segunda-feira, 25 de junho de 2012

Clara, a mulher da esperança



Com alegria estamos todos mergulhados na meditação dos passos dados por Clara de Assis no seguimento do Evangelho. Estamos vivendo esse tempo dos oitocentos anos da forma de vida da Senhora Clara. Temos diante dos olhos um texto  que aborda Clara, como mulher da esperança, da autoria de uma das mais conhecidas e eruditas filhas da santa. Trata-se de  Chiara Augusta Lainati.  São incontáveis as obras publicadas por esta clarissa. O texto de que dispomos  foi enviado para mosteiros das irmãs pobres de São Damião e é uma versão em espanhol de artigo que, provavelmente foi escrito em italiano (Clara, la mujer de la esperanza).  A autora se dirige às suas irmãs  fazendo um veemente convite a que voltem ao primeiro amor e sejam mulheres de esperança para um mundo sem esperança.  Mesmo sendo dirigidas para as irmãs, as palavras da Lainati servem para todos que vivemos o aperto no coração de ter perdido, em parte, a esperança.  Temos dúvidas, vivemos perplexidades, precisamos nos colocar entre os pobres que esperam a Deus. Fazemos uma tradução do texto com levíssimas adaptações. O presente artigo nos coloca, pois,  diante do ardente e urgente tema da esperança. Seu estilo é poético, mas também profético. Vale a pena ser meditado.
“Os pobres  têm o segredo da esperança.  Alimentam-se  dia após dia das mãos de Deus.  Os outros homens, desejam, exigem, reivindicam e a tudo isso chamam de esperança… Acrescente-se que  o mundo moderno vivendo a loucura da aceleração não tem tempo para esperar. A vida interior do homem moderno tem hoje um ritmo freneticamente veloz, impossibilitando que seu coração seja alimentado por  sentimento tão forte e tão  doce como o da esperança…  Somente os pobres  esperam por nós,  como somente os santos amam e expiam por nós…  Chegará o dia em que cumprirá  a palavra de Deus e os pobres possuirão a terra e a possuirão simplesmente porque não perderam a esperança nesse mundo de desesperados”  ( Georges Bernanos).
Uma imersão no incerto
O primeiro passo dado por Clara fora da segurança da casa,  rumo à Porciúncula envolta na obscuridade do bosque, um mergulho na incerteza é seu passo decisivo na caminhada  da esperança.
Um passo dado sem timidez (a filha de Favarone  nunca é tímida)  que será diferente, tomando um outro ritmo, quase passo de  dança  sob as asas do Espírito.  Ela mesma haverá de escrever: “Em rápida corrida, com passo ligeiro e pé seguro, de modo que seus passos nem recolham a poeira, confiante e alegre, avance com cuidado pelo caminho da perseverança” (2CtIn).
De fato, pouco a pouco, a mulher de Assis foi aprendendo em São Damião “a comer cada dia da mão de Deus”; uma mão que oferece, isto sim, e abundantemente,  “pobreza, trabalho, tribulação, humilhação e desprezo do mundo” (TestClara 27) e que converte tudo isso em “delícia” porque derrama sem medida nos sulcos do coração uma semente viva: a esperança.
Quase com os olhos se pode ver aprofundar, germinar e crescer a semente na vida de Santa Clara: uma árvore tenra, depois mais robusta, vigorosa sob o sol de São  Damião, finalmente  caminhando com segurança no céu eterno de Deus, como modelo de esperança de toda a Igreja, como a árvore de mostarda do evangelho que abriga nela numerosos pássaros dos céus.
Nas mãos de Deus
Toda a vida de Clara, na realidade,  se apoia na esperança.
Sozinha deixa para sempre a casa paterna para, aos dezoito anos, seguir os passos de um homem, de um burguês, Francisco, que  as pessoas tinham como  um louco.  Um salto no vazio. Contra a tradição da família. Contra as convenções sociais. Contra a prática normal da Igreja daquele tempo.  Um fechar os olhos e deixar-se conduzir pelo abismo da fé “contra toda esperança” (Rm 4,18). Péguy diz a Deus que a fé que ele ama é a esperança.
Um pouco depois vemos Clara deixar de lado a tranquila e organizada segurança do mosteiro beneditino no qual recebeu hospitalidade por uns poucos dias. Ali, ela resistiu à pressão e à violência  dos familiares. Recusa a segurança humana que torna a bater à sua porta.
