segunda-feira, 21 de abril de 2014

Frei Mateus de Bascio, apontamentos para uma biografia.

FREI MATEUS DE BASCIO
Mateus de BascioConhecemos muito pouco a figura de Mateus de Bascio. Esta crônica histórica, ou apontamentos para uma biografia, não pretende suprir lacunas e pesquisas. A passagem do autor, Flávio Gianessi, pela cidade de Bascio em companhia de outro frade e de um sacerdote diocesano, lhe oferece ocasião para apresentar a questão: Quem é frei Mateus de Bascio? Que lugar lhe cabe na história franciscana?
Acompanhemos a narrativa. Ela acrescentará alguns dados interessantes à história desse homem que já foi considerado fundador da nossa Ordem Capuchinha.
Premissa
O velho carro “cinquecento” de Dom Elígio rangia mais do que de costume, embora o meu peso e o de Frei Guilherme fossem um acréscimo insignificante se comparados aos seus cento e vinte e cinco quilos de “clero católico”, como costumava dizer de si mesmo. Descemos da igrejinha de Antico e, antes de subirmos a San Leo para a Festa do Perdão era dois de agosto o padre teve a fantasia e nos fazer visitar Bascio, onde havia nascido Frei Mateus, o primeiro capuchinho. Dele eu somente sabia que se “sabia pouco”; um reformador nos passos de Francisco, sobre o qual pairava a sombra da “traição”, por ter voltado, após alguns anos, para a Observância. Estava eu numa fase em que as cópias não me interessavam, ainda menos as mal feitas. Contudo, paramos na estrada provincial frente a igrejinha nova de Mulino de Bascio, e logo vimos uma grande estátua de pedra com o rosto voltado contra o muro, como os meninos quando são postos de castigo. Enquanto comentávamos isso, alguém se aproximou para nos explicar que “aquela, era uma nova estátua de Frei Mateus que devia ter sido colocada para além da estrada, mas a dona daquele terreno não queria, porque ela passava sempre por lá, de carro, e Frei Mateus estaria bem no meio. Não sei quem de nós tomou a iniciativa, mas o fato é que dois minutos depois estávamos todos a discutir com a dona. Falamos por um bom tempo, e a senhora nos deixou com um “veremos”, fraquinho. Após sete dias voltamos a passar por lá de novo e pudemos ver maravilhados que Mateus já estava posto para além da estrada. Como nicho ao longe um triângulo de rocha e como flores, ramos de plátano. Satisfeitos, nos olhamos de um jeito gozador, de quem tem consciência de ter feito algo importante: Frei Mateus estava no seu devido lugar. Mas,
na história?
1-Dizem que era mais bonito morto que em vida.
O rosto como que havia serenado: as rugas do pregador fogoso que mandava para o inferno ricos e pecadores, agora estavam distendidas e seu corpo que só vira água quando lhe chovia em cima, não somente não cheirava mal, mas para alguns até exalava certo perfume.
Um pouco antes pedira para se confessar. Chegava Frei Urbano Veneto, da Igreja dos Observantes de São Francisco da Vinha, e foi logo começando o interrogatório: Mas de que Ordem é você? Você não é mais capuchinho? Como então você está aqui, como hóspede do pároco de São Moisés? Por que você vive girovagando fora dos conventos? Frei Mateus, com dificuldades conseguiu responder que tinha a licença do Senhor Papa, subscrita por quatro Padres Gerais da Observância, e a mostrou. Assim, certo de que não estava frente um a um fugitivo ou apóstata, o frade decidiu confessá-lo. E assim morreu. Mas, se o pobre frade sem irmãos pensava que aquela seria sua última viagem, enganou-se.
Apenas expirava o pároco e os frades da Observância começaram a brigar pelo cadáver. O bispo interveio e entregou o corpo aos últimos, proibindo porém mais de uma vez que se exibisse sinais de culto. Para evitar confusão com pessoas, foi transportado à noite e sem lanternas. Alguém viu também os Capuchinhos que já estavam estabelecidos em um convento em Veneza, mas não parece que tenham apresentado nenhuma pretensão de tê-lo de volta, nem depois de morto: não convinha aos “filhos”, exatamente os Capuchinhos cultivar a memória de um “pai” que entendiam tê-los abandonado. No entanto era conveniente aos “pais”, os Observantes, honrar a memória de um “filho pródigo”, a quem era fácil fazer falar como morto, ter-se arrependido; tanto mais que apesar de tudo, parecia que fizesse milagres
2-O convento não lhe bastava
Que caminhos teriam levado Mateus, nascido em Bascio, na região do Montefeltro, morrer em Veneza, naquele sábado à tarde, vigília da Transfiguração, cinco de agosto de 1552, com a idade de cinqüenta e sete anos? Os historiadores e pesquisadores de arquivos ainda estão seguindo pistas, e tantas idas e voltas não cabem num pequeno artigo. Farei como nos desenhos em que se recompõe a figura seguindo os números, para somente no final tê-la revelada, através de um contorno aproximado. Seguirei os números, as datas mais aproximadas e seguras. Em 1523, com vinte e oito anos, torna-se sacerdote franciscano da Observância, ocasião em que vai para Camerino ajudar os empestados. No inverno de 1524, ao retornar ao convento de Montefalcone, vindo de um funeral, encontra-se com um pobre, entretém se com ele e lhe deixa um pedaço de lã de sua veste. Mas é este encontro que o deixa num sofrimento e depois numa amarga intolerância pela vida tradicional do convento. Até o hábito não lhe parecia mais o de São Francisco.
