
O agir de Francisco não é filantropia, cálculo,
programa; o agir do santo é Fé, adesão de todo o coração à Pessoa de «O
Senhor». Sendo certo que o seu amor a todos os homens e a todas as criaturas, o
ponderar do seu atuar e do todo da sua vida, o plano muito concreto e
evangélico de vida, o seu ser e o seu trabalho são fé, expressão de fé, um
abandono e confiança total n´Aquele que por nós morreu e ressuscitou. A
primeira preocupação de Francisco não é o homem, a natureza, a Igreja ou ele
mesmo; a primeira preocupação de Francisco é Cristo. Ele é o centro e por Ele
chega a tudo o mais, aos homens seus irmãos, à obra da criação, à Igreja, e a
ele mesmo. A razão do agir de Francisco é Cristo que o leva ao Pai, que lhe
alarga os horizontes, rompe o tempo e o lugar, faz brotar desejos de eternidade
e de a todo o lugar chegar para levar a boa nova, inclusive o desejo de se
encontrar com o Sultão. É o Senhor o eixo à volta do qual tudo em Francisco
gira, é a referência constante para agir, pensar, viver. É Ele o modelo supremo
a imitar. Tanto assim que foi chamado «alter Christus» outro Cristo, tanto mais
ele mesmo quanto mais próximo de Cristo.
O único mestre que orienta Francisco é Cristo:
(cf. LM II, 1) «ninguém me dizia o que devia fazer, mas o mesmo Altíssimo me
revelou que devia viver segundo a forma do Santo Evangelho» (Test.14). As
palavras, os gestos, o número de companheiros, o estilo de vida, bastam para
perceber esta centralidade de Cristo na vida de S. Francisco; e se mais fosse
necessário para provar este estilo de vida que quis para si e para os seus
companheiros, lá estavam as chagas impressas no Monte Alverne a provar isso
mesmo: identificação com Cristo pobre e crucificado.
Importa então saber que Cristo é este que move e
polariza toda a vida e pessoa de Francisco. Quem é Este que enamorou Francisco
e por quem Francisco se enamorou? Que imagem de Jesus se gravou fundo na mente
e no coração do pobrezinho de Assis? Foi o Cristo do Evangelho que ele escutava
religiosamente no Oficio Divino e na celebração da Eucaristia, o mesmo
Evangelho que ele proclamava como diácono, crendo o que lê, ensinando o que crê
e vivendo o que ensina. São os Santos Evangelhos a fonte do conhecimento de
Cristo. Outra fonte é a Igreja na sua própria liturgia, os Santos Mistérios
celebrados na catedral de Assis ou nas pequenas igrejinhas por onde passa e
pernoita, e o grande Cristo em S. Damião. Um Cristo vivo de olhos grandes e abertos,
centro de um mundo ordenado para a Paz, o Cristo da misericórdia, o Cristo da
cruz e do deserto em fortes Quaresmas de intimidade com o Pai, um Cristo
presente nos sacerdotes «que vivem segundo a norma da santa Igreja Romana,
pelas ordens que têm» a quem Francisco quer temer, amar e honrar como a seus
senhores, pois eles aos demais administram o santíssimo Corpo e Sangue, as
santíssimas palavras divinas, os santíssimos mistérios que devem ser honrados e
colocados em lugares preciosos. Um Cristo simples e trabalhador com as suas
próprias mãos, que quer que todos os homens trabalhem, não pela cobiça de
receber o preço do trabalho, mas para dar bom exemplo e para repelir a
ociosidade, inimiga da alma. O Cristo humanado no seio da Virgem Maria, Senhora
pobrezinha, nascido na doçura do presépio de Belém, um Deus próximo ao mesmo
tempo que distante, o irmão e o Altíssimo, o pobre e o Rei do Reis. Nada disto
é teórico, especulativo, puro fruto do pensamento desencarnado da realidade. É
muito concreto, vivido, sentido na fragilidade da própria carne pecadora de
Francisco.