Dirige-se a São Damião. Na incerteza.  Ali também está tudo para ser feito. Naquele lugar está sozinha  mas não fica espantada com a solidão.  Quanto mais profundo se faz seu despojamento, sua pobreza de seguranças humanas,  à imitação do Cristo pobre, mais canta com toda liberdade e brilha ao sol, sempre caminhando na esperança porque  permite experimentar  desde aqui a secreta doçura que Deus reservou desde o principio para aqueles que o amam (3CtIn).
Em São Damião há muito pouco ou quase nada. E o que é mais certo: não há perspectivas seguras.
Hoje  vemos a vida de Santa Clara à luz que aconteceu posteriormente… Clara, no entanto, ao entrar em São Damião,    naquele marcante março de Assis,  levava com ela somente a esperança. Contava unicamente com a promessa evangélica: “Vosso Pai sabe que tendes necessidade de todas essas coisas. Buscai em primeiro lugar o  Reino e todas as coisas vos serão dadas de acréscimo” (Lc 12,30-31).  Contava com uma outra promessa, a de Francisco, que havia predito que o Senhor haveria de multiplicá-las (TestCl).  Não confiava em nada a não ser nisso.  Não sabia o que seria dela, nem de sua irmã Inês que já se achava com ela…  Vive a experiência do “pássaro do céu” e sabe que, nas mãos de Deus, ela vale mais do que muitos pássaros (cf. Mt 6,26).  Alimenta-se com o que vem das mãos da Providência, dia após dia, como pobre.  Não sabe se o lugar em que se encontra, São Damião, terá futuro:  naquele momento estava vazio.  Não podia imaginar que depois de poucos meses  Deus, em sua misericórdia, haveria de multiplicar as andorinhas debaixo do sol.  No momento, humanamente falando, tudo é obscuro.
Como Abraão, Clara caminha na noite,  sustentada apenas pela confiança inquebrantável naquele que é o Senhor do impossível.  “O Senhor disse a Abraão: Sai da tua terra, do meio de teus parentes, da casa do teu pai e vai para a terra que te mostrarei  (Gn 12,1).  E  Abraão  “saiu sem saber para onde ia” (Hb  11,8).
Clara também ignorava para onde o Senhor a estava levando.  Era noite.  Na esperança, no entanto, tudo se arrisca.  “Olho confiante para o Senhor, espero no Deus de minha salvação; meu Deus me ouvirá”(Mq 7,7).  E, apesar disso, Clara sentia-se segura, mais segura do que no velho e protegido castelo de seus familiares.  Deus é fiel em suas promessas.  Clara espera em sua palavra.
Como uma agonia
“Tu és a nossa  esperança, grande e admirável Senhor,  Deus onipotente, misericordioso salvador”,  Estas palavras que Francisco escreveu para Frei Leão,  foram passando de mão em mão  e chegaram ao coração de Clara.  “Tu és a segurança, tu és  a riqueza que nos satisfaz. És o guarda e o defensor”  ( Bilhete de Francisco a Frei Leão).  Toda outra segurança fora do Senhor seria traição.
Clara lança-se no vazio: vende a herança e  o resultado dá aos pobres.  Faz aprovar de viva voz pelo Papa Inocêncio III  o surpreendente privilégio da pobreza  que seria concedido oficialmente em 1228.   Deus fará com que nada  falte às irmãs.  Quanta esperança para aquela mulher, a quem um filho espiritual, um futuro Papa, não duvidará de chamá-la  de “mãe da sua salvação” (Carta  “Ab illa hora”  do Cardeal  Hugolino).
Aqui em baixo é noite, noite mais profunda do que nos bosques em torno da Porciúncula. Noite também para Clara, noite em que somente a pura esperança pode entrever uma luz, noite em que a única salvação é “olhar-se” no “espelho” que é o rosto de Cristo, o Amor pobre, privado do esplendor humano, que está suspenso da cruz;  “Esperança de Israel que salvas no tempo da desgraça…”(Jr  14,8).
“Veja  como por você ele se fez desprezível e siga-o, sendo desprezível por ele neste mundo.  Com o desejo de imitá-lo, mui nobre rainha,  olhe, considere, contemple o seu esposo , o mais belo  entre os filhos  dos homens, feito por sua salvação o mais vil de todos, desprezado, ferido e tão flagelado em todo o corpo, morrendo no meio de angústias na própria cruz… Se você sofrer com ele, na cruz e na tribulação, vai ter com ele na mansão celeste… e seu nome será inscrito no livro da vida” (2CtIn).