Atual Convento de CamerinoNuma noite do início de 1525, Ano Santo, adaptando o melhor que pôde um hábito, no que considerava mais próximo ao das origens, com um capuz não redondo mas em ponta, costurado à túnica, foge do convento e, talvez ajudado pela Duquesa de Camerino, sobrinha de Clemente VII, consegue ser recebido pelo Papa. Pediu-lhe permissão para viver a Regra de São Francisco à letra e andar pregando sem residência fixa, usando aquele hábito. O Papa lho concedeu, pedindo somente que se apresentasse cada ano ao capítulo dos frades, para prestar contas ao superior. E devia passar para retirar a permissão por escrito, porém, não voltou, porque talvez se tenha dado conta de que teria que apresentar à Cúria Romana a permissão por escrito, que não tinha.
Partiu para Montefeltro, e somente com licença oral começou a viver uma vida de pregador itinerante. Quando depois em abril se apresentou ao capítulo dos frades, viu-se diante das iras do Provincial, João de Fano que o trancou na prisão do convento de Forano. Ali permaneceu três meses antes que a Duquesa de Camerino fizesse chegar ao Padre Provincial a sua irritação, com uma carta neste tom: “Dou-lhe três dias para que me entregue libertado Frei Mateus de Bacio; do contrário sereis banidos das minhas terras e referirei à sua Santidade em que conta tem sua vontade. Faça como lhe disse e poupe-me de ter que ir além”. Assim, Mateus se encontra novamente livre para continuar sua vida. Dentro em pouco porém, põem-se a procurá-lo dois frades fugitivos da Observância que inutilmente haviam pedido “licença para levar vida pobre nos eremitérios”. São os dois irmãos, Ludovico, sacerdote e Rafael, leigo, filhos do Capitão Tenaglia de Fossombrone. Mesmo que Mateus logo lhes diga que não tem licença para “reunir companheiros” fica comprometido com eles e com outros que rapidamente se juntarão nas primeiras batalhas para obterem a liberdade de viver conforme a Regra.
É este o quadro rude, mas real, que o cronista nos oferece daqueles primeiríssimos meses: Frei Mateus vivia com Frei Paulo de Chioggia e também com um não bem definido Frei Próspero, e recorda que “tinham feito um refúgio de estopa e dormiam, com todo respeito, como faziam os animais; eram atendidos no comer e no beber pelo povo, e o referido Frei Paulo ali esteve mais assiduamente que Frei Mateus, porque Frei Mateus era mais andarilho”. Se Ludovico e os outros estavam mais por uma vida eremítica, ele era, e antes deles, mais por uma vida nômade e itinerante. Quando em 1529 realizou-se em Albacina o primeiro capítulo da nova Reforma e foram aprovadas as primeiras Constituições¹ chamadas exatamente “dos Frades da vida eremítica”, Frei Mateus foi eleito o primeiro superior geral, contra sua vontade, mas depois de poucos dias apresentou inexoravelmente a demissão.
Decidiu assim deixar os outros combaterem suas batalhas para poder ele mesmo permanecer fiel à sua vida andarilha e quase sempre solitária.
A sua aventura permanece um pouco fora das Crônicas, mais preocupadas em seguir os passos de Ludovico, empenhado como os outros, de corpo e alma, em salvar a “nova família” das tentativas de supressão. Todavia a história conserva alguns rastros do seu girovagar, mesmo um tanto coberto de lenda. Aparece em Fabriano, em Mercato Saraceno, Forli, Luigo, e por várias vezes em Veneza.
3-Um irmão incômodo?
Clemente VIIEra conhecido em meia Itália como o pregador que gritava nas praças; “Ao inferno os pecadores, os usurários, os concubinos; mas também era conhecido como aquele que reunia crianças e lhes falava de Deus e que recebia de presente bois inteiros e campos de fava para distribuir aos pobres. Há quem diga que foi até Jerusalém em peregrinação. Quando depois entre 1536 e 1537, voltou a Roma, começou a crise. Encontrou a situação mudada: o mesmo Frei
Ludovico, após sérias lutas internas, não encontrou mais nessa reforma sua primitiva vida eremítica pela qual havia deixado a Observância. Voltava-se a preferir o trabalho manual, os estudos e a pregação culta. Frei Mateus começou encontrar-se sempre mais, em Roma, mas também em outros lugares, com frades que não condividiam com a sua itinerância; diziam-lhe que sua permissão precisava ser reconfirmada pelo novo Papa. Não era mais o seu tempo. Aquele era o tempo em que Frei Bernadino de Asti, novo superior geral, preocupava-se em apresentar um aspecto mais ordenado dessa nova “Congregação de Capuchados”. Além do mais preocupava o fato de que, nesses tempos de Lutero, Mateus tivesse começado a mandar ao inferno também Bispos e Cardeais, por serem depredadores dos bens dos pobres. Por outra parte, o Padre Geral dos Observantes fazia de tudo para atrair as simpatias daqueles frades capuchinhos que se achavam desiludidos com as últimas controvérsias de família. Assim foi que, talvez também por outros motivos, Frei Mateus voltou para os Observantes. Intuíra, (Ter-lhe-iam prometido formalmente?) que assim ser-lhe-ia mais fácil continuar sua itinerância: tirou o capuz e sem mais modificações no hábito “pobrezinho”, continuou a girovagar até a morte, por outros tantos quinze anos. Há quem diga que, por vontade do Papa, teria sido “capelão militar”, acompanhando as tropas imperiais, nas guerras contra os Huguenotes1
Protestantes, calvinistas franceses que formaram um partido político religioso (obs.do tradutor)
. Nos últimos anos sabemos que estava em Veneza, dormia nas torres e debaixo das pontes. Foi afastado, pelo menos uma vez, pelas autoridades da Sereníssima2 e confinado em Chioggia, porque durante os processos girava com uma vela na mão, dizendo que estava procurando a justiça.
4-Conclusão
Ao final destas breves “pistas” para uma biografia de Frei Mateus de Bacio, brota espontaneamente uma pergunta: Qual é o lugar de Frei Mateus dentro do movimento de hoje, numa época de reformas e contra reformas?