O Cristo que se dá a conhecer a Francisco na
Sagrada Escritura, na liturgia, nas igrejas, no crucifixo de S. Damião, nos
pobres e nos irmãos, comporta em si a altura da sua Majestade Divina, «Altíssimo
e Glorioso», e a sua humanidade crucificada, o Senhor Altíssimo (LD, 2): é o
Cristo servo que se humilha, «cada dia vem até nós, pelas mãos dos sacerdotes,
como quando baixou do seu trono real a tomar carne no seio da Virgem; cada dia
desce do seio do Pai, sobre o altar». O Senhor «rei omnipotente» é o servo
sofredor cantado no Ofício da Paixão e visto claramente no leproso; o Senhor da
Glória é o Cristo da cruz, o «Soberano Deus» é o Cristo mendigo e peregrino que
vive de esmolas com a Sua Mãe e os seus discípulos (1R9, 5.6). Estas duas
realidades de Cristo, Francisco captou-as muitíssimo bem ao ver n´Ele o
Altíssimo e o Baixíssimo.
O próprio modo como S. Francisco se refere a
Jesus é, já por si mesmo, muito revelador da imagem que ficou gravada no seu
espírito. Quase sempre lhe chama «Nosso Senhor Jesus Cristo». É nosso, porque
Francisco sabe que não possui nada, muito menos Aquele que tudo possui e que o
possui a ele. É nosso porque é de todos e para todos os homens; foi dado não ao
anónimo da multidão mas a cada um em particular e a todos totalmente como
filhos de um Pai comum no Filho. É Senhor, muito possivelmente à imagem dos
senhores feudais da época, mas com um senhorio que vai para além desses
senhores que são servos; é o Senhor dos senhores, a quem a reverência não anula
a proximidade e quanto maior a reverência maior essa mesma proximidade. Não é
um Senhor tirano e déspota que deseja a guerra, mas um Senhor revestido de
mansidão e misericórdia, que é a justiça para lá de toda a justiça. O ideal do
trovador cavaleiresco não se despegou da maneira de ser de Francisco, que
continua a ser o servo do Grande Rei, escudeiro do Senhor Altíssimo, e esta
referência de poder dá-lhe profunda liberdade, ao mesmo tempo que grande
confiança na proteção daquele que vela pelos seus amigos. Outro tipo de
obediência é devida a este Rei, outro tipo de rei. Onde a batalha não deixa de
ser sumamente exigente, mas outro tipo de batalha, com outro tipo de armas, a
mesma preocupação pela libertação de cada homem numa vida de santidade
agradável a Deus. Outras armas, que não as da guerra, entre senhores temporais:
as armas da mansidão e do Evangelho, da reconciliação e do anúncio de uma
fraternidade de iguais, todos necessitados desta força salvífíca que reconstrói
o homem. O termo «Jesus» nunca aparece nos escritos de Francisco isolado; ou
está acompanhado do adjetivo «Senhor» ou na longa enunciação de «Nosso Senhor
Jesus Cristo», a universalidade do senhorio de Cristo, verdadeiro homem e
verdadeiro Deus. Não há cedências nem à humanidade que Cristo encarnou, nem à
divindade que Jesus é. Não há uma espiritualidade fácil e simplista de divisão
e de fuga, refugiada numa divindade distante e espiritualizada, alheia ou mesmo
adversa à obra da criação, como não há um materialismo fechado no mundo
infraceleste sem o horizonte da eternidade. Há uma continuação clara, uma
ligação evidente, entre o Jesus, na sua mais doce humanidade, e o Cristo na sua
mais luminosa divindade. Em tudo a proximidade do olhar de fé e do toque das mãos
que cuidam.
Quanto mais Francisco se aproxima de Cristo, mais
tem a perceção clara da sua distância e da altura d’Aquele que por nós, pobres
pecadores, sofreu a paixão de cruz. Desta distância não brota a desconfiança,
desapego, alheamento ou a rejeição de algo que nunca se pode alcançar, mas a
reverência, o reverente temor de obediência filial. Quanto mais percebe a
majestade de Cristo, mais se dá conta da sua pequenez, quanto mais medita no
abaixamento do próprio Senhor, mais se dá conta da Sua altura. Esta aparente
contradição: quanto mais próximo mais distante, quanto mais baixo mais alto.