Como Clara  aprendeu a  “agonizar” com Cristo agonizante ( cf. LSC 31)? Somente pode responder a esta pergunta  Aquele que a ensinou.  Podemos, no entanto, exemplificar esses momentos de “agonizar com Cristo”:  ter cinquenta irmãs e não ter nada para matar sua fome (Proc 6,6); ter uma “irmã Andréia” que, desesperada, tem no coração propósitos insanos (Proc 3,16);  esperança de que tudo poderá se  viver olhando para o espelho e para aquele que está suspenso no madeiro da cruz…Papas, bispos, padres e leigos vieram mendigar esperança em Clara,  “mãe da salvação”.
Aqui, nesta terra de desterro, é noite. A salvação vem unicamente de Deus, do Deus pregado na cruz que se fez “a esperança de  Israel, seu salvador em tempo de angústia”. É extremamente cansativo, verdadeira agonia, caminhar nas areias ardentes deste deserto que nos conduz à terra prometida.  No entanto, está escrito: “O resto de Jacó será no meio de numerosos povos como o orvalho vindo do Senhor, como gota de chuva sobre a erva que não espera em ninguém nem conta com um ser humano” (Mq  5,6).
Há essa certeza: naquela terra não haverá mais noite (Ap 22,5).  Não estaríamos já vislumbrando aqui  uma aurora no horizonte?
Êxodo
Francisco  parte pelos caminhos do mundo sem bolsa, nem alforje, nem bastão. Clara também, com a percepção de ter deixado na outra margem do Mar Vermelho  a “vaidade do mundo” (TestCl), encerrada em São Damião, percorre os caminhos misteriosos de um êxodo no deserto, onde Deus é o único  guia (Dt 32.12), Javé, o “Deus da esperança” (Rm 15,13), o Deus que desde sempre fez palpitar no coração do homem o desejo da terra do sonho  que se acha para além das estepes e das dunas arenosas desse nosso viver cotidiano.
Clara entrevê esta terra: “Vou correr sem desfalecer, até me introduzires na minha adega, até que a tua esquerda esteja sobre a minha cabeça, sua direita me abrace e toda feliz me dês o beijo mais feliz de tua boca”(4CtCl).  Nos seus escritos está sempre presente a “terra prometida”, reino de glória  rumo à qual estamos caminhando.
Na experiência espiritual de todos os tempos, como na história de Israel, o “deserto” é sempre cenário de encontro com o Senhor. “… em terra deserta o encontrou, na vastidão ululante do deserto. Cercou-o de cuidados e o ensinou, guardou-o como a menina dos olhos. Qual águia que desperta a ninhada, voando sobre os filhotes também ele estendeu suas asas e o apanhou (Jacó) e sobre suas penas o carregou”  (Dt 32, 10-12).
Clara sabe bem disto.  É ensinada pelo Espírito.  No interior da clausura  organiza uma vida “nômade”, vida de povo que peregrina até à terra que está para além do rio.  “Como peregrinas e forasteiras neste mundo, servindo o Senhor em pobreza e humildade”, “de nada se apropriando, nem de casa, nem de lugares, nem de coisa alguma”  (Regra 8).
Nada.  Simplesmente um caminhar para frente rumo à terra prometida, como um povo em marcha, que não tem cidade aqui embaixo, nem tenda estável onde refugiar-se, à imitação do Filho do Homem que não teve onde reclinar a cabeça e quando a inclinou foi para entregar seu espírito(1CtIn).  Um “pequeno rebanho” que avança na esperança, cuja “porção” é uma  “altíssima pobreza”, que  “as faz pobres de bens materiais, mas ricas em virtude e as conduz até a terra dos vivos”. “Nada mais queirais ter debaixo do céu”  (Regra 8). Na verdade, porque parar?  Por que querer aqui embaixo uma morada? “Pois o Senhor teu Deus vai te introduzir numa terra boa, terra com águas correntes, fontes e lençóis de água subterrâneos que brotam dos vales e dos montes, terra de trigo, cevada, vinhas, figueiras e romãzeiras; terra de oliveiras, de azeite e mel; terra onde comerás pão em abundância… onde não te faltará nada” (Dt 8,7ss).
A esperança, escreve Péguy, leva Israel à posse da terra prometida. A esperança sustenta o povo a caminho  através de todas as dificuldades.  A esperança infunde coragem  diante da certeza de que um dia as promessas se cumprirão.
