Estamos sempre com os olhos voltados para as celebrações dos oitocentos anos do carisma clariano que se darão em muitos espaços no mês de agosto de 2012. Temos em mente, de modo especial, o Congresso Clariano de Canindé (CE) de 9 a 11 de agosto de 2012.
Debruçamo-nos agora sobre o tema do seguimento de Cristo, que outra não é senão a contemplação e imitação da altíssima pobreza do Filho de Deus. Francisco e Clara se comprazem em associar Maria, a Paupercula, ao mistério da pobreza de Deus.
1. Falar em Francisco e Clara é pensar em pessoas
profundamente tocadas pela figura de Cristo pobre, crucificado,
encarnação da bondade extrema de Deus. Falar em franciscanos e
clarissas é referir-se a pessoas que foram se deixando formar, modelar e
plasmar pela pobreza do Cristo. A melhor palavra não é formar, mas
deixar-se seduzir por esta pobreza que tem um nome: Jesus Cristo.
Estamos conscientes que a pobreza não significa apenas uma sobriedade
nas vestes, na comida, no uso das coisas materiais. Tem ela a ver com
desprendimento, despojamento, não posse. Não somente de bens materiais
mais do velho homem que tenta sobreviver em nós. Não se trata apenas de
um seguimento externo, mas de uma identificação de vida a vida entre o
discípulo e o Cristo pobre. Na verdade, não podemos nos ater ao Cristo
histórico, encerrado nas páginas dos evangelhos, mas a esse
Ressuscitado que nos convida a entrar em comunhão nupcial com ele.
Seguir Cristo à maneira de Clara será efetivamente estabelecer liames
vitais e “virginais”, totais com esse Esposo que aparece no espelho. O
incontido amor por Cristo faz com que Clara se torne sedenta de amor do
Esposo feito pobreza.
2. Clara, como Francisco, começa e termina a Regra
com uma declaração programática: “A forma e a vida da Ordem das Irmãs
pobres, que o bem-aventurado Francisco instituiu, é esta: Observar o
santo evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo” (Regra I,1).
“Observemos para sempre a santa pobreza e humildade de Nosso Senhor
Jesus Cristo e de sua Santíssima Mãe e o santo Evangelho que prometemos
firmemente” ( Regra XII). Estas palavras abrem e fecham o
texto da Forma de Vida escrita por Clara. Não constituem elas uma
simples moldura, mas o fundamento que a tudo dá sustento.
3. “Por isso, de joelhos dobrados e prostrada,
recomendo a todas as minhas irmãs atuais e futuras à Santa Igreja
romana, ao Sumo Pontífice e principalmente ao senhor cardeal que for
encarregado da Ordem dos Frades Menores e de nós, para que, por amor
daquele Deus que pobre foi posto no presépio, viveu pobre no mundo e
ficou nu no patíbulo faça com que sempre seu pequeno rebanho que o
Senhor gerou em sua Igreja pela palavra e o exemplo de nosso
bem-aventurado Pai São Francisco para seguir a pobreza e a humildade de
seu Filho dileto e da Virgem, sua gloriosa Mãe, observe a santa pobreza
que prometemos…” (Testamento 44ss). Clara quer levar suas
irmãs ao essencial. Se o Filho de Deus escolheu o caminho da pobreza e
do despojamento, então este é o caminho real que nos leva à Terra da
Promissão.
4. Misturam-se nos escritos de Clara a imagem do
Cristo rei (2CtIn) e a imagem do Cristo caminho. Clara emprega as
duas imagens em suas cartas a Inês de Praga. Ela distingue os aspectos
do mistério total de Cristo que habita na alma. A imagem do Cristo rei,
reinando agora gloriosamente no céu, é a imagem do Esposo e objeto
primário de seu desejo. Porém, a imagem do Cristo visto no contexto do
mistério da Encarnação, o Cristo na sua humanidade, pobre e humilde, é
o caminho para a desejada união. Os desponsórios místicos têm seu fundamento no aniquilamento amoroso do amado.
