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Extraído de http://www.franciscanos.org.br/v3/vidacrista/artigos/mannes_171008/ acesso em 22 out. 2008.
Por Frei João Mannes, OFM
Os antigos biógrafos e hagiógrafos de São Francisco de Assis atestam
que a sua vida caracterizava-se por uma manifestação de intensa alegria.
Segundo Tomás de Celano, a “costumeira alegria” (1Cel 2,5) de Francisco
era tão intensa que, para extravasá-la, “de vez em quando, colhia do
chão um pedaço de pau e, colocando-o sobre o braço esquerdo, mantinha um
pequeno arco curvado por um fio na mão direita, puxando-o sobre o
pedaço de pau como sobre um violino e, apresentando para isto movimentos
próprios, cantava em francês” (2Cel 90,127). Assim, através de muitos
outros relatos semelhantes, explicita-se que Francisco era “naturalmente
sorridente e jovial”.
O semblante de Francisco irradiava uma indizível alegria, inclusive
nos momentos mais difíceis e até dramáticos de sua existência (1Cel
5,10). Conta-se que um dia, ao caminhar alegremente por um bosque, de
repente, foi atacado por ladrões. Bateram nele e o atiraram em um
barraco, cheio de muita neve. Mas ele, assim que os ladrões se
retiraram, saltou para fora da fossa e, com alegria redobrada, começou a
cantar em alta voz louvores ao Criador de todas as coisas (1Cel 7,16).
Relata-se também que Francisco conservou sua alegria mesmo no cárcere,
em Perúgia. Os seus companheiros de prisão o consideraram um louco
porque, “enquanto eles estavam tristes, ele [...] não parecia
entristecer-se, mas de certo modo [parecia] alegrar-se” (3Soc 4).
No entanto, relata Celano, que Francisco inflamou-se de peculiar
alegria, a ponto de não caber mais em si (1Cel 3,7), ao descobrir a sua
razão principal de viver, ou melhor, quando “mostrou-lhe o Senhor o que
convinha fazer” (1Cel 3,7). Em outras palavras, alegrou-se sobremaneira
quando o Altíssimo “fixou sobre ele o seu olhar” (2Cel 10,12) e lhe
revelou que a felicidade (beatitudo) não está no âmbito da fortuna, isto
é, na ordem do ter, do poder, do saber, das honras e dos prazeres do
corpo, mas do ser. O Altíssimo lhe mostrou que “muito mais felizes são
aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 11,28). E à
medida que Francisco dispôs-se a obedecer à Palavra de Deus, revelou ao
mundo que o Evangelho é fonte de inesgostável alegria e que a
felicidade nasce da conformidade íntima entre o que se quer e o que se
vive.
De fato, o Pobre de Assis alegrou-se muito com a descoberta do dom de
sua vocação de ser feliz na sequela Christi. E essa alegria se
intensificava sempre mais cada vez que alguém o procurava com o desejo
de ser feliz à maneira dele e, “levado pelo espírito (cf Mt 4,1) de
Deus, vinha para receber o hábito da santa Religião” (1Cel 12,31). Ele
recebia cada irmão benignamente, isto é, como dádiva divina. Basta
recordar aqui a peculiar alegria que tomou conta de Francisco quando
Frei Bernardo associou-se a ele, pois, “o Senhor parecia ter cuidado
dele, dando-lhe o companheiro necessário e o amigo fiel” (1Cel 10,24).
A fraternidade é, portanto, um dom de Deus, bem como é dádiva divina a
alegria que extravasam os irmãos à medida em que se unem e, em comunhão
dialógica, respondem ao chamado do Senhor de viver e anunciar o
Evangelho de Jesus Cristo. A vida em fraternidade é fonte de alegria
porque a felicidade está arraigada em ter a quem amar e amá-lo
efetivamente. Por conseguinte, na vida humana, ou melhor, na vida em
fraternidade existe tanto de alegria quanto há de amor. A caridade é
realmente fonte e expressão de alegria, conforme atesta o seguinte
relato de Tomás de Celano: “Com quanta caridade os novos discípulos de
Cristo se abrasavam! Quão grande amor de companheirismo vigorava neles!
Pois, quando se reuniam em algum lugar, ou se encontravam no caminho,
como acontece, resplandecia o fogo do amor espiritual, espargindo sobre
todo amor as sementes da verdadeira afeição. Como? Abraços castos,
afetos suaves, ósculo santo, conversa agradável, riso modesto,
fisionomia alegre, olhar simples (cf. Mt 6,22), ânimo suplicante, língua
que abranda, resposta delicada (cf. Pr 15,4.1), o mesmo propósito,
pronto serviço e mão infatigável” (1Cel 15,38).
O pai Francisco deu tanta importância à atitude de permanente alegria
dos frades que a colocou como preceito em sua primeira Regra: “E cuidem
[os frades] para não se mostrar exteriormente tristes e sombriamente
hipócritas; mas mostrem-se alegres no Senhor (cf. Fl 4,4), sorridentes e
convenientemente simpáticos” (RnB 7,16). E os irmãos que apresentavam
um rosto desanimado, cabisbaixo, sisudo e triste eram severamente
admoestados por Francisco (2Cel 41,128), pois, considerava essas
expressões de vida incompatíveis com uma opção de vida segundo o
Evangelho de Cristo. Além disso, um irmão acabrunhado, choroso e
desolado é facilmente levado a alegrias vãs (2Cel 88,125). Esse torna-se
presa fácil dos demônios, visto que, diz Celano, “o demônio exulta
acima de tudo, quando pode [roubar] ao servo de Deus a alegria de
espírito” (2Cel 88,125).