A mesma esperança que orienta Israel é a secreta dinâmica do Privilégio da Pobreza. Clara caminha na certeza de que Deus é fiel em suas promessas. “Não se assuste, filha, Deus,  fiel em todas as suas palavras e santo em todas as suas obras (Sl 144,13) vai derramar sua bênção sobre você e suas filhas. Vai ser o seu auxílio e o seu melhor  consolador, porque ele é o nosso redentor e nossa recompensa eterna”(CtEr).  E a terra que se pode divisar para além do rio distante, é bela demais para ser trocada por um pedaço de terra avermelhada  de plagas áridas.  “Que troca maior e mais louvável: deixar as coisas temporais, merecer os bens celestes em vez de terrestres , receber cem por um  e possuir a vida” (1CtIn).
Um coração pobre
Estamos, portanto, sempre a caminho…  Não é fácil caminhar por este “deserto” é o que nos ensina a experiência de cada um. Agora parece mais difícil do que nunca porque parece que o vento árido que muda de perfil as dunas, arrancando as tendas pacientemente erguidas entre uma tempestade de areia e outra despedaça toda esperança renascida… Nesses momentos  nossos olhos ficam cheios de areia. Não podemos ver.
Para caminhar não basta o escudo da Regra que prescreve a pobreza absoluta.  Clara está bem consciente disto:” E como é estreito o caminho e apertada a porta por onde se vai e se entra na vida, são poucos os que por aí passam e entram. E se há alguns que nele andam  por um tempo,  são pouquíssimos os que nele perseveram.  Felizes, no entanto, são aqueles a quem foi dado andar por ele e perseverar até o fim” (TestCl).  Não basta um esforço de desprendimento renovado a cada dia…  Hoje, mais do que nunca, no “deserto”  resiste somente quem tiver um coração de pobre, quem viver a dinâmica da espera, quem se apresentar em estado de disposição, de fidelidade,  daquela confiança em tensão que é  precisamente a esperança…  Quando Israel se desvia, confiando mais  nas potências políticas e na segurança terrena  do que em seu Deus,  uma estranha certeza toma conta dos profetas: para que Israel volte a encontrar seu Deus será preciso perder tudo, quer dizer, todas as certezas terrenas, tudo o que insensivelmente foi ocupando em seu coração o lugar de Deus.
Ter um coração de pobre significa, nem mais nem menos, contar apenas com Deus. Portanto, não com meus talentos pessoais, nem com as reservas feitas, não com programas a realizar, não com a força do grupo, nem com o prestígio da Ordem ou do mosteiro, não com a força da tradição, nem com o passado glorioso, nem com a capacidade de organização dos outros e minha, não com o número, não com a qualidade, não com uma fonte que pode ser encontrada um pouco mais adiante na caminhada, não com a saúde de que gozo e que continuarei a ter nos próximos anos, não com a ajuda do exterior,  não com as ideias deste ou daquele.  Somente com Deus, como o “pequeno resto” da profecia: ”Deixarei no meio de ti um povo pobre e humilde: eles procurarão refúgio no nome do Senhor (Sf 3,12).
Senhor, somente tu. Tu és apoio e plenitude.  Fora de ti nada tem cor. Tudo tem tom cinzento que lembra a desesperança… “Senhor, meu coração não é pretensioso, meus olhos não são arrogantes.  Não ando à procura de grandezas, nem de maravilhas fora de meu alcance. Pelo contrário, estou sossegado e tranquilo: como criança saciada no colo da mãe, como criança saciada minha alma está em mim. Israel põe tua esperança no Senhor, desde agora e para  sempre  (Sl 130).
O “deserto”  queimou tudo em Clara. “Põe-me como um selo em teu coração, como um selo sobre teu braço” (Ct 8,6).  Depois que tudo foi queimado ficou apenas o semblante de seu Cristo,  pobre e crucificado. Nada mais.  Ele. Clara não se dispersa.  Só tem tempo para ocupar-se  com Cristo, Cristo Verbo Encarnado  que exige o amor daqueles que ele “separa” por amor.
Assim, também no “deserto”  surge um oásis que vivifica toda a Igreja.  “Já não te chamarão ‘Repudiada’ nem a tua terra de ‘Devastada’. Serás chamada, isto sim, minha querida e tua terra terá o nome de desposada. Pois como o jovem se casa com uma moça, assim o teu arquiteto te desposa, e como o noivo se alegra com a noiva, teu Deus se alegra contigo” (Is 62, 4-5). “Seu afeto comove, sua contemplação reconforta, sua benignidade sacia, sua suave plenifica, sua memória ilumina suavemente” (4CtIn).
