressuscitados, para sermos assim introduzidos naquela “vida escondida com Cristo em Deus” (Cl 3,3) de que fala São Paulo. Somos convidados a viver em fraternidade, a usar dos bens na singeleza, a não sermos superiores a ninguém e a viver um amor especialíssimo com o Esposo.
16. Espero que a irmã que estava preparando o doce de abóbora com coco tenha sido bem sucedida em seu labor. Pode ser que ele tenha ajudado a fazer com que a reunião das irmãs à noite tenha tido um ar de maior cordialidade. Talvez alguns possam olhar para aquela fraternidade e simplesmente dizer: “Como as irmãs se estimam!” Espero que o religioso que chegou a casa depois do curso de espiritualidade torne Deus mais visível para nós. Espero que a vida as irmãs carmelitas de Petrópolis, vida escondida com Cristo em Deus, seja também nossa vida de franciscanos da Imaculada. Os que seguem de verdade os conselhos evangélicos não são funcionários de uma organização mas seres felizes e leves que enfeitam a vida da Igreja.
Questões que ficam… e que podem ser debatidas
1. Será que realmente os conselhos evangélicos são uma terapia para o mundo de hoje? Há pessoas interessadas em tal tratamento? Quais as doenças dos nossos tempos que são curadas com os conselhos? Quais são as doenças e como podem ser curadas?
2. O que significa, de fato, viver pobremente numa fraternidade?
3. Podemos dizer que andamos perscrutando a vontade de Deus em nossas vidas? Como ela anda se manifestando? Francisco dizia que não queria viver fora da obediência. O que isso quer dizer?
4. No mundo há aberrações no campo da sexualidade, seduções estranhas e assédios a crianças. O que colocamos, de verdade, atrás do voto de castidade consagrada? Como uma fraternidade é enriquecida com a vivência do conselho de castidade perfeita?

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Família Bernardone: Pedro, Pica, Francisco e Ângelo.


Pedro Bernardone tinha loja em Assis e se dedicava não à produção de tecidos de lã, mas ao comércio de tecidos de luxo. Mesmo que ignoremos os aspectos específicos e particulares desta atividade, o fato de Pedro Bernardone viajar para a França nos indica a importância dela: era importador de tecidos de luxo que, depois, os revendia com larga margens de lucro. Ao que parece, foi um respeitável homem de negócios, aquele que iniciou a fortuna da família, e que foi perpetuada mesmo após sua morte, já que Ângelo, seu outro filho, atestado por documentos do século XIII, e depois os seus netos, tiveram larga disponibilidade financeira e várias casas. A riqueza material era acompanhada pelo pai do santo por intenso amor ao dinheiro, por uma atividade intensa que chamamos análoga, senão idêntica, em outros comerciantes de seu tempo. É precisamente esta mentalidade que, no confronto entre pai e filho, causará desprezo a Pedro Bernardone, com acusações de dureza de coração, de incompreensão, de malvadez. O que sabemos dele, considerando a indicação documentada, se apóia nos biógrafos do santo, homens da igreja que continuam a tradição segundo a qual a atividade mercantil está associada ao pecado.
Esta mentalidade capitalista devia incluir a capacidade de ler, escrever e fazer contas, acompanhada de um conhecimento, embora elementar, de latim: era costume que os escrivões escrevessem em latim, pois na segunda metade do século XII as conclusões de negócios, compras e vendas eram redigidas em latim. As viagens de negócios devem te-lo forçado a aprender francês e, com ele, deve te-lo aprendido o filho Francisco, que – como nos dizem com absoluta concordância de todas as fontes – gostava de cantar em francês.
Sabe-se menos ainda sobre sua mãe. O nome Pica aparece bastante tarde e, em todo caso, nunca nas fontes mais dignas de fé em questões relativas a Assis, como a Legenda trium sociorum. Ainda mais tardia é a informação que possua origem provençal, assim como outra que diz ser proveniente de Lucca. Todos esses dados que fogem à capacidade atual de qualquer demonstração objetiva e inequívoca, enquanto outros, como o cuidado com a saúde frágil de seu filho e sua demonstração de afeto, parecem condizer com os fatos. Pica é quase sempre representada positivamente pelos biógrafos – nesse ponto, somente Tomás de Celano faria surgir algumas dúvidas, cujos limites, já delimitamos no que diz respeito ao seu juízo à família de Francisco.
Os biógrafos apresentam-nos, ainda, o irmão Ângelo, mas apenas para dizer-nos de sua avidez e seu desejo de recuperar o que Francisco, em seu louco desejo de doar, parecia dilapidar.