Também sabe Francisco que quanto mais ele mesmo
se humilha mais se levanta, quanto mais se abaixa mais é levantado, quanto mais
reconhece a sua fragilidade mais é atraído pelo forte, «o mais forte» que é
Cristo. É o mistério do abaixamento e exaltação que S. Paulo descreve no seu
hino.
Em tudo a disponibilidade do encontro, o
deixar-se guiar pelo Espírito que nele habita pelo «espírito de santa oração e
devoção, ao qual todas as demais coisas devem servir». É conduzido pelo
Espírito que Francisco entra e permanece dentro da Igreja, na comunhão como o
«Senhor Papa» a quem promete obediência e reverência em fé verdadeira que é a
fé da Igreja. Ele já tinha entrado, mas agora permanece, e quer que todos os
seus irmãos permaneçam; ele permanece porque lhe foi dado um lugar, foi-lhe
atribuída uma missão. A experiência de Cristo é também a experiência de Igreja
que Francisco faz, do mais sublime e santo, do mais fraco e desprezível, a
graça e o pecado, a graciosidade de Cristo contrastante com a fragilidade da
carne sujeita ao pecado da desobediência, o afastamento do redil. Mas apesar do
que parecia aos olhos da carne desprezível e vil, Francisco não abandona a
Igreja, pois sabe que é nela que Cristo mora, ainda que essa igreja esteja tão
em ruínas e abandonada como a velha e solitária igrejinha de S. Damião. É
guiado pelo Espírito que Francisco entra um dia para orar em S. Damião. Todo
ele reza, reza com o coração, com a mente e com o corpo, ora com o coração de
forma devota, com a mente em fortes súplicas e com o corpo pela maneira como se
prostra aos pés do Crucifixo. Esse grande crucifixo do grande Cristo rodeado
dos santos abrangendo todo o mundo, vivo e com as marcas da paixão, que o
invade «tomado de um modo extraordinário pela graça divina que o torna
completamente diferente do que era momentos antes» (2C 10). Quando entra
Francisco na Igreja para não mais sair? É demorado o seu processo de conversão,
leva o tempo da purificação, o purificar a vontade e a inteligência, o sujeitar
o corpo à disciplina do jejum, o limpar os sentidos para ver bem o que só bem
se vê com a pureza de coração. É a própria imagem de Cristo que leva tempo a
purificar pelo despojar dos fantasmas, das mundanas imagens de glória e vã
glória. Quando entra Francisco na Igreja para não mais sair? Quando descobre
que tem muito para descobrir na verdade do Senhor que o atrai a Si.
E o olhar olhos nos olhos, o face a face, de quem
se deixa olhar e convocar pela voz de uns lábios despregados que falam, chamam,
dirigem-se não a uma multidão anónima mas ao concreto de uma pessoa,
«chamando-o pelo próprio nome: ´Francisco´». Porquê «Francisco» se o seu nome
de Batismo era João? Que lhe reconhece Jesus para o tratar assim, «pequeno
francês»? Como que o «crisma» de quem confirma a sua sensibilidade apurada e
provençal herdada de sua mãe, o reconhecimento de uma radical transformação que
comporta em si mesma a mudança de nome, já antes operado pelo desejo opulento de
seu pai. Seria porque Francisco já não se identificava com o nome do Apóstolo
ou do Batista, uma remota lembrança de um sacramento administrado na ausência
paterna, de tão habituado que estava a ser tratado, chamado, pelo doce nome de
sabor a terras distantes, conhecidas pelos seus comércios de finos panos e
mornas melodias de amor cortês. Designado por um nome novo, confirmado na sua
personalidade sensível, é uma nova criatura que nasce sob o olhar e a voz do
Senhor.
Este ser objeto de uma voz, alvo de uma atenção,
incidência de um olhar cheio de misericórdia, desmonta Francisco, deixa-o ele
mesmo em ruínas, «pasma, treme, quase perde os sentidos e não atina resposta».