Se Clara vivesse hoje, penso que ninguém duvidaria,  estaria muito ocupada em amar a Cristo (Verbo encarnado, criança, crucificado, próximo, que plenifica a sua vida, exige em troca o amor, um Deus que coloca sementes de escuta no coração).  Clara recriminaria menos passado que já não lhe pertence,  não  ficaria chorando o tempo presente  que só a força do amor pode redimir, não faria perguntas inúteis nem nutriria apreensões com respeito ao futuro. Estas posturas constituem  pecados contra a esperança.
Quando é que vamos compreender que não temos outra coisa a fazer senão ocuparmo-nos dele, do salvador do mundo, comprometendo-nos a fazer novas todas as coisas com aquela atenção, aquele amor, aquela fidelidade, aquela confiança que é própria de uma esposa, de uma mãe, de uma filha, de uma irmã que ama?  Quando?
Porque todo o resto,  todo,  virá por si mesmo para nós, para a Igreja e para o mundo inteiro: oráculo do Senhor (cf. Mt 6,33).
Tempo de esperar
“Há um tempo para cada coisa”, afirma o Eclesiastes (3,1): “tempo para nascer e tempo para morrer, tempo para chorar e tempo para rir, tempo para calar e tempo  para falar…”
Há também um tempo para esperar e esse tempo chegou. Agora é tempo de esperar, de esperar por todos, porque são muitos os que “experimentam o sabor” da angústia do deserto e depende em grande parte de nós, clarissas,  que escutem ou não a voz do Deus vivo.
Creio que não nos perdoarão muitas coisas; de uma certamente  pedirá contas Aquele que se  definiu como “esperança de Israel” e que nos tirou do nada para que fôssemos  filhas de Clara  nesses anos:  se soubemos ou não  manter viva a esperança no coração do mundo, no coração da Igreja, a esperança em nossa terra que parece estremecer de desesperança  em sua profundidade  e se  deixa levar por  “fugas” rumo a horizontes ilusórios; se soubemos ou não devolver o verde  à esperança desalentada dos homens,  a esperança da Igreja, a esperança franciscana, acovardada diante de enormes problemas de evangelização no exterior e de autenticidade no interior.  Quantas defecções, quantas quedas ou acomodações por falta de esperança!
 Sim, para nós, clarissas, é tempo de sustentar, com um coração pobre, apoiado  somente em Cristo, a esperança universal.
Não se nos perdoará o pecado contra a esperança, pecado que poucas vezes se manifesta em gestos trágicos, mas que atinge a vida de modo sutil, quase que sem nos darmos conta;  que nos paralisa, que nos faz perder tempo com problemas secundários (a única “questão”  não marginal é Ele).  Atinge também nossa vida quando buscamos  posições mais cômodas.  O pecado que lança sementes de  desilusão e desconsolo, que rói o entusiasmo do dom e o solapa com uma infinidade de “se”:  “se houvesse vocações”;  “se tivéssemos com que sustentar a casa”; “se tivesse saúde”. Esse pecado  tira a alegria de  ir adiante como peregrinos, numa caminhada cheia de confiança no  Deus da salvação, deixando-nos ser alavancados pelo Espírito; esse pecado nos faz regredir por meio de inúteis lamúrias. Esse  “antigamente sim que…” seca o canto nos lábios, extirpa a alegria do coração e onde há fervor, faz se instalar a apatia.
Não há vocações, não se tem saúde. Que importa? Será que por estas razões deixamos de estar nas mãos de Deus ou sua sombra deixou de nos cobrir?  Ou será que neste tempo, como aconteceu com Clara, o Senhor não estaria pedindo de nós  “um salto no vazio”, um abandono sem limites a seus desígnios misteriosos?
Senhor, confio em Ti!  Perdoa-me  por este meu duvidar, que marca minha vida de desalento e de tristeza.  Tu és a minha esperança!  “Tens na mão a minha sorte” (Sl 15,6).
Nós, clarissas, deveríamos ser, neste momento, aquelas que cantassem para o Povo de Deus, para Ordem Franciscana e para o mundo o  Cântico de Isaías (cap. 26). “Temos uma cidade forte, para segurança ele colocou muro e antemuro. Abri as portas para que entre uma nação justa que guarda a fidelidade… Confiai no Senhor sempre, porque o Senhor é uma rocha forte pelos séculos”.