5. Com toda evidência, Clara exorta implicitamente a
Inês a seguir aquilo que a literatura espiritual da Idade Média chama
de caminho real. Para São Bernardo, a “via real” é aquela que se faz
sem desvios, sem delongas desnecessárias. A pobreza é caminho real
para a união esponsal porque elimina as causas de dissipação que nascem
do apego aos bens terrenos. O caminho da pobreza, o caminho que o Senhor
manifestou em sua humanidade: o caminho da pobreza e da humildade que
levam à posse do Reino dos céus: “Ó bem-aventurada pobreza, que àqueles
que a amam e abraçam concede as riquezas eternas! Ó santa pobreza, aos
que a tem e desejam, Deus prometeu o reino dos céus e são concedidas sem
dúvida alguma a glória eterna e vida feliz. Ó piedosa pobreza, que o
Senhor Jesus Cristo se dignou abraçar acima de tudo, ele que regia e
rege o céu e a terra, ele que disse e tudo foi feito (1CtIn 15-17). “O
reino de Deus só é prometido e dado pelo Senhor aos pobres” (1CtIn 25).
Este é o caminho duro e a porta estreita. Por meio de uma tal porta
realiza-se a união mística com Cristo, o início do reino celeste já
nesta terra. O caminho que Cristo nos mostra durante a sua vida terrena
é o mesmo caminho que Francisco ensinou a Clara. Com sua palavra e seu
exemplo, Clara orienta Inês e as Irmãs a percorrerem esta via regia.
Durante toda a sua vida, Clara lutou para que ninguém a retirasse de tal
caminho. No Testamento, ela escreve: “O Filho de Deus se fez para nós o
caminho, que nosso bem-aventurado pai Francisco, que o amou e seguiu de
verdade, nos mostrou e ensinou por palavra e pelo exemplo” (Test,
5).
6. Podemos dizer que Clara, na qualidade de guia
espiritual, indicou e continua indicando para nós um só caminho que leva
à união com Cristo, a via regia, o caminho percorrido
primeiro por Cristo e Maria e depois por Francisco, seguimento do
Cristo esposo, pobre e humilde. Nas palavras que ela empresta da Regra
Bulada de São Francisco, Clara reforça que este é o caminho real:
“Como peregrinas e forasteiras neste mundo… esta é a sublimidade da
altíssima pobreza que vos fez, minhas caríssimas irmãs, herdeiras e
rainhas do reino dos céus… Esta seja a vossa porção que nos leva à terra
dos vivos” (RCl 8).
7. Clara interpreta o seguimento essencialmente em
termos de amor sensível pela humanidade de Cristo - humanidade esta
que é o caminho que nos leva ao Pai - e imitação das virtudes que o
próprio Cristo viveu, principalmente a pobreza e a humildade. A prática
destas virtudes místicas não se limita a uma imitação exterior de
Cristo, mas um modo concreto de entregar-se totalmente a Cristo e
abraçar misticamente sua humanidade e desta forma aprofundar a união
esponsal com ele. Podemos avaliar a sensibilidade do amor de Clara para
com Cristo no uso frequente de palavras que aludem ao seguimento em
termos de abraço. Trata-se do abraço místico ou da união
mística com a humanidade de Cristo mediante a prática das virtudes
por ele santificadas:
“Ó bem-aventurada pobreza, que àqueles que a amam e abraçam concede
as riquezas eternas!”(1CtIn 15). “Abrace o Cristo pobre como uma virgem
pobre. Veja como por você ele se fez desprezível e siga-o sendo
desprezível por ele nesse mundo” (2CtIn 18-19). “Vejo que são a
humildade, a força da fé e os braços da pobreza que a levaram a abraçar
o tesouro incomparável e escondido no campo do mundo e dos corações
humanos, com o qual se compra aquele por quem tudo foi feito”(3CtIn 7).
8. O seguimento de Cristo para Clara comporta o
abraço místico da humanidade de Cristo; em outras palavras, o caminho da
imitação exterior da humanidade de Cristo e a conformidade (o
entregar-se) interior da vontade à vontade de Deus levam ao amor puro,
ao coração dos esponsais místicos entre a alma humana e o Verbo. “É
essa a perfeição que vai uni-la ao próprio Rei no tálamo celeste, onde
se assenta glorioso sobre um trono estrelado. Desprezando o fausto de um
reino da terra, dando pouco valor à proposta de um casamento imperial,
você se fez seguidora da santíssima pobreza em espírito de grande
humildade e do mais ardente amor, juntando-se aos passos daquele com
quem mereceu unir-se em matrimônio” (2CtIn 5-7).
9. Maria Victoria Triviño, clarissa espanhola, numa
belíssima obra sobre os temas espirituais de Clara, conclui assim o
capítulo a respeito da espiritualidade nupcial de Santa Clara, que outra
coisa não é senão esse enamoramento da alma virginal pelo Esposo. Os
temas do seguimento e da virgindade se entrelaçam: “Clara sente-se
fortemente atraída – carisma de virgindade – e corre no encalço de
Jesus Cristo empenhando todo o seu afeto, todos os sentidos e
faculdades. Sua ascética consiste em “correr” impulsionada “pela
violência do desejo”. Sua mística é o abraço esponsal. Sua
bem-aventurança é a doçura escondida.
