domingo, 8 de julho de 2012

A transbordante alegria de Francisco de Assis

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Por Frei João Mannes, OFM
Os antigos biógrafos e hagiógrafos de São Francisco de Assis atestam que a sua vida caracterizava-se por uma manifestação de intensa alegria. Segundo Tomás de Celano, a “costumeira alegria” (1Cel 2,5) de Francisco era tão intensa que, para extravasá-la, “de vez em quando, colhia do chão um pedaço de pau e, colocando-o sobre o braço esquerdo, mantinha um pequeno arco curvado por um fio na mão direita, puxando-o sobre o pedaço de pau como sobre um violino e, apresentando para isto movimentos próprios, cantava em francês” (2Cel 90,127). Assim, através de muitos outros relatos semelhantes, explicita-se que Francisco era “naturalmente sorridente e jovial”.
O semblante de Francisco irradiava uma indizível alegria, inclusive nos momentos mais difíceis e até dramáticos de sua existência (1Cel 5,10). Conta-se que um dia, ao caminhar alegremente por um bosque, de repente, foi atacado por ladrões. Bateram nele e o atiraram em um barraco, cheio de muita neve. Mas ele, assim que os ladrões se retiraram, saltou para fora da fossa e, com alegria redobrada, começou a cantar em alta voz louvores ao Criador de todas as coisas (1Cel 7,16). Relata-se também que Francisco conservou sua alegria mesmo no cárcere, em Perúgia. Os seus companheiros de prisão o consideraram um louco porque, “enquanto eles estavam tristes, ele [...] não parecia entristecer-se, mas de certo modo [parecia] alegrar-se” (3Soc 4).
No entanto, relata Celano, que Francisco inflamou-se de peculiar alegria, a ponto de não caber mais em si (1Cel 3,7), ao descobrir a sua razão principal de viver, ou melhor, quando “mostrou-lhe o Senhor o que convinha fazer” (1Cel 3,7). Em outras palavras, alegrou-se sobremaneira quando o Altíssimo “fixou sobre ele o seu olhar” (2Cel 10,12) e lhe revelou que a felicidade (beatitudo) não está no âmbito da fortuna, isto é, na ordem do ter, do poder, do saber, das honras e dos prazeres do corpo, mas do ser. O Altíssimo lhe mostrou que “muito mais felizes são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 11,28). E à medida que Francisco dispôs-se a obedecer à Palavra de Deus, revelou ao mundo que o Evangelho é fonte de inesgostável alegria e que a felicidade nasce da conformidade íntima entre o que se quer e o que se vive.
De fato, o Pobre de Assis alegrou-se muito com a descoberta do dom de sua vocação de ser feliz na sequela Christi. E essa alegria se intensificava sempre mais cada vez que alguém o procurava com o desejo de ser feliz à maneira dele e, “levado pelo espírito (cf Mt 4,1) de Deus, vinha para receber o hábito da santa Religião” (1Cel 12,31). Ele recebia cada irmão benignamente, isto é, como dádiva divina. Basta recordar aqui a peculiar alegria que tomou conta de Francisco quando Frei Bernardo associou-se a ele, pois, “o Senhor parecia ter cuidado dele, dando-lhe o companheiro necessário e o amigo fiel” (1Cel 10,24).
A fraternidade é, portanto, um dom de Deus, bem como é dádiva divina a alegria que extravasam os irmãos à medida em que se unem e, em comunhão dialógica, respondem ao chamado do Senhor de viver e anunciar o Evangelho de Jesus Cristo. A vida em fraternidade é fonte de alegria porque a felicidade está arraigada em ter a quem amar e amá-lo efetivamente. Por conseguinte, na vida humana, ou melhor, na vida em fraternidade existe tanto de alegria quanto há de amor. A caridade é realmente fonte e expressão de alegria, conforme atesta o seguinte relato de Tomás de Celano: “Com quanta caridade os novos discípulos de Cristo se abrasavam! Quão grande amor de companheirismo vigorava neles! Pois, quando se reuniam em algum lugar, ou se encontravam no caminho, como acontece, resplandecia o fogo do amor espiritual, espargindo sobre todo amor as sementes da verdadeira afeição. Como? Abraços castos, afetos suaves, ósculo santo, conversa agradável, riso modesto, fisionomia alegre, olhar simples (cf. Mt 6,22), ânimo suplicante, língua que abranda, resposta delicada (cf. Pr 15,4.1), o mesmo propósito, pronto serviço e mão infatigável” (1Cel 15,38).