Sim,  em nossas mãos está, desde que queiramos nos servir dela,  toda a força dos pobres, aquela força que  “obrigou” a Deus voltar-se para Clara, inclinar-se sobre sua  pobreza, sobre seu denso silêncio de espera e de confiança:
Dá-nos, Senhor, um coração de pobres e dilata  nossa capacidade de esperar, para que em nós possa  pulsar a esperança de todos os povos! Por nosso Senhor Jesus, Amor pobre, espelho da Senhora Clara.
fonte:http://www.franciscanos.org.br/n/?p=16361

sexta-feira, 8 de junho de 2012

O canto de uma vida

Os últimos momentos da vida de Clara de Assis

 Irmã Catherine Savey, clarissa, publicou  na revista Èvangile  Aujourd’hui  (n.194. 2002, p.6-11)  um texto  descrevendo os  últimos  momentos  de Clara e tecendo considerações a respeito da cultura da morte da Idade Média.  Querendo continuar nossa preparação para o oitavo centenário da forma de vida de Clara acreditamos ser proveitosa para todos  a leitura deste texto.  Substancialmente é o texto de  Irmã Catherine, com algumas modificações e adaptações.
 Para melhor captar o alcance  da frase de Clara:  “Obrigado, Senhor, por me teres criado”, necessário se faz colocá-la no seu contexto histórico.  Ela  é a conclusão  das palavras de encorajamento que Clara dirige a si mesma antes de morrer.  A morte na Idade Média tinha um alcance sociológico considerável, tanto por ser frequente, como também devido ao número de  pessoas que cercam  o  moribundo e todo o quadro ritual que acompanha o final da vida. Os últimos dias de Clara  e o relato que deles fazem as testemunhas estão impregnados desta cultura.  As últimas palavras de Clara constituem o fecho  desta liturgia num canto de louvor  que resume e dá sentido a toda sua vida.
“Obrigado, Senhor, por me teres criado”. Muitos citam esta frase de Clara e,  as mais das vezes, é a única palavra da Plantinha que conhecem. Um pouco como aquilo que acontece  com a imagem de Francisco com os passarinhos. De acordo que tudo isso  respire a alegria, o frescor, o louvor do Criador. Tudo pode ser correto, mas o contexto dá um peso diferente aos propósitos de Clara.  Estamos praticamente com suas últimas palavras.  Necessário situá-las em seu contexto.
Na verdade, a frase é conclusão  da oração pronunciada por Clara no fim de sua vida.  A passagem se situa em capítulos que relatam os últimos dias de Clara e comporta dez parágrafos do total dos vinte e nove de sua biografia, o que denota a importância desses  últimos instantes para seu biógrafo Tomás de Celano.  Uma tal constatação pode talvez nos causar surpresa.  Os hagiógrafos da Idade Média, no entanto,  tinham consciência de que a morte é mais do que o fim da vida. É, na verdade, sua conclusão, o instante que dá sentido a toda uma existência.
Para melhor compreender as páginas que cercam a frase “ Obrigado, Senhor, por me teres criado” e assim tentar compreender a plenitude de seu significado  parece oportuno  ver como se situava a morte na cultura da Idade Média.
A morte na Idade Média
Na Idade Média, a morte não causava surpresa.  Ele acontecia com  muita frequência ques que se tornava alguma coisa familiar.  Mesmo se o século XIII  tivesse sido uma época de prosperidade em que as epidemias perdiam  a amplitude que ganhariam no século seguinte,  podemos  dizer que Clara e Francisco viveram um tempo em que a realidade da morte estava sempre presente.  Muitas crianças morriam muito cedo, não poucas mulheres  morriam no parto. As doenças também ceifavam  adultos na plenitude de suas forças e homens sucumbiam em plena juventude nos campos das guerras.  Além disso, a morte  não era um acontecimento  pessoal e escondido como acontece em nossos dias. Tinha um cunho eminentemente social.  O moribundo era cercado de  orantes  (carpideiras), os funerais se revestiam de solenidade, o falecido era confiado à intercessão dos monges.
Nessa época em que a fé era inquestionável, o problema  não consistia em saber se existia vida após a morte, mas se a pessoa que morria estava em condições de  entrar no paraíso.  A representações do juízo que adornavam os portais das catedrais  construídas nesta época testemunham esta preocupação pela salvação eterna.  A angústia  que brota da morte corporal era potencializada com o medo do castigo eterno.