As suas antigas seguranças desaparecem, deixa de se fiar de si para se voltar
para Aquele que já não é somente uma imagem pintada num belo retábulo, ou uma
ideia bonita numa letra impressa, mas Um que se desprende e se mexe, fala-lhe,
sai uma Voz. Tem diante de si uma representação de Cristo, vê milagrosamente
uma Pessoa. A iniciativa não é de Francisco, inaudito milagre. A novidade da
ação do Alto, da pintura sai a Pessoa, da letra sai o Espírito, tem diante de
si Cristo que se dirige a Ele. Num repente, um instante único, um momento de
graça que deixa na sua alma a perfeita consciência de ser amado por Deus,
olhado por Cristo, habitado pelo Espírito. Tudo o mais é busca e aprendizagem,
isto é certeza de fé. Francisco passará toda a sua vida a reconstruir. Primeiro
a reconstruir-se a si mesmo, ele que tinha ficado em pedaços com aquele encontro,
passa a sua vida a recolher pedras para a igreja, ocupa-se em identificar-se
cada vez mais com o Senhor. Quer ser como Cristo e por isso o imita na sua
forma de vida simples, pobre, casta e obediente, toma Maria, «Senhora dos
Anjos», por mãe do seu grupo também ele de doze, como os Apóstolos.
Francisco sabe agora que recebeu um encargo: ser
colaborador de Cristo na obra da regeneração e restauração da Igreja, sabe
também que a casa é d´Ele, do Senhor que nela mora. Francisco não é o dono da
casa mas o servo do Grande Rei. Um encargo lhe foi dado, um sagrado e
verdadeiro encargo, uma missão.
Do encontro uma coisa fica fortalecida em
Francisco: a sua vontade. A vontade firme e tenaz de obedecer imediatamente à
ordem recebida: «nada mais queiramos, nada mais desejemos, do que fazer a sua
santa vontade». Não sabe bem por onde passa essa obediência, vai descobrindo
com o tempo, falhando umas vezes, afinando outras, buscando sempre. Está
interiormente fortalecido, e concentra todas as forças para executar essa vontade
que não muda, mas que cada dia se vai descobrindo mais profundamente. É a
espontaneidade de Francisco, a inspiração do momento, é a descoberta de cada
vez dos contornos dessa vontade que não se coaduna com o já estabelecido, mas
reveste-se de coisas sempre novas: «Eis que vou renovar todas as coisas».
Francisco não se refugia na inteligência para perceber o que aconteceu e o que
deve fazer. Não tematiza para se desculpar, não se senta à secretária para
programar, reza e faz. «Nem ele mesmo conseguiu alguma vez exprimir a inefável
transformação sofrida nesse instante». Há neste olhar um «segredo», qualquer
coisa de indizível, secreto, íntimo sem ser intimista, guardado no coração do
coração de Francisco que foi tocado, fortalecido, olhado, chamado e enviado.
Uma intimidade de tal ordem que nem as palavras perturbam ou podem perturbar. A
linguagem é agora ação obediente. E o diálogo sem mais palavras do que as que
saem de Cristo. O Senhor fala e o servo que ouve responde não com frases,
perguntas, objeções, questões ou outras teorias. A resposta de Francisco é
feita de obra e louvor. Pedra sobre pedra, das pedras recolhidas do mendigar
pelas portas, frases da Sagrada escritura recolhidas pela meditação e
memorizadas, tudo posto e sobreposto, erguido até ao céu, para o alto, sem o
cálculo de um engenheiro mas com a beleza de um poeta. A resposta de Francisco
é a sua vida, o seu trabalho, o seu cantar melodioso de apaixonado, como aquele
que sente em si a paixão.
Inaudito milagre. Nunca ouvido nem relatado acontecimento.
Nunca se tinha ouvido tal coisa. Não se contou que alguma vez tal coisa tenha
acontecido. Um milagre, a dúvida das explicações, a incerteza do acontecimento
que escapa radicalmente à lógica natural das coisas. Não teria sido aquela voz,
aquele mover de lábios, fruto da imaginação do penitente e macerado Francisco?