Não quer que seu pensamento se afaste da lembrança do Senhor, e o
adivinha presente sob as mais diferentes aparências. Ama de todo o
coração. Comove-se e chora quando fala da paixão (Proc XI,2), fica
fora de si quando o contempla sozinha (ProcIII,25), treme quando recebe o
Corpo do Senhor… Exulta ao escutar o Vidi aquam… Uma tal integração da afetividade faz dela uma mulher ardorosa e apaixonada.
Pode-se dizer que Clara nada fez sem entusiasmo. Basta recordar a
fuga noturna, o desejo do martírio, o episódio dos sarracenos, o assédio
de Vital de Anversa. No grande e no pequeno, no ordinário e no
extraordinário sempre em tudo colocou um grande amor.
Mente, faculdades, coração, instinto… Tudo está polarizado num amor
exclusivo. Assim todos os níveis do ser unificam no amor a Jesus
Cristo. A vivência da maternidade espiritual faz com que ela se realize
plenamente como mulher que se sente mãe, para Jesus Cristo e para com
as irmãs.
Fruto desta unidade, em nível psicológico, é o equilíbrio, a
harmonia. O que os autores modernos chamam de psicologia dinâmica. O
divino se enraíza no psicológico. No plano espiritual, o fruto é um
estado de bem-aventurança, a coroa da santidade: “.. estava sempre
alegre no Senhor e jamais era vista perturbada, e sua vida era toda
angélica” (Proc III,6).
O tema nupcial, tão explícito na primeira carta, foi avançando com o
clamor de Raquel (“Lembre-se da sua decisão como um segunda Raquel; não
perca de vista seu ponto de partida…” (2CtIn 11) e com a adesão à Mãe
dulcíssima que a ama, acompanha e cuida, reaparece no começo do
espelho. Contemplando os mistérios no espelho Clara se aprofunda no
mistério do Amado. No final, a esposa repousa e descansa no beijo e no
abraço da esposa do Cântico dos Cânticos (4CtIn 30-32).
Tudo o que disse Clara foi revestido de delicadeza e de beleza. Para
viver o que foi dito necessário foi muita fortaleza. Estamos numa
sociedade em que a virgindade é flor rara. Mal se fala dela. Muitos são
os que acreditam que ela não pode ser guardada. Sempre houve quedas e
abandonos que fizeram com que ela fosse menos digna de crédito. Quem
não a acolheu não tem ouvidos para entendê-la, mesmo querendo discutir a
seu respeito. A virgindade é um carisma que sempre ornou, orna e ornará
a Igreja cristã.
É um carisma, um presente do Espírito do qual se deve dar testemunho
diante do mundo que não tem dele alta cotação. A prudência humana não
deve nos impedir de dar testemunho de sua beleza” (La vía de la beleza. Temas espirituales de Clara de Asís, BAC 46, Estudios y ensayos, p. 181-183).
10. Frei Herbert Schneider, OFM, refletindo sobre o tema Claire d’Assise, école de vie spirituelle,
in Quaderni dell’Ufficio pro monialibus, n. 46, dicembre 2010, fala
da espiritualidade como transformação: “Santa Clara exorta Santa Inês de
Praga em sua segunda carta a realizar o tríplice passo da vida
espiritual (2CtIn 20): olhar (intuere), considerar (considerare),
contemplar (contemplare). É, por assim dizer, um tríplice passo do
exterior para o interior para as profundezas lá onde ela se sente
possuída pelo desejo amoroso (desiderare) de imitar (imitare). É o
caminho da transformação em Cristo: trata-se de, pelo olhar,
experimentar com ele o sofrimento, na consideração de morrer com ele e a
partir desse momento acontece a transformação numa vida nova com
Cristo. É a mudança em Cristo. Na espiritualidade da
transformação/mudança, a forma de Cristo passa a manifestar-se no homem.
O que é realidade no Cristo torna-se também pela transformação e a
título de dom realidade no homem”.
11. Basta. O seguimento de Cristo na vida
contemplativa significa transformar-se me Cristo. O amado de tanto se
espelhar no Amante ganha seus traços e vive em comunhão com ele.
Autor: Frei Almir Ribeiro Guimarãesfonte:http://www.franciscanos.org.br/n/?p=19652