A MÍSTICA DA ENCARNAÇÃO
Sem encarnação não há comunicação
Para celebrar o Natal é preciso recriar uma atmosfera Sagrada. Celebrar o
Natal implica mais do que orar e refletir. Importa abrir o coração e se
alegrar. Podemos pensar diante de uma Criança? Podemos fazer doutrinas
diante de uma vida que se abre como uma flor? Não pode haver
indiferença, quando, de repente, a vida se ilumina! Para celebrar é
preciso exorcizar o medo que inibe. Deus não vem para julgar ou
condenar. Ele nasce criancinha, seu choro é de criança e não afugenta
ninguém.
Ele não veio armado para punir. Ele está aí, na fragilidade de um
Menino, para ficar bem junto à nós e nos libertar. Celebrar a chegada de
um amigo! Cabe a cada um e a cada uma criar a festividade da Festa,
fazer silêncio no coração, preparar a alma, reconciliar todas as coisas.
Só assim a festa se deixa saborear. Deus se fez Humano e veio morar na
nossa Casa! Este é o motivo que temos para celebrar!
O Natal revela o projeto que Deus se propusera a si mesmo: Deus quis se
comunicar de forma completa a um outro ser diferente d’Ele!
Dignou-se a dar-se de presente a alguém! Deus não quis ficar unicamente
Deus. O Criador fez-se também criatura. Não quis só comunicar somente
seu Bem, sua Verdade, sua Beleza... Ele nos presenteou também com isso.
Por isso, sempre quando amamos o Bem, pensamos a Verdade e apreciamos a
Beleza... estamos apreciando, pensando e amando Deus.
Deus quis dar-se! Para isso é preciso existir alguém diferente que o
possa receber. Esse alguém somos nós... e entre nós o olhar divino
repousou sobre Jesus de Nazaré. Nele Deus será absoluta Comunicação,
Encarnação e Presença! Ser humano só tem sentido se for para ser
receptáculo do Divino. É como um copo, só tem sentido se receber um
líquido precioso, pois foi feito para isso. Em Jesus de Nazaré, o humano
encontra sentido e realização plena da sua existência, pensada, querida
e criada para hospedar Deus. Quando nos doamos a alguém estamos
comunicando a Encarnação Divina.
Deus comunicou-se a uma Mulher. Bateu mansamente em sua porta. Pediu
morada. A Mulher disse que Sim. Porque havia lugar para ele em sua
hospedagem. O Amor se fez Carne e veio morar aqui. E assim a vida divina
começou a crescer no mundo. Deus nasceu! "Senhor, mostra-nos teu
rosto!" E ele mostrou-se assim como é: permaneceu o Deus que sempre era,
assumindo o Humano que nem sempre era. Deus não ficou indecifrável. Não
ficou na sua onipotência eterna, ele veio morar na fragilidade da
criatura.
Não atraiu para dentro de si a humanidade, mas ele se deixou atrair para
dentro da humanidade. "Passei por Belém de Judá e ouvi um sussurro
terno. Era a voz de Maria embalando o filhinho: Sol, meu filho, como vou
cobrir-te de panos? Como vou ver-te nas minhas mãos, tu que conténs
todas as coisas?"
E José, perplexo, exclamava: “Como pode? Como pode ter forma de criança
Aquele que deu forma a todos os seres? Como pode fazer-se pequeno na
terra, Aquele que é grande no céu? Como pode este estábulo conter Aquele
que contém todo o universo? Como pode seus bracinhos estarem envoltos
em panos, se seu braço governa a terra e o céu? Como pode?”
Deus se abaixa, se faz mundo, se torna humano. Pequeno é o nosso Deus.
Infinito é seu Amor! Aproximou-se de nós, não temeu a matéria, não
receou acolher a condição humana, por vezes trágica e absurda. Quem
poderia imaginar que um Deus se fizesse assim?
A ninguém é desconhecida a condição humana. Apesar de sua bondade
fundamental, o humano não deixa de ter seus fracassos. Ele pode ser um
lobo para o outro, uma máquina autodestruidora para consigo mesmo.
Texto completo da primeira pregação de Advento do Frei