Tendo em mente o que dissemos,  compreende-se  a importância dos últimos instantes, ocasião em que o moribundo pode se reconciliar com a misericórdia divina.  Aconselhava-se que, então, ele  fizesse “donativos” para a celebração de missas e a recitação de orações pelos religiosos, que ele  fizesse  confissão geral de sua vida, recebesse o viático, “alimento para o caminho” até o paraíso e penhor de vida eterna, de ser acompanhado ao longo da agonia da oração ininterrupta da família e de pessoas que acorriam para  prestar assistência ao que morria.
Se todas as condições mencionadas fossem cumpridas, poder-se-ia mesmo esperar que uma legião de santos e anjos  viesse escoltar o defunto, ajudando-o em sua ascensão ao céu e assim atravessando ileso o ar enfestado de demônios.
Assim sendo feito, os funerais podiam se dar.  Mesmo  para   os pobres  os funerais eram solenes.  Havia festa para celebrar na alegria o começo de uma nova vida.
O que acabamos de dizer parece distante da ação de graças de Clara.  Em tal contexto, no entanto, é que devemos situar esse obrigado pela vida que sai dos lábios da santa.
Os últimos dias de Clara
A “Vita”  de Celano e os testemunhos do Processo de canonização de Clara estão, com efeito, impregnados desta cultura.
Certamente, a morte era familiar a Clara e seus contemporâneos:
• As taxas  de mortalidade não deveriam ser menores em São Damião  do que em outros lugares. Clara assistiu algumas irmãs  em seus últimos momentos. O  Processo  faz alusão a várias dentre elas.
• O Ofício dos Defuntos era recitado frequentemente em São Damião,  talvez mesmo todos os dias como faziam os cistercienses, mas certamente durante vários dias após a morte de uma irmã. Ele lembrava que a presente vida nada mais do que uma etapa para a eternidade.
• As cartas de Clara dirigidas a Inês de Praga  falam de seu desejo ardente de ir ter com o Senhor no Reino.  Tal pensamento era mais do que uma simples manifestação de fervor. Era, de verdade, uma  real probabilidade diante  da prolongada doença de Clara.  A morte poderia ser realidade  a se concretizar num breve espaço de tempo.  Por duas vezes (em 1224 e 1251),  as irmãs temeram pelo pior.
No dia 5 de novembro de 1251,  a corte pontifícia  chegava a Óstia.  Depois se dirigiria  a Perusa. O cardeal Rainaldo, bispo de Óstia e cardeal protetor da Ordem, ficou sabendo do agravamento da enfermidade de Clara. Veio fazer-lhe uma visita, trazendo-lhe a comunhão. Clara pede que ele consiga do Papa a aprovação da Regra.  No ano seguinte, o Papa e os cardeais  passam de Perusa a Assis.  Clara está cada vez mais fraca. “Juntou-se nova fraqueza a seus membros sagrados gastos pela velha doença…” (Legenda, 41).  Inocêncio IV  foi visitar  a serva de Cristo  e deu-lhe a absolvição  plena e a graça de uma ampla bênção.  Depois, a Plantinha recebeu a comunhão das mãos do ministro provincial.
A morte não deveria tardar.  Clara não se alimenta mais e sofre.  As irmãs  fazem vigília noite e dia, sempre chorando.   Clara pede a presença de padres e de santos frades para que lhe leiam a Paixão. Frei Rainaldo, sem dúvida seu confessor, e os primeiros companheiros de Francisco: Junípero, Leão, Angelo de Rieti acompanham os lamentos das irmãs e em suas preces.  Cercada de tão ilustres personalidades, irmãos sacerdotes, foi a Frei Junípero,  sabidamente homem de coração extremamente singelo, que  Clara pergunta “se existe alguma coisa nova para aprender a respeito do Senhor”.  Essa insaciável Clara!  “Ele abriu  a  boca e deixou sair centelhas ardentes da fornalha do fervoroso coração.  E a virgem de Deus  ficou muito consolada com suas parábolas”.
Não restava a Clara outra coisa senão, uma vez mais, recomendar  às suas irmãs o amor pela pobreza e lembrar-lhes os benefícios com os quais o Senhor as havia cumulado.