O pai Francisco deu tanta importância à atitude de permanente alegria dos frades que a colocou como preceito em sua primeira Regra: “E cuidem [os frades] para não se mostrar exteriormente tristes e sombriamente hipócritas; mas mostrem-se alegres no Senhor (cf. Fl 4,4), sorridentes e convenientemente simpáticos” (RnB 7,16). E os irmãos que apresentavam um rosto desanimado, cabisbaixo, sisudo e triste eram severamente admoestados por Francisco (2Cel 41,128), pois, considerava essas expressões de vida incompatíveis com uma opção de vida segundo o Evangelho de Cristo. Além disso, um irmão acabrunhado, choroso e desolado é facilmente levado a alegrias vãs (2Cel 88,125). Esse torna-se presa fácil dos demônios, visto que, diz Celano, “o demônio exulta acima de tudo, quando pode [roubar] ao servo de Deus a alegria de espírito” (2Cel 88,125).
Por conseguinte, a melhor arma ou o remédio mais eficaz contra toda espécie de vício é a alegria espiritual. E a alegria espiritual radica-se na virtude da caridade. Quem a possui é feliz e “os demônios não podem ofender o servo de Cristo, quando o virem repleto de santa alegria” (2Cel 88,125). Francisco, na Saudação às Virtudes, enfatiza que “a santa caridade confunde todas as tentações diabólicas e carnais e todos os temores (cf. 1Jo 4,18) da carne” (SV 13). Quem possui uma virtude e não ofende as outras tem todas e com elas confunde todos os vícios e pecados. Foi, portanto, dessa forma que Francisco manteve-se sempre na alegria do coração (2Cel 88,125).
A alegria do coração puro de Francisco e dos seus companheiros transborda para fora dos limites da Fraternidade constituída pelos irmãos na Ordem. Os irmãos, extravasando de alegria divina, vão ao encontro de todos os seres humanos, especialmente dos mais necessitados. É um dever alegrar-se junto aos menos favorecidos, conforme lê-se na Regra não Bulada: “os irmãos devem alegrar-se quando conviverem entre pessoas insignificantes e desprezadas, entre os pobres, fracos, enfermos, leprosos e os que mendigam pela rua” (RnB 9,2).
Todavia, a alegria franciscana deve estender-se natural e necessariamente a todos os seres do universo. Pois, todos têm a sua razão de ser em Deus que os cria livremente e, por isso, são diferentes manifestações da potência, da sabedoria e da suprema bondade de Deus. O sol, a lua, as estrelas, a terra, a água, o fogo e o vento são fontes de admiração e de inefável alegria para Francisco, porque cada criatura, na sua irrepetível singularidade, é conhecida, amada e criada no Filho e pelo Verbo eterno de Deus Pai. Enfim, Francisco, após um longo e gigantesco esforço de purificação, exultante de alegria, compôs os louvores ao Criador: “Louvado sejas meu Senhor, com todas as tuas criaturas”.
No entanto, a alegria franciscana somente chega ao ápice da perfeição no cumprimento das santíssimas palavras e obras do Senhor: “Amai vossos inimigos e fazei o bem àqueles que vos odeiam” (cf. Mt 5,44) (RnB 22,1). Nosso Senhor promete a eterna alegria como recompensa àqueles que acolhem com amor aos seus inimigos: “Felizes sereis quando vos insultarem e perseguirem e, por minha causa, disserem todo tipo de calúnia contra vós. Alegrai-vos e exultai, porque grande será a vossa recompensa nos céus” (Mt 5,11-12). A alegria consuma-se, portanto, num amor tão intenso que não apenas suporta, mas abraça pacientemente e de bom coração as injúrias, os opróbrios e desprezos “por causa de Jesus Cristo e da caridade de Deus”.
No diálogo de Francisco com Frei Leão acerca da Perfeita Alegria, evidencia-se que o ser humano recebeu do Espírito Santo o carisma de “vencer-se a si mesmo” (Fior 8) até o total abandono de si: “Pai, em tuas mãos entrego meu espírito” (Lc 23, 46). O amor de Deus expresso na Cruz de Jesus Cristo é, portanto, o mistério íntimo da Perfeita Alegria de Francisco e seus primeiros companheiros.