MANSELLI, Raoul. São Francisco. Editora Vozes: Petrópolis, 1997.
Por Frei Fernando de Araújo, OFMConv
Ainda hoje, o mundo contempla os ensinamentos deixados por Francisco de Assis. A sua relação com Deus e com os homens mostra como ele entrou na dinâmica do verdadeiro encontro consigo e com outro. A partir da descoberta do profundo amor de Deus, que se manifestou de forma concreta na encarnação do verbo, Francisco começou a traçar um caminho que conduz o homem à verdade de si mesmo e do outro. Por isso, podemos falar de uma pedagogia de Francisco de Assis.
Podem-se encontrar autores que se deparam com essa pedagogia e mostram a sua atualidade para o homem pós-moderno. Um deles é Max Scheler, fundador da fenomenologia dos valores, que via em Francisco de Assis alguém que ousou realizar uma síntese dentro de um processo vital, que é a mística do amor omnimisericordioso, acósmico e pessoal. Via nele um homem que não olhava só para baixo, mas também para cima. O que Scheler afirma é que Francisco soube conviver muito bem com as realidades humanas e divinas. Francisco partiu do humano para chegar ao divino. Por isso, ele traz Deus para junto de seu povo. O Deus de Francisco é um Deus que caminha com seu povo e que quis estar junto dos seus por meio de seu Filho Jesus Cristo.
Para Scheler, ao superar os limites da criatura e do mundo, Francisco cria uma síntese de tal forma que as dimensões humana, pessoal, fraterna e religiosa e as dimensões criatural e cósmica concorrem para dar origem ao momento utópico da harmonização global. É a harmonia entre Deus, natureza e homem. Por isso, Francisco foi capaz de louvar o criador por toda a obra da criação.
Olhando a vida do santo, podemos perceber os traços de seus ensinamentos nos seguintes acontecimentos: quando procura o sultão e gera a possibilidade do dialogo; no encontro com o lobo de Gúbbio, que despertou o desejo de paz; na vivência da pobreza, que possibilitou a liberdade e que gerou no ser humano a gratuidade da qual brota o amor e o perdão; na relação com a criação, que gera a responsabilidade pela ecologia; e na acolhida da morte, como uma reconciliação global. Por tudo isso, a pedagogia do santo de Assis é tão atual e ao mesmo tempo desafiadora. A visão de Francisco foi uma visão do ser humano e a capacidade de cada criatura se relacionar com Deus e com toda sua criação.
Em seu livro Francisco de Assis: um caminho para educação, frei Orlando Bernardi, OFM, afirma que a grande revelação franciscana, ou seja, a grande pedagogia de Francisco de Assis foi perceber no leproso o caminho que conduz a Deus. Naquela cena, acontece o encontro com uma das criaturas mais temidas de seu tempo. Ao se deparar com o leproso, Francisco começa a fazer um encontro consigo mesmo, porque vendo a miséria do outro consegue perceber que também é um homem com fragilidades e debilidades. Enxerga que poderia estar naquela mesma situação. Assim, descobriu no leproso um ser humano igual a todos e digno de ser abraçado e beijado. Desse modo, o encontro com o leproso se torna uma verdadeira revolução antropológica, é uma nova descoberta do homem realizada por Francisco.
Frei Orlando, explicando o encontro de Francisco com o leproso, mostra que Francisco teve misericórdia e que manifestou o vivo amor que ardia em seu coração. Ele experimenta a misericórdia como uma força misteriosa e surpreende, que se abriga no coração humano e que transforma o amargor em doçura de corpo e alma. Além disso, ela possui a capacidade de revelar a grandeza do humano frente à mais deprimente das situações da vida.
Tudo isso aconteceu porque a maneira de agir de Francisco foi diferenciada. O que prevalecia nos seus ensinamentos era um caminho comum, onde todos tinham oportunidade de crescerem no verdadeiro seguimento de Jesus Cristo. Aqui se pode acrescentar que a fraternidade franciscana é totalmente antropológica e que tem por finalidade buscar o sentido da vida e realização humana.
É muito importante ter em mente que o caminho percorrido pelo pobre de Assis foi de profundas experiências humanas. Estas o levaram a fazer verdadeiras experiências místicas. Ele soube viver o seu tempo e também transformá-lo. Diante dos acontecimentos, ele traçou planos que visavam levar homens e mulheres a procurar alternativas para as situações mais insustentáveis, por tomarem consciência de que são pessoas amadas por Deus. Fez tudo isso, seguindo o caminho fixado no Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, porque o livro de sua pedagogia foi o Evangelho.
Assim, pode-se perceber que toda pedagogia de Francisco está no empenhar-se com todas as forças em ser fiel a Cristo e seu Evangelho. Assim, o homem pode ser fiel e a si mesmo para conseguir manter o seu propósito desde a experiência de Jesus Cristo, pobre e crucificado. Ele também apontou caminhos que ainda hoje precisam ser observados para superar certos conflitos existentes. Deste modo acontecerá a construção do Reino de Deus. O ponto de partida é a descoberta do ser humano com toda sua grandeza, mas ao mesmo tempo com sua fragilidade. Porque foi no abraço do leproso que Francisco descobriu o ser humano em toda sua miséria e grandeza. Foi com o leproso que se manifestou a presença da fragilidade e da força que sustenta a esperança e alimenta o futuro. Uma característica da espiritualidade franciscana é perceber a presença de Deus nos pobres e todos aqueles que vivem à margem da dignidade humana.
O grande ensinamento que o poverello de Assis apresenta ao mundo moderno é a capacidade de sonhar com dias melhores e que outra sociedade é possível, baseada unicamente na pratica do amor. Ele apresentou Jesus Cristo como o formador dos sonhos e das utopias humanas, capaz de garantir a possibilidade de todos viverem em busca do verdadeiro ideal de uma fraternidade universal, que é um sonho que se pode realizar.
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Referências Bibliográficas:
BERNARDI, Orlando. Francisco de Assis: Um Caminho Para a Educação. Editora Universitária São Francisco/IFAN: Bragança Paulista, 2002.
MERINO, J. Antônio. Humanismo Franciscano – Franciscanismo e Mundo Atual. FFB: Petrópolis, 1999.

Ilustração: Altarpolyptychon von San Francesco in Montefiore dell’ Aso, linke äußere Aufsatztafel: Hl. Franziskus / Carlo Crivelli. ca 1470. Extraído de http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Carlo_Crivelli_012.png acesso em 4 ago. 2009.