Clara parece  preparada para a grande partida. Tem consciência de que em poucos minutos estará sozinha, face a face com seu Senhor.  Há muito tempo ela desejava  que esta hora chegasse. Como muitos que estão às portas da morte, como o próprio  Jesus, parece que ela se vê tomada de angústia e ela mesmo se exortava  à confiança.  A virgem muito santa, voltando-se para si mesma, diz baixinho à sua alma: “Vá segura, que você tem uma boa escolta pelo caminho. Vá, diz,  porque aquele que a criou também a santificou e guardando-a sempre como uma mãe guarda o filho, amou-a com terno amor.  E bendito sejais, Vós que me criaste”
O canto de uma vida
Para ganhar confiança, Clara  repassa interiormente todo o desenrolar de sua vida, dando-se sempre conta da  presença  constante e amorosa do Senhor ao seu lado:
Foi ele que a havia tecido no seio de sua mãe (Sl  138,13), e que  antes de seu nascimento  garantiu a Ortolana angustiada com a proximidade do parto com todos os seus eventuais perigos  que tudo sairia bem. Esse Deus havia garantido a sua mãe que a criança que ela carregava em seu seio irradiaria a luz de Deus  (Legenda 2).
• Foi o Senhor que a fizera nascer  para vida divina no dia de seu batismo quando recebeu o nome de Clara, lembrando a graça recebida por sua mãe.
• Ele é que a ensinou  a conhecer e a amar quando Ortolana falava dos relatos evangélicos, envolvidos nas lembranças de sua peregrinação à Terra Santa.
• Foi o Senhor que havia colocado bem cedo no seu coração o desejo de lhe pertencer de maneira total.
Redigindo seu Testamento, alguns  meses antes, Clara já havia  evocado o encadeado da história maravilhosa de sua via com Deus  com o intuito de fazer sua ação de graças:
• Foi o Senhor que a chamara para esta vocação, da qual ela conhece a grandeza ( Test.  2 e 19-21).
• Foi ele, pelo Espirito Santo, que inspirara a Francisco quando o santo restaurava a igreja de São Damião, a predição de que ali viveriam religiosas que  glorificariam a Deus ( Test. 11-14 e 31).
• Foi o mesmo  Senhor que iluminou seu coração  para que ela abraçasse essa forma de vida segundo o exemplo e as palavras de  Francisco ( Test  24 e 26).
• Foi ele que a levou a São Damião ( Test  30).
• Foi ele que lhe deu irmãs  e as multiplicou constituindo “este pequeno rebanho”  na Igreja (25, 31 e 46).
• Esse mesmo Altíssimo sempre  atendeu às necessidades das irmãs  encaminhando-lhes esmolas (Test  64).
•Ele foi o seu consolador, seu apoio, através de Francisco  que foi jardineiro e cuidador da pequena plantação (Test  38 e 48).
• Foi ele que, na pessoa de Francisco,  foi o seu caminho e a ensinou as sendas da pobreza e da humildade ( Test  57 e 74).
• Ele, finalmente,  resume Clara, que deu o começo, o crescimento e a perseverança ( Test  78).
Quando lemos  assim o Testamento  ficamos impressionados em constatar a que ponto o olhar de fé faz com que Clara descubra em tudo  a presença amorosa de Deus  que ela encontra  nos pormenores da vida de todos os dias.
Poucos dias antes ela havia recebido do Senhor um último presente: a tão desejada aprovação de sua  Regra pelo Papa Inocente. Durante toda a sua vida, Clara batalhara para conseguir o direito de seguir o Cristo na pobreza (toda a luta para conseguir o privilégio de não ter privilégios).  Insatisfeita com as regras que sucessivos papas  lhes atribuíam sem o privilégio da pobreza, ela própria redigiu sua forma de vida.
Irma Filipa diz no  Processo:  “Como desejava ardentemente que a regra da Ordem fosse bulada, mesmo que tivesse que colocar esta bula um dia e morrer no dia seguinte, assim lhe aconteceu que veio um frade com a carta bulada, que ela tomou reverentemente e, embora estivesse à morte,  colocou ela mesmo aquela bula na boca para beijá-la.”  (Proc  3,32).  A bula pontifícia data de 9 de agosto, antevéspera da morte de Clara.
Na verdade, Clara podia partir com toda segurança  porque aquele que a acompanhará para além das angústias da morte e a protegerá das últimas invectivas do demônio, seu guia para o caminho, foi Aquele que a criou, santificou, guardou, amou ao longo de sua existência com um terno amor, como uma mãe ama seu filho!
Num último suspiro, Clara resume o canto de sua vida:  Obrigado, Senhor, por me teres criado”
fonte: http://www.franciscanos.org.br/n/?p=10528
Frei Almir Ribeiro Guimarães