Estava sozinho. Só. Não foi outro nem para outro. Não havia testemunhas,
cronistas ou biógrafos que relatassem e testemunhassem a verdade do
acontecimento. Ninguém para fazer suspeitar que tenha sido outro que não Cristo
a falar, ninguém para lhe deixar a dúvida se seria mesmo para ele ou para outro
que ali estivesse. E não havia testemunhas que o confirmassem no que acabava de
ouvir. Não havia mais ninguém para o chamar ao mundo dos acordados, dos
supostamente lúcidos e despertos. Uma solidão que não deixa marcas para a
dúvida: «Francisco» é ele, não outro, não o seu vizinho, há mais Franciscos,
mas não estão ali. É para ele, com certeza, a certeza da fé, que Alguém fala, é
a ele que Alguém se dirige. Mas como, se não há mais ninguém por perto? Só
Francisco e um vetusto crucifixo numa igreja abandonada e de todos esquecida,
ameaçando ruínas. «Onde houver dúvida que eu leve a fé»; perante tantas e tão
grandes dúvidas, duvidando do seu próprio juízo, Francisco convoca a fé e
acredita que Alguém lhe fala, a ele, só a ele, para ele. Acredita n´Aquele que
o crucifixo pintado evoca e que tantas vezes lhe falou nas letras dos
Evangelhos. Talvez estas dúvidas o voltem a assaltar e Francisco se pergunte da
razão de ser que move a sua vida. Tentado nos momentos de desânimo e
desapontamento, talvez dê ouvido a estas dúvidas, e baixando os braços deseje
uma outra coisa mais lógica, mais realista ou convencional. É nestes momentos
de densas trevas que brilha a ténue luz da fé, uma certeza de confiança
n´Aquele que tem nas suas mãos o governo deste mundo, o sustento de todo o ser
vivo.
Algo se enraíza tão entranhadamente em sua santa
alma, Alguém tomou conta de Francisco e se entranhou nele, Cristo. Ficou
tomado, a partir de dentro, pela paixão do Crucificado, uma paixão pela Paixão,
uma entrega ao Entregue, no segredo daquele que todo inteiro se entregou nas
mãos do Pai.
Fortalecido na vontade de seguir o Senhor para
onde quer que Ele vá, não se sente dispensado de usar todas as potências da
alma. A vontade fortalecida pelo olhar do Cristo que o olha impele-o a também
ele abrir bem os olhos: «vai e repara a minha casa que, como vês...». Olhar e
ver, a atenção ao Cristo que passa, e ao que se passa à sua volta para tudo ver
com os olhos interiormente renovados, os olhos do Crucificado, um olhar de
paixão sobre tudo e todos. Francisco, mais do que um contemplativo, é um atento
«olhador» das realidades que o circundam e que o remetem para o próprio Cristo.
Por isso tudo lhe falava de Cristo e ele a todos falava do «amor que não é
amado». A pedra, a fonte, a ovelha, o pastor, o burro e a vaquinha, tudo,
naquele olhar interiormente purificado, o remete para o Senhor. É um altíssimo
contemplador das coisas criadas, porque para tudo e todos olha com o olhar com
que foi olhado, o da misericórdia. Aquele «segredo» que o envolve num instante
sublime, «inaudito milagre», trespassa-o e entranha-se para não mais o largar.
É a experiência da misericórdia que está para lá de todas as formalidades,
juízos humanos e aparências. Um encontro que lhe fica gravado a fogo no coração
para não mais se apagar, a que Francisco recorre constantemente no
fortalecimento da sua vocação e missão.
Francisco não tem do mundo uma imagem exagerada.
Não é ingénuo pensando que tudo é bom e inofensivo. Ele sabe que há lobos que
necessitam de reconciliação. Não é um otimista desencarnado, nem tão-pouco um
pessimista desesperado, incapaz de reconhecer os sinais da bondade divina que
tudo preparou para os seus filhos. Há o perigo de pintar o mundo a preto e
branco, os bons e os maus, os que são a favor e os que são contra, os amigos e
os inimigos, os cristãos e os muçulmanos. Há também a tentação de pintar o
mundo com as cinzentas cores da indiferença, um crepúsculo sem cor, uma
uniformidade no grisalho medíocre, pesado e triste. O mundo de Francisco é
colorido, como são fortes e luminosas as cores do Cristo que o olha no
crucifixo de S. Damião. Está longe de Francisco a nossa visão da Idade Média como
um tempo de trevas e escuridão obscurantista, uma quase civilização mergulhada
no nevoeiro da sujidade, doença e ignorância. Ali há cor, alegria, vida,
cântico e louvor. Francisco é realista, esperançadamente realista. Com a
sabedoria do Pai das luzes ele sabe ver o negro do pecado, o vermelho da paixão
de Cristo, e todas as cores que o rosto radiante do Senhor põe a descoberto.