Afinal, ninguém mais o chama de “fundador” da reforma capuchinha, até porque este título com maior direito, pertence a Ludovico de Fossombrone assim como o de “organizador” compete a Frei Bernadino de Asti. Mateus poderia ser reconhecido mais no lugar de “iniciador” ainda que “involuntário”, que porém fez brilhar um aspecto fundamental e esquecido do Franciscanismo: a itinerância absoluta! Ele permaneceu como um irmão original e solitário no franciscanismo e na Igreja, com uma riqueza de mensagens que o Movimento Franciscano não deveria deixar cair no esquecimento.
Mateus de fato está próximo somente a figuras como Francisco e José Bento Labre e representa uma daquelas aproximações, excepcionais para a Igreja Católica Ocidental, da categoria russo-ortodoxa dos “JURODIVYE”, (os “pazzi christi” = “loucos de Cristo”) e dos monges itinerantes presentes em todas as grandes religiões. Sua vida oferece afinal um engate para uma última consideração: propô-lo como “Santo Interobediencial”, como figura emblemática, uma reaproximação possível de uma “fusão” das Ordens masculinas franciscanas: conventuais, observantes, capuchinhos e reformados.
Sua experiência pode de fato apresentar cabe a historiadores melhores a confirmação a superação da “reforma como divisão”, e a confirmação da diversidade como riqueza para todos. A conhecida incapacidade da instituição de sentir a pluriformidade como um dom, e a tentação do indivíduo em sentir a obediência como um freio, são duas faces da mesma moeda e a sombra do mesmo limite presente em toda a reforma nascida como divisão.
A experiência de Mateus, de Ludovico e de todos os outros que, vindo da Observância, entraram nos Capuchinhos, mas também a experiência da mesma Observância, permanecem marcadas por essas ambigüidades que voltam cada vez que, da necessidade pessoal de viver a Regra à letra, se passa ao desejo de reforma coletiva; por “amor à Ordem” arrisca-se a perder aquela autenticidade singular que marcara os inícios. Parece que Mateus, tenha esse limite menos que os outros, e o seu retorno à Observância pode ser a confirmação dessa afirmação:
... e Pedro, Franco, Gerard, Pierre, Jean Marie, e outros, “barbudos” ou “caminheiros” que encontro na caminhada fazem-me pensar que a itinerância de Mateus não seja uma categoria ultrapassada. E quando Gino me perguntou o que eu acho da sua idéia de fundar uma Ordem Ecumênica de monges itinerantes, gostaria de responder-lhe: “Fica capuchinho!”
Perdão: “Fica franciscano!” 
Flávio Gianessi, Fra Matteo da Bascio, spunti per una biografia, L´Italia Francescana, 62, 1987, n. 4-5, p 509-514
Tradução: Frei Odair Verussa.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Na fonte do pensamento franciscano

No final da leitura do trecho do Evangelho (Mt, 10, 9) - que nos convida a ir pelo mundo sem "alforje nem bordão", cobertos apenas pela luz da "boa nova" -, Francisco, com 26 anos, no outono de 1208, exclama na igreja da Porciúncula (Assis): "é o que desejo, é o que quero", isto é, ir pelo mundo não armado como rico, para se defender ou para humilhar, mas como irmão. É um vento novo que transfigura o movimento de renovação social geral - é a idade das comunas -, eleva sua índole sem recusar as formas, radicaliza a perspectiva sem desacelerar a corrida. O olhar sai do âmbito do eu para a direção do nós, suscitando cenários novos de acordo com uma convivência inspirada na lógica altruísta, não possessiva ou elitista, contra a atitude difundida de apropriação, que atenua o encanto das coisas, fazendo com que estas percam seu sentido em detrimento da total vantagem do lucro. É este o propósito de Francisco, empenhado em desatar aquele nó de concupiscência que nos comprime na profundeza e que nos empurra para formas dissimuladas de violência, alimentadas de modos diferentes porque justificadas segundo pretextos.
Despertar social - O século de Francisco é empolgante e inovador. A passagem do século 12 para o 13 representa uma revolução excepcional, dentre as tantas da história da humanidade, porque marca a passagem do feudalismo para a comuna e, portanto, da hegemonia aristocrática para o sucesso político e econômico da burguesia. Um afluxo mais intenso de vida na maior parte dos países europeus - da Itália até a Catalunha, em Flandres, no vale do Reno, nas cidades alemãs, no vale do Ródano, nos Países Baixos - parece despertar a humanidade de um profundo torpor.
De família dedicada ao comércio, Francisco não pretende frear a corrida, nem interromper o crescimento, mas impedir que sejam gerados desequilíbrios e desigualdades; não quer se libertar do peso de tradições preciosas e de formas herdadas de vida, mas impedir que estas se tornem motivo de dilacerações sociais. Ele não quer que a competição chegue ao rompimento e ao conflito e que o crescimento cause divisões e contraposições entre quem está em cima e quem está embaixo, entre quem tem e quem não tem, entre quem vive como protagonista e quem vive como parasita. Como realizar este ambicioso objetivo de elevação social na paz? Não há outro caminho senão problematizar a índole do poder indo à fonte, onde se ergue a voz do direito de ser e onde se amadurece o direito ao controle sobre aquilo que consideramos estar em nosso serviço. O ser como expressão do nosso direito de ser, a existência como reivindicação daquilo que nos pertence e a vida como ostentação do poder, que, com a força, demonstra que o próprio valor são formas que aludem a uma visão de conjunto. É esta que é necessário retificar, saneando o subsolo.