Por conseguinte, a melhor arma ou o remédio mais eficaz contra toda
espécie de vício é a alegria espiritual. E a alegria espiritual
radica-se na virtude da caridade. Quem a possui é feliz e “os demônios
não podem ofender o servo de Cristo, quando o virem repleto de santa
alegria” (2Cel 88,125). Francisco, na Saudação às Virtudes, enfatiza que
“a santa caridade confunde todas as tentações diabólicas e carnais e
todos os temores (cf. 1Jo 4,18) da carne” (SV 13). Quem possui uma
virtude e não ofende as outras tem todas e com elas confunde todos os
vícios e pecados. Foi, portanto, dessa forma que Francisco manteve-se
sempre na alegria do coração (2Cel 88,125).
A alegria do coração puro de Francisco e dos seus companheiros
transborda para fora dos limites da Fraternidade constituída pelos
irmãos na Ordem. Os irmãos, extravasando de alegria divina, vão ao
encontro de todos os seres humanos, especialmente dos mais necessitados.
É um dever alegrar-se junto aos menos favorecidos, conforme lê-se na
Regra não Bulada: “os irmãos devem alegrar-se quando conviverem entre
pessoas insignificantes e desprezadas, entre os pobres, fracos,
enfermos, leprosos e os que mendigam pela rua” (RnB 9,2).
Todavia, a alegria franciscana deve estender-se natural e
necessariamente a todos os seres do universo. Pois, todos têm a sua
razão de ser em Deus que os cria livremente e, por isso, são diferentes
manifestações da potência, da sabedoria e da suprema bondade de Deus. O
sol, a lua, as estrelas, a terra, a água, o fogo e o vento são fontes de
admiração e de inefável alegria para Francisco, porque cada criatura,
na sua irrepetível singularidade, é conhecida, amada e criada no Filho e
pelo Verbo eterno de Deus Pai. Enfim, Francisco, após um longo e
gigantesco esforço de purificação, exultante de alegria, compôs os
louvores ao Criador: “Louvado sejas meu Senhor, com todas as tuas
criaturas”.
No entanto, a alegria franciscana somente chega ao ápice da perfeição
no cumprimento das santíssimas palavras e obras do Senhor: “Amai vossos
inimigos e fazei o bem àqueles que vos odeiam” (cf. Mt 5,44) (RnB
22,1). Nosso Senhor promete a eterna alegria como recompensa àqueles que
acolhem com amor aos seus inimigos: “Felizes sereis quando vos
insultarem e perseguirem e, por minha causa, disserem todo tipo de
calúnia contra vós. Alegrai-vos e exultai, porque grande será a vossa
recompensa nos céus” (Mt 5,11-12). A alegria consuma-se, portanto, num
amor tão intenso que não apenas suporta, mas abraça pacientemente e de
bom coração as injúrias, os opróbrios e desprezos “por causa de Jesus
Cristo e da caridade de Deus”.
No diálogo de Francisco com Frei Leão acerca da Perfeita Alegria,
evidencia-se que o ser humano recebeu do Espírito Santo o carisma de
“vencer-se a si mesmo” (Fior 8) até o total abandono de si: “Pai, em
tuas mãos entrego meu espírito” (Lc 23, 46). O amor de Deus expresso na
Cruz de Jesus Cristo é, portanto, o mistério íntimo da Perfeita Alegria
de Francisco e seus primeiros companheiros.
Por fim, evocamos a inaudita alegria que Francisco experimentou nos
momentos mais agudos de sofrimento que precederam sua morte corporal. Na
iminência da morte, já com o corpo bastante debilitado pela
enfermidade, “rindo e alegrando-se, tolerava de muito boa vontade o que
era a todos penoso e insuportável olhar” (1Cel 8,107). De fato, a real
proximidade da hora extrema da morte não lhe causou tristeza, pois,
“tendo amado até o fim os frades seus filhos, recebeu a morte cantando”
(2Cel 162,214). Assim, Francisco, no auge de sua maturidade humana e
espiritual, cheio de esplendor e alegria, de que os irmãos muito se
maravilharam, passou da presente à bem-aventurada vida (Fior 6).
Portanto, Francisco possuía, sim, uma índole alegre. Porém,
transbordou realmente de “alegria espiritual” (2Cel 88,125) ao optar
livremente pelo Evangelho de Jesus Cristo, fonte de genuína e
inesgotável alegria. A alegria plena encontra-se na interioridade mais
íntima da alma humana, isto é, na “inocência matinal” do total
desprendimento e na posse de Deus. A existência de Francisco foi
expressão de “inaudita alegria” (2Cel 137,181) porquanto deixou-se
impregnar e enlevar pelo espírito da jovialidade de Deus, que
amorosamente se humanizou em Jesus Cristo, para que pudéssemos encontrar
em sua Cruz a nossa perfeita e eterna alegria.
Extraído de http://www.franciscanos.org.br/v3/vidacrista/artigos/mannes_171008/ acesso em 22 out. 2008.