Percebe claramente que a situação do homem está longe da perfeição, que o homem
ameaça ruínas: «está quase em ruínas» ouviu ele da boca de Cristo. E por isto,
todos sem exceção, e ele mais do que todos, precisam de conversão, do remédio
da penitência que opera a transformação, abre os olhos e dá sabor à vida:
«Deus, nosso Senhor, quis dar a sua graça a mim, o irmão Francisco, para que
começasse a fazer penitência (...) e o que antes me parecera amargo
converteu-se para mim em doçura de alma e de corpo» (T 1, 3).
É a «casa» que está em ruínas. O lugar do
encontro e do acolhimento dos que chegam como hóspedes, mas a quem importa dar
um lugar à mesa. A casa da humanidade que é o mundo, a ecologia, a casa dos
cristãos que é a Igreja, a casa do Espírito que é o próprio homem. É a casa que
está em ruínas. São as relações do homem com o outro homem, do homem com Deus,
que ameaçam fendas, desmoronar, cair, o caos da desordem, a confusão da
loucura, o emaranhado de interesses. Repara, como quem para para rever, olha e
vê, vê para reparar e refazer o que o abandono desfez. Restitui ao uso para o
qual foi feito o que estava em desuso, devolve à memória o que tinha caído em
esquecimento, volta a colocar no roteiro dos povos um lugar de encontro que
tinha estado abandonado. São as divisões dentro da Igreja e do próprio homem, é
a consequência do pecado, é a guerra que o homem trava dentro de si mesmo.
«Iluminai as trevas do meu coração». Francisco pede um olhar limpo e límpido
que lhe permita reconhecer as belezas de que está envolvido, pede a
clarividência, o discernimento e a ciência, a sabedoria do coração para ver
bem, ver claramente à plena luz do dia, a sua própria realidade, sem defeito de
visão, sem aumento de exagero, sem defeito de olho míope e curto. Ver bem com o
coração para saber onde está a ruína, onde é preciso atuar. Ele sabe que o
homem está doente, sabe qual é a sua doença, e, sabedoria dos santos, sabe qual
é o seu remédio: o amor de Deus.
A perfeita saúde do corpo e da alma dá Francisco
um nome, Paz. Paz e Bem, a reconciliação dos homens irmãos juntos ao mesmo
Senhor que a todos atrai. Faz disto também a sua bandeira: «esta saudação me
revelou o Senhor que disséssemos: O Senhor te dê a paz» (Test. 23). O
reconhecimento das diversidades cromáticas de cada um como uma riqueza para o
mundo. A diversidade de sentires, o complemento de todos que fazem o frade
perfeito, a humanidade capaz de avançar num progresso humano, verdadeiramente
humano porque divino.
Mas o trabalho de Francisco é animado pela
certeza da fé de ver um dia a pobre e abandonada igrejinha de S. Damião, a
Igreja e o Homem, perfeitamente reconstruída, limpa e habitada, cumprindo a
missão para a qual foi construída e sonhada. Francisco, mais do que otimista, é
homem de esperança, quer levar a bom termo o sagrado encargo que recebeu. Sabe
e sente que isso é possível e por isso deita mãos à obra. Não há nada que o
homem não possa fazer com as suas mãos se tiver a força do Alto e a graça de
Deus. O trabalho que lhe é pedido é possível de acabar, talvez seja
demasiadamente pesado para um só homem, mas ele tem tempo e o Senhor dá-lhe
companheiros. Homens de todo o tempo e lugar, povos, línguas e nações se juntam
a Cristo, por Francisco, na construção de uma nova fraternidade.
Tudo partiu e parte de um olhar que a cada
momento nos chama pelo nome e nos envia: «Vai e repara a minha casa».
Fonte: http://www.ofm.org.pt/index.php/espiritualidade/106-cristo-e-francisco
Frei Gonçalo de Figueiredo, ofm