Formas difundidas de contestação da Igreja e da sociedade - Francisco conhece as muitas formas de contestação em relação à Igreja e de rebeldia em relação ao tecido social. São movimentos que se inscrevem numa época em que a semente evangélica, talvez com dificuldade, mas certamente com força, pressiona, desde as profundezas, a sociedade. Francisco se deixa conquistar por ela, testemunhando a fecundidade e manifestando sua beleza. Qual vida Francisco sente nascer e como a alimenta? Ainda que de modo inicialmente vago, ele sente a lógica do tempo como alheia, porque esta tem uma marca possessiva e individualista. Ele sonha com um estilo de vida de comunhão com todas as criaturas, para além das antigas e novas formas - em sua maioria, divisórias e opositivas. A humanidade está num vórtice de culturas e de problemas que por um lado exigem a inteligência e por outro despertam sentimentos, às vezes de exaltação, mas mais frequentemente de desforra e de rompimento. Qual é o norte que conduz à partilha, além da contraposição, à solidariedade e não à exploração? Isto que Francisco procura é como a ilha de Kant, circundada por mares em tempestade, na qual gostaríamos de morar, mas custamos a vê-la e a alcançá-la. Ele percebe uma voz no ar - basta pensar nos muitos acordos frágeis de paz que, na Assis da época, divididos entre maiores e menores, eram firmados -, uma voz que convida a pôr fim nos conflitos destrutivos, que mortifica a vida e que empobrece a história; percebe profundamente, ainda que sepultada nos abismos do ser, a necessidade de dar antes de tomar, de proteger antes de pisar. Francisco logo compreende que se trata de uma voz que ressoa na história, mas que não é histórica, porque a engloba. É a voz de Deus que, segundo a história do Evangelho, mesmo sendo Absoluto se absolve da condição absoluta e vem habitar no tempo; mesmo sendo Onipotente renuncia à onipotência subindo na Cruz; mesmo sendo Sábio pronuncia a palavra mais alta - amor - a propósito do sujeito mais problemático - o inimigo. Anuncia-se uma espécie de transfiguração do horizonte do ser para além do eu, da razão, da consciência experiencial. Vislumbra-se um movimento para colocar em discussão o poder como "domínio" em favor do poder como "autoridade", passando do poder de quem impõe ao poder da "coisa" que se propõe - é a lógica da potência sem poder. Sem dúvida, o processo que ele vislumbra contradiz no fundo o caminho da história, assinalado pelo desejo de uma autoafirmação não de escuta, de domínio, não de serviço. Mas esse é um bom motivo para se render ao passo obscuro do tempo, cedendo ao peso de suas contradições? Francisco está convencido que esta semente da cessação do eu em favor do outro, do poder como domínio, em favor do poder como autoridade, de fato faz do potente também impotente, porque, mais do que aquele que propõe, ela fala e persuade a "coisa" proposta contra qualquer narcisismo egolátrico. Trata-se de uma lógica sem lógica, anterior a todas as lógicas - a lógica da gratuidade -, que o Evangelho exalta como autenticamente divina, como um prolongamento daquela que presidiu a criação do mundo - em relação ao qual somos constituídos, não constituintes -, resposta à voz que chama ao ser, não pergunta nem direito. Francisco alimentou essa semente, recebeu dessa fonte, surpreendendo e, no final, encantando os homens do tempo. É a voz da liberdade que, entendida como libertação de vínculos egolátricos e oclusivos, se exprime na gratuidade; ou melhor, é a potência como serviço, ou, se quisermos, é a potência do serviço.

Francisco e a voz que chama

Do domínio ao serviço - A voz do poder como domínio soa potente na História. O nosso tempo é de potência militar, de potência econômica, de potência científica, expressões de uma única potência - a potência da razão -, que subjuga o espaço e sujeita para si o tempo. A humanidade sempre obedeceu essa voz. Agora - essa é a pergunta - é possível fazer ecoar uma outra voz, que não é obra da razão, capaz de abrir um novo capítulo da História e, logo, de olhar de outro modo para as criaturas, sejam elas racionais ou irracionais, no contexto de um objetivo diferente, não de subjugação de um por parte de outro, mas de irmandade de um por obra de outro, não de enfraquecimento de um por parte de outro, mas de oblação de um ao outro com o fim de seu efetivo fortalecimento? Mas como alcançar essa profundidade e perseguir esse objetivo ficando dentro da lógica da razão, que é a lógica da potência como controle e sujeição, com um caráter propriamente mercantil? Não seria ainda uma versão de potência dominadora que, ficando na órbita da razão, quisesse manter sob controle a potência da razão? É esta, no fundo, a arrogância daquele que, por meio do pensamento instituidor, não se contenta em ser imagem de Deus, mas invertendo a relação, faz de Deus a imagem de si em conformidade com a primazia da razão e da sua pretensão legislativa. De fato, aquele que participa do fundamento é dono da construção inteira e, portanto, é tanto o fundamento como a construção. O mesmo se pode dizer de quem, ao mostrar com a razão a fraqueza desta, não percebe que confirma sua potência, mesmo que seja para contestá-la. Se é a razão que mede sua potência - é o prolongamento da lição de Kant -, então inevitavelmente a pessoa é tomada pela prática da potência, com a consequência que a vida só pode ser - e infelizmente parece que é - um campo de batalha, conduzida com armas sofisticadas, não apenas militares, mas também sociais, econômicas, políticas, culturais - formas diferentes desta única potência que oprime uns por parte de outros, todos tomados no vórtice da mesma lógica, alguns para manifestar sua fraqueza, outros para exaltar sua força.
Francisco "sai" do mundo - Francisco, numa rara passagem autobiográfica, diz que, depois de ter passado um certo período entre os leprosos, "sendo misericordioso para com eles", exivi de saeculo, saiu do mundo, isto é, do modo usual de pensar. Não é possível, de fato, com a razão, abrir-se a algo que não seja ela própria, ou propor com ela algo que lhe seja alheio ou que esteja fora de seu território. Como pode a razão com a razão, continuando fiel a si mesma, sair de si própria para se abrir àquilo que está além dela? E, caso isto aconteça, como reconhecer se é "outra" coisa que não a razão? Se não fosse possível colocá-la em silêncio a não ser com a razão, reconhecer a última palavra quanto à sua potência, seríamos induzidos a considerar o conflito, ou, em geral, a contraposição, como um dado que não se pode problematizar, e nós como espectadores impotentes de um duelo cujo êxito é a vitória do mais forte. De qualquer forma que for exercida, a razão sai vitoriosa, sempre da parte dos poderosos.
Francisco não segue a razão, nem se deixa encantar por sua lógica. Ele muda de rumo: antes da exploração, a contemplação, antes da pergunta, a escuta. Seguindo o Evangelho, ele indica um outro território, ou, ainda, um cenário diferente, não considerando a razão fundamental e originária, mas a derivada, mesmo que preciosa e insubstituível. A sua intuição, não dita, mas implícita naquilo que disse, é que o real não existe porque é racional, prolongamento de uma cadeia que teria origem no eterno e que uniria numa unidade o tempo e seus fenômenos. Deus não criou porque era racional que criasse, nem deu a redenção porque era racional - isto é, lógico - que viesse ao mundo e seguisse as suas criaturas, insensatas e rebeldes. Qual é o papel da razão? Onde está a força da lógica? O criado é um dom por parte de quem, não precisando de nada, quis nos envolver com sua luz. É o início da festa do ser. Como interpretar e viver, então, a própria aventura no tempo, ignorando esta "lógica altruísta", ou, pior, subordinando-a a uma lógica reivindicativa e protestativa? É esta decisão simples e revolucionária que Francisco toma com a ousadia e a profundidade do Cristo, dom do Pai para a humanidade. Ele propõe como modelo não os apóstolos ou a Igreja primitiva, mas o próprio Cristo, portanto, não propõe formas específicas de redenção, mas a própria fonte da redenção. O problema não concerne aos direitos de alguns e aos deveres de outros, ou aos bons que devem ser favorecidos e aos injustos que devem ser condenados. O problema concerne a todos - àqueles que têm razão e àqueles que não a têm, aos ativos e aos preguiçosos - na medida em que se trata de dar início ao motivo inspirador da existência ou, ainda, ao saneamento do subsolo. Em qual lugar procurar o segredo daquilo que desata para unir, que alimenta comungando, que revela os segredos dos corações, a não ser nos abismos da bondade divina? Qual estilo a ser proposto, a cultura a ser elaborada, as orientações a serem assinaladas para enfrentar as oscilações do tempo, em vista de um salto de qualidade? O que Francisco quis dizer quando, no Testamento, relembrando a sua conversão e os primeiros passos de seu projeto de vida, escreve que "ninguém sabia me dizer o que eu deveria fazer, mas o Altíssimo me revelou que eu devia viver segundo o santo Evangelho"? Qual o alcance desta anotação, aparentemente autobiográfica, mas, na verdade, uma abertura distraída e provocante sobre seu tempo?
Justamente por ser uma época de grandes mudanças, as divisões se tornam mais marcadas e a ostentação mais visível, assim como se mostra mais urgente a comunhão, em vista de um modo de ser vivido na festa, não no luto, mas na solidariedade, não na contraposição entre irmãos, mas entre inimigos ou estranhos. O que permanecia efetivamente inativo? Qual semente estava secando? Francisco está perturbado e pensativo - com desejo de ativar uma força que se revele na comunhão e que, exprimindo-se na criatividade, transforme os sujeitos em protagonistas, não em patrões - firmemente convencido de que a grandeza não está em ter ou sujeitar, mas em dar e servir. A filiação divina, fruto da obra de redenção de Cristo, se impõe e é testemunhada como fraternidade humana, alargada a todas as criaturas. É a grande "boa nova" do Evangelho, que, perante sua luz, inverte a perspectiva dominante, isto é, não mais a fé em função da razão ou a razão em função da fé, mas o envolvimento da razão e da fé na lógica altruísta, segundo a qual antes de ter é preciso dar, antes de interrogar é preciso escutar, assumindo que o Evangelho não é um feixe de verdade, mas um lugar de fraternização universal.

Além da objetivação da razão e da fé

A doação, alma inspiradora dos percursos da razão e da fé - O objetivo a ser alcançado é o da comunhão entre todas as criaturas, ou seja, o sacrum commercium omnium creaturarum, reativando uma circularidade que não exclua nada, além do âmbito da razão e além dos caminhos da fé. É o de colocar-se, para além destas duas asas, à procura daquilo que permite o voo. A energia divina, que a encarnação do Verbo divino introduziu no tempo, se mostra bloqueada, às vezes, desviada, ou, talvez, apenas menosprezada, mas, certamente, não colhida em sua radicalidade explosiva. Isso porque a atenção se deixa capturar por uma forma específica de vida ou por uma dimensão do ser, conforme as forças em campo se coagulam e se impõem. O olho parece incapaz de alcançar aquela profundidade abismal em que se perdem as nossas raízes. Seguindo os percursos da razão ou as indicações da fé, tendemos a absolutizar uma aventura dentre as tantas possíveis, acreditando, erroneamente, que se pode circundar as verdades, que, porém, nos guiam. Em que momento começa e acaba o bem? Como é possível defini-lo? É preciso educar o olho para ver as coisas de outro modo. A pluralidade das situações, das expressões religiosas e culturais, mais que em termos de desforra de umas contra outras, deve ser interpretada como confirmação de uma fonte originária, para a qual os riachos, nos quais muitas vezes nos perdemos, devem conduzir. Este é um dos sentidos do convite de Francisco para ser minores et subditi omnibus, isto é, para não estar fora, sobre ou contra os outros, mas para testemunhar um modo de ser que ajude a desatar a rigidez dos estilos de vida, herdados e nunca problematizados, em nome da fonte comum, para cuja luz todas as coisas parecem preciosas e caducas ao mesmo tempo. Os inimigos não existem fora de nós. A fonte deles é a mesquinhez do espírito, a miopia da inteligência. Francisco quer que se veja a luz também onde ela não brilha. As formas conflituais são a confirmação de dilacerações interiores, que têm raízes distantes, alimentadas por tudo aquilo que suspeitamos que possa contestar o nosso poder ou reduzir seu âmbito. O testemunho de minoridade e de sujeição tem sentido e peso e se amadurece dentro desta lógica de autêntica liberdade criativa.