Por fim, evocamos a inaudita alegria que Francisco experimentou nos momentos mais agudos de sofrimento que precederam sua morte corporal. Na iminência da morte, já com o corpo bastante debilitado pela enfermidade, “rindo e alegrando-se, tolerava de muito boa vontade o que era a todos penoso e insuportável olhar” (1Cel 8,107). De fato, a real proximidade da hora extrema da morte não lhe causou tristeza, pois, “tendo amado até o fim os frades seus filhos, recebeu a morte cantando” (2Cel 162,214). Assim, Francisco, no auge de sua maturidade humana e espiritual, cheio de esplendor e alegria, de que os irmãos muito se maravilharam, passou da presente à bem-aventurada vida (Fior 6).
Portanto, Francisco possuía, sim, uma índole alegre. Porém, transbordou realmente de “alegria espiritual” (2Cel 88,125) ao optar livremente pelo Evangelho de Jesus Cristo, fonte de genuína e inesgotável alegria. A alegria plena encontra-se na interioridade mais íntima da alma humana, isto é, na “inocência matinal” do total desprendimento e na posse de Deus. A existência de Francisco foi expressão de “inaudita alegria” (2Cel 137,181) porquanto deixou-se impregnar e enlevar pelo espírito da jovialidade de Deus, que amorosamente se humanizou em Jesus Cristo, para que pudéssemos encontrar em sua Cruz a nossa perfeita e eterna alegria.


Extraído de http://www.franciscanos.org.br/v3/vidacrista/artigos/mannes_171008/ acesso em 22 out. 2008.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

O viver das irmãs em São Damião

Estamos nos abeirando  das comemorações dos oitocentos anos do carisma clariano que serão celebrados de modo particular da cidade de Canindé (CE),  nos dias 9  a 11 de agosto de 2012.  Fernando Felix Lopes, português, escreveu uma das encantadoras biografias de São Francisco que conheço.  Deu-lhe o título de  O Poverello. São Francisco de Assis  (Ed. Franciscana, Braga,  5ª. ed, 1996).  No intuito de nos colocar no espírito das comemorações clarianas transcrevemos umas poucas páginas deste autor que nos falam  da vida das irmãs em São Damião e dos últimos dias daquela que se definia como  “plantinha”  do Seráfico Pai. Os leitores não encontrarão novidade alguma, mas poderão saborear o jeito  charmoso português de dizer as coisas mais simples da vida. (Frei Almir Guimarães)
O que foi o viver das irmãs ali recolhidas em São Damião,  não é fácil de contar.  A Regra de vida era o Evangelho, nem Francisco soubera ditar outra.
Com as rezas, o trabalho para o pão de cada dia. E nos casos em que o trabalho não dava, sentavam-se a comer,  à “mesa do Senhor”, a caridade da esmola pedida de porta em porta. O ideal poeticamente exemplificado por Francisco nas avezinhas do céu e nos lírios do vale, traduziram-no as freiras em forma comum de viver.
Clara aos pobres mandara distribuir seu patrimônio, e as outras irmãs de modo semelhante procediam. Professavam a pobreza absoluta que liberta a alma, a desamarra do egoísmos que prendem e  dos cuidados que consomem.  Clara, a pobrezinha, era o modelo; quando Francisco a olhava, com certeza, via nela o rosto da madona  Pobreza.
O único privilégio que desejou dos Papas foi o privilégio de não ter nada. Quando o requereu a Inocêncio III, na chancelaria pontifícia nem sabiam como redigir o documento para satisfazer tão insólito e original pedido.
Esses passos da Regra escrita por Santa Clara e aprovada pelo Papa na véspera da sua morte, deixam-nos entrever a devoção com que ali se adorava  Sóror Pobreza, que  São Francisco fizera a sua dona.
“O Altíssimo Pai  celeste se dignou alumiar o meu coração para que, seguindo o exemplo e doutrina de nosso bem-aventurado Pai  (S. Francisco),  fizesse penitência; pouco depois da sua conversão, juntamente com minhas irmãs  voluntariamente lhe prometi obediência. E vendo o bem-aventurado Pai que nenhuma pobreza nem trabalho, nem tribulação, nem desprezo do mundo temíamos, mas antes com grande contentamento levávamos estas coisas, movido de piedade nos escreveu forma de viver em esta maneira:  Porque, por inspiração do Senhor, vos fizestes  filhas e servas do Altíssimo e Sumo Rei o Pai celeste, e por graça do Espírito  Santo destes de viver segundo a perfeição do santo Evangelho, quero e prometo, por mim e por meus frades, sempre  ter de vós, como deles, cuidado diligente e especial solicitude.”