Contra a tendência de possuir - A recusa do dinheiro, por parte de Francisco, é indicativa, sobretudo do que ele detesta, isto é, o dinheiro como símbolo do poder dominador, instrumento da arrogância social, ao longo de uma hierarquização que muda de grau, mas conserva inalterada a lógica, potestativa e de concupiscência. Francisco quer se afastar desta lógica. A sua prática ascética, rigorosa e constante, não tem outro objetivo senão resistir à tentação de possuir, inimiga da comunhão - aquele que possui, no fim, se mostra possuído por aquilo que possui. Em outubro de 1223, Francisco, excepcionalmente inquieto por causa do rumo que sua Família estava tomando, ouvirá o chamado da amiga Clara: "mas por que você se angustia tanto? A Ordem não é sua, é dele, de Deus, o pastor supremo". É o toque purificador da fé que se concluirá com a identificação com o Crucifixo em La Verna. É a liberdade como libertação da pretensão de ser proprietário de alguma coisa cuja fecundidade é medida em base à capacidade de ampliar os espaços de vida e de pensamento. Enquanto não envolve o espírito, tornando-o transparente, a liberdade é uma bandeira que assinala uma prisão.
O outro não é o não-eu - O ponto central é constituído pelo lugar que é atribuído ao eu, se primeiro e qualificante, ou, ao contrário, sucessivo e funcional. O Ocidente sempre colocou no centro o eu - a razão, a consciência, o horizonte experiencial -, medida suprema de todas as coisas, contribuindo para a ocidentalização do mundo. O outro é o não-eu, objetivado ou objetivável, a ser assimilado em si numa gama de matizes, da imposição da própria cultura à hostilidade declarada em relação a quem - indivíduo, grupo ou nação - não aceita as nossas ideias ou se rebela a elas, excluído do debate comunitário, ou relegado à posição subalterna. É a lição da Europa colonizadora. Mesmo onde é contestada, tal Europa domina; mesmo que seja rechaçada, é rechaçada com as suas próprias armas. "Não há conflitos que não sejam conflitos originariamente próprios da Europa, quaisquer que sejam as terras ou os mares em que ocorrem. Para esta europeização do mundo não foi mais necessário ter o continente europeu como centro. Uma vez que a Europa se expandiu em todo o mundo, o espírito europeu não está mais na Europa, transmigrou alhures. Na América do Norte, por exemplo, mas não creio que seja menor na Ásia - no Japão em primeiro lugar, depois na China, cada vez com mais intensidade e convicção, e, em seguida, nos vários países do sudeste asiático". Nesta transmigração, a "razão" europeia, a razão enquanto potência, acentuou seu lado prático-operativo porque foi identificada com o eu - res cogitans - conforme à lógica daquela egolatria narcisística que eliminou do horizonte toda demanda que pudesse atrapalhar sua afirmação. Domesticando o objeto para a sua lógica, a razão colocou apenas as perguntas que estavam a seu alcance durante um percurso ou método que considerou produtivo, para confirmar seu primado e sua força resolutiva.
O conhecimento como re-conhecimento - Pois bem, no centro da Europa veio erguendo-se uma outra voz, que abriu um outro caminho, revelou uma outra perspectiva, segundo a qual ao eu - a razão, a consciência experiencial... - não cabe o primeiro lugar, a partir do momento que este eu existe apenas se quisermos que exista, portanto, ele é derivado e devedor. O eu não é o primum. O eu é derivado. Se for assim, o eu deve crescer com uma atitude animada por profunda gratidão. No princípio é aquele - Deus, os pais, a sociedade... - que podia não nos querer. O conhecimento, do modo que for alcançado, deve ser no fundo re-conhecimento, na consciência de que aquilo que se conhece é, no fundo, expressão de um gesto de gratuidade original, isto é, que emerge daquele fundo de infinitas possibilidades do qual a liberdade criativa o conduz ao ser. É a luz que dá alimento e cor à nossa existência, empenhada em renovar sua lógica através de uma gestualidade análoga. Do domínio à admiração: este o grande salto de qualidade que Francisco propõe. Isto foi antecipado naquela cena espetacular, imortalizada por Giotto, que retrata Francisco discutindo com o pai Bernardone - na praça de Assis. A fé e a razão. Francisco escolhe a fé como horizonte de luz, Bernardone escolhe a razão como instrumento de poder, a primeira revestindo-se de fraqueza, a segunda de potência; uma a serviço dos outros, a outra em defesa de si próprio. Uma discussão apaixonante, que se repete na história nem sempre de forma transparente, mas ainda sim com a mesma radicalidade. A razão do poder se mede com a razão da fraqueza, a razão triunfante com a razão crucificada - o cenário que a fé revela não faz parte do circuito da "loucura" segundo os gregos, como diz São Paulo? É o imenso panorama da fé cristã que Francisco revela, incitando a razão a deixar de lado sua arrogância e, ainda que confiando nela para se difundir, a ser ousada, não na submissão, mas na liberdade criativa, graças à qual nos tornamos protagonistas mas não déspotas, partícipes do banquete da vida com respeito, sem arrogância, enriquecendo-o, não depredando-o.
Originalidade do pensamento franciscano - A força revolucionária da família franciscana emerge deste confronto, e a sua proposta, atenta em recuperar a inspiração originária do cristianismo com o retorno às origens, ou melhor, ao Evangelho como forma de vida, se mostra sugestiva. É uma voz nova que suscita entusiasmo e faz pensar. Aliás, pode-se talvez dizer, não sem um pouco de exagero, que a época medieval é uma época original em relação tanto à época grega quanto à moderna por causa ou graças à presença franciscana (Boaventura, Scotus, Ockham). De fato, à pergunta: "Qual a perfeição que melhor resume e qualifica o rosto de Deus e do homem, a razão ou a vontade, a necessidade ou a liberdade?" a escola franciscana responde, de modo substancialmente concorde, que o verdadeiro rosto de Deus e do homem é constituído pela liberdade criativa, que deve ser salvaguardada e alimentada, não só como chave hermenêutica do texto sagrado, como fez Joaquim de Fiori, mas garantida também como uma autêntica fenomenologia teológica (Boaventura), como uma teologia de tipo prático (Scotus), como um sistema político adequado (Ockham), como uma ação pastoral de tipo ecumênico (Raimundo Lúlio).
Em suma, trata-se de um novo modo de pensar, radical a ponto de exigir também que se deixe de lado uma certa terminologia, filosoficamente consolidada. De fato, o mundo e as suas criaturas são um dom, não um efeito. A lógica do dom vai bem além da lógica do efeito, sendo este uma figura empobrecida da doação, no sentido que, remetendo à categoria de causa, o efeito faz parte do circuito da doação, mas não exprime a sua substância. De fato, a doação obedece a exigências infinitamente mais complexas e potentes em relação às fontes, bastante modestas e de tipo operativo, do que a causalidade eficiente. Além disso, expressão de um gesto gratuito, o mundo e as criaturas não se submetem ao porquê, a não ser em nível horizontal e imediato e de forma limitada ao conhecimento de seu mecanismo. As coisas não existem porque são racionais. Não é na direção do "porquê" que se descobre o segredo do real, pois as criaturas são "gratuitas", isto é, sem porquê, mas não por isso irracionais. Interpretando as criaturas como a voz de Deus no tempo, o tema do fundamento se mostra totalmente à margem, aliás, talvez mostre seu rosto alterado, privado da luminosidade liberal própria do grande senhor. O teocentrismo ou o cristocentrismo nos incitam a transcender, sem hesitação, o Deus como "fundamento". A distância semântica entre a figura do "fundamento" e a figura da "doação" é imensa, pois uma remete à eficiência causal, e a outra ao altruísmo gratuito. Para o franciscano, Deus não é aquele que "funda", com a conotação de estranhamento e de desencanto. Se a categoria de efeito, com a alusão à causa e, logo, ao fundamento, remete à transcendência de Deus até o estranhamento - Deus causa sui, ou aquilo que Deus é em si, ou que age por si -, a categoria da doação e, portanto, da liberdade criativa no sentido altruísta alude ao Deus fora de si, ao seu fazer-se presente - o Emanuel ou Deus com nós - ao longo dos infinitos caminhos do tempo. Talvez aquilo que seja preciso recordar como compêndio desta mudança de registro também terminológico é a transcendência da área da "objetivação", para a qual o nosso olhar, tendencialmente científicio, é geralmente educado - as criaturas como objetos dos quais se tira proveito -, em favor da área da "doação". É esta a figura que bem exprime a sensibilidade teorética, além de pastoral, da família franciscana, porque leva consigo o germe de uma nova ontologia - ser como dom, não como direito -, graças à qual a apropriação ou a manipulação ficam de lado. É a lógica do Cântico das criaturas.
Fonte: http://www.franciscano.org.br/v3/pages/texto.php?id=428
Fr. Orlando Todisco, OFMConv.
É professor de História da Filosofia Medieval da Universidade de Cassino e no Seraphicum de Roma, Itália Traduzido por Pedro Heise em Revista Cult: Edições > 186 > Na fonte do pensamento franciscano.

domingo, 6 de abril de 2014

O encontro de São Francisco e o lobo


Francisco e o LoboTodos nós conhecemos a famosa passagem de I Fioretti que marca o encontro de São Francisco com o lobo. A partir desse pequeno texto, não quero aqui fazer uma análise exegética. Tal como ele está em português, proponho uma interpretação que ajude a elucidar a dinâmica do encontro. Um olhar que ilumine nossa postura diante do diferente de nós, do outro.


Um paradigma para o diálogo
O texto conta que São Francisco estando em Gubio, ficou sabendo de um lobo que estava tirando a paz do lugarejo, de forma que todos os habitantes tinham medo de sair da cidade. O diferente, nesse caso o lobo, causa medo, assusta e provoca pânico. Sendo assim causa um problema social atrapalhando a vida desse grupo, já que não sabem como lidar com isso.
Francisco toma conhecimento da situação e não começa a agir imediatamente a partir das informações que recebe dos outros. Ele quer conhecer o outro lado da história. Ter clareza da situação. Equilibrar as coisas. Nada melhor que conhecer a história a partir do lobo também.
No primeiro momento, Francisco toma a decisão de sair ao seu encontro, como nos narra o texto: “ quis sair ao encontro do lobo” e não esperar que ele venha a si, mas se propõe a sair de si, do seu local e ir até a situação do “outro”, se dispõe ao encontro. Não com critérios pré-estabelecidos, nem impondo condições, mas está disposto a encontrar o outro, como ele é, no estado e condição em que o outro se encontra.
Agir assim é não se prender a auto-suficiência, ou se colocar como alguém de grau superior, mas, “ pondo toda a sua confiança em Deus”. Colocar-se em atitude de reciprocidade e abertura, confiando em Deus e se lançar. Francisco, “tomou o caminho que levava ao outro lado”. Toma a iniciativa, sai do seu lugar e vai ao encontro.
Por mais diferente que o outro seja, e mesmo que não saibamos as disposições e intenções dele é necessário partir desarmado para o encontro. A iniciativa deve partir de mim de aproximar-me dele como irmão. Não importa como, nem quem seja. Eu opto tornar-me irmão dele, “ chamou a si e disse lhe assim: Vem cá, irmão lobo, ordeno-te da parte de Cristo que não faças mal a ninguém”.
No decorrer da história, Francisco se refere ao lobo sempre como a um irmão. Toma conhecimento das realidades vividas por esse irmão e as compreende, intuindo que as situações forçam esse irmão a agir daquela maneira.
O agressor é tão vítima quanto às vítimas que ele faz. Na verdade, a iniciativa de atacar é só uma estratégia para se defender. Quem tenta se mostrar forte provocando medo e coagindo, no fundo só está mostrando a sua fraqueza.
Para isso se recorre a uma máscara, a um cargo, e a tantas outras estratégias de se mostrar imbatível para não assumir seu medo e fragilidade. Ao partir da violência, o ser só mostra o quanto debilitado está. Às vezes, essa agressividade é somente um pedido de socorro.
Quando Francisco o encontra, o lobo também se deixa encontrar. Aquele está oferecendo a este irmão a chance de reconhecer seu estado.
Após compreender a situação, o próximo passo é propor uma aliança. Do encontro brota o laço de amizade, a cumplicidade, um pacto, uma proposta de paz e fraternidade. O outro acolhido se reconhece como tal se deixa cativar e se aceita como irmão. Assume essa cumplicidade respondendo como um irmão. Acontece um equilíbrio das relações de maneira a estabelecer um relacionamento de fraternidade e amizade.
Um relacionamento em disparidade, quando uma parte se sente sócio-econômica, hierárquica, intelectualmente ou num grau de santidade mais elevado é impossível acontecer um relacionamento fraterno.
Enquanto uma das partes é inferior não está acontecendo a fraternidade. Só posso criar laços com o igual. Entenda-se, não no sentido de relativizar as individualidades. Todos nós somos diferentes. Mas, é impossível estabelecer laços fraternos, se me julgo superior ou inferior aos outros. Isso tanto no caso das pessoas como das religiões. Se me sinto o único portador da verdade absoluta e vejo a fé dos outros como “superstição”, jamais poderemos ser irmãos.
A mania de “ser superior” mata todo diálogo, o crescimento e a alteridade. A tendência do que se julga superior é normatizar tudo de modo que o seu conceito de verdade seja o único válido e seus princípios sejam aplicados a todos. Sendo as regras que regem o jogo são unicamente as suas.
Partindo dessa pequena reflexão temos alguns pontos que seriam importantes para aprofundar. Podemos dizer que seriam os 10 mandamentos do encontro:
1- A disposição de ir ao encontro do outro, ignorando os pressupostos e preconceitos adquiridos. Conhecer o outro a partir dele e não de idéias pré-concebidas, ou do que outros disseram.
2- A coragem de se desarmar para o encontro. Tirar a armadura.
3- Colocar-se no lugar do outro e procurar compreendê-lo, no seu contexto vital, entendendo por que age de determinada maneira. Calçar as sandálias do outro, pisar o mesmo chão.
4- Confiar na Paternidade de Deus e sentir-se irmão.
5- Tomar a iniciativa de ir ao outro como irmão. Não se importando com a reação e a disposição do outro. Vencendo assim suas resistências.
6- Colocar-se na atitude de acalanto, acolher o outro, aceitá-lo incondicionalmente como ele é.
7- Ter a disposição de ouvir o outro. Deixando que o outro seja o outro e não um espelho de minhas projeções.
8- Ter coragem de criar laços libertadores; relações de amizade e fraternidade.
9- Partindo do encontro, fazer uma proposta de um caminho juntos que transformem as relações.
10- Dar ao outro o direito de aceitar ou não as proposições.
O tema do encontro é extremamente sério em nossa época. Os laços, as relações estão quebradas e na Vida Religiosa, também por estar inserida no mundo, recebe vários “contra-valores”, e podemos citar o afrouxamento das relações entre eles. Tudo isso nos leva a questionarmos, fazermos velhas perguntas que achamos banais, já nos fizemos, mas não devemos cansar de fazê-las: Como nos relacionamos com nosso corpo, com nossas emoções, com o irmão, seja ele mais velho ou mais novo, e com Deus? Será que estou atento ao meu leque de relações? De fato, me encontro e me deixo encontrar? Quero me encontrar? Estou atento as minhas relações cotidianas? Quando me relaciono seja em casa, seja na pastoral tenho consciência que comunico o meu ser aos outros?
Nossa contribuição ao Reino de Deus deve ser expressiva principalmente pelo nosso testemunho, ser simplesmente alguém que é sinal do Reino, não por feitos extraordinários, mas com a minha vida. Evangelizo com minha alegria? Eu me coloco como “Dom de Deus” para o irmão e reconheço nele esse dom?
Na verdade, esse tema do encontro, do diálogo, do relacionamento, da fraternidade não tem conclusão. Tem dia marcado pra começar, para acabar jamais, não devemos nos preocupar com o fim do caminho o importante é curtir o trajeto admirar a paisagem, estar em constante atenção diante da vida e do outro. Estar se adaptando, questionando, e como diz Santo Agostinho, estar com o coração inquieto. Cuidando com especial atenção e tudo o mais dependerá disso e como nos propõe Francisco, sempre recomeçando, pouco fizemos.
fonte:  http://www.centrofranciscano.org.br/2012-06-11-20-08-03/franciscanos/83-o-encontro-de-sao-francisco-e-o-lobo-fr-emerson-ap-rodrigues-ofmcap
Frei Emerson Aparecido Rodrigues.