“E assim como fui sempre solícita, juntamente com minhas irmãs, em seguir a pobreza que prometemos ao Senhor e ao bem-aventurado  São Francisco, assim observem as abadessas que depois de mim vierem:  a saber,  que não recebam nem tenham possessões  ou propriedades por si nem por interposta pessoa, nem qualquer outra coisa que possa chamar-se de propriedade, se não somente quanta terra se requer para honestidade e conserto do mosteiro, e essa terra não se lavre  como horta  para as necessidades das irmãs”.
Quarenta anos ali viveu Clara. O coração anda-lhe cheio do Evangelho.  Tanto, que é nele que  São Francisco procura alumiar de certezas os caminhos da vida, nas horas aflitas de suas dúvidas.  Vem-lhe o desassossego  ao coração, e já não sabe que mais agrade ao Senhor: se a recolhida oração longe do mundo, se o apostolado entre os homens. Por sua ordem vai Frei Masseu ler no coração de Santa Clara os desígnios da Providência e torna com a resposta: – “Vai pelo mundo anunciar aos homens o Reino dos céus”.
Por longe, outros mosteiros vão surgindo a recolher donas e donzelas que trocam as riquezas e os gozos do mundo pelas alegrias  simples do Evangelho. Clara traduz para o feminino os ideais largos e viris do Poverello, e no seu pobrezinho mosteiro de São  Damião é ela o modelo e forma de vida que todas procuram imitar.
A piedosa caridade doméstica, esta virtude que muitos, em família,  julgam cumprir borrifando de fel a vida de todos, praticava-a com requintes de ternura:  as ocupações mais humildes da casa eram para ela momentos de oração, lavava os pés das irmãs serventes quando chegavam dos trabalhos por fora, cuidava das enfermas, nas noites frias do inverno andava solícita a agasalhar as irmãs, era ela quem despertava à noite para  matinas, e ela mesma acendia as luzes das escadas e espevitava a lâmpada da capela. Doente  desde os trinta e um anos, nunca perdeu o hábito do trabalho, nunca amaciou os rigores da pobreza, nunca perdeu a coragem nem a alegria de viver.
Em 1228, o papa Gregório IX vem a São Damião a teimar com ela para que amenize os rigores da pobreza, e oferece-lhe rendas para sustentar o mosteiro. Recusa com vigoroso respeito as solicitudes do papa; e quando este  lhe propõe que se os escrúpulos lhe vêm do voto que fizera, dele a desliga dispensando-a, ei-la que responde: – “Santo Padre, desligue-me dos meus pecados, isso lhe peço; agora de seguir até à morte o Cristo pobre, de tamanho favor não desejo dispensa”.
Em setembro de 1240, os sarracenos dos exércitos imperiais, passando por Assis, escalam os muros do mosteiro. Clara levanta-se de seu leito de enferma, manda às irmãs que lhe tragam a custódia com o  Santíssimo Sacramento, e todas de joelhos, implora ela:  -“Guarda, Senhor, este pequenino rebanho  que os lobos assaltam, pois eu já não o posso defender”.  E Jesus responde:  “Sossega, filha, que sempre o guardarei”. E os sarracenos fogem em debandada.
Um  ano depois, Vital de Anversa torna com os exércitos imperiais a sitiar  Assis,  -  “Muitos benefícios devemos à nossa cidade, é agora o tempo de lhos pagar”, diz Clara.  Cobre-se de cinzas todas as irmãs com ela;  jejum a pão e água, sem outra coisa a comer, e ferventemente imploram a proteção de Deus para a cidade aflita. E no outro dia  Vital levanta o cerco e retira com seu exército.
No leito da agonia, trazem-lhe a bula de  Inocêncio IV a aprovar a Regra e a Pobreza. Pega dela e beija-a. Uma alegria imensa lhe inunda o rosto. À sua volta Frei Junípero, Frei Ângelo e  Frei Leão  são ali a presença de Francisco que há muito voara para o céu.  -  “Que notícias me trazes de Deus?” pergunta a Frei Junípero. E o frade simples, o jogral do Senhor, tem nos lábios palavras divinas que mais lhe enchem de alegria o coração.
É a hora extrema. Sente que a alma começa a ausentar-se:  – “Vai segura, tens bom guia para a caminhada. Quem te criou, Ele mesmo  te santificou e te amou mais do que a mãe ama o o seu filhinho.  Bendito, Senhor por me haveres criado!”
Era  11 de agosto de 1252  quando a sua alma partiu nos braços da morte, a cantar louvores ao Senhor que lhe dera a vida.
fonte:http://www.franciscanos.org.br/n/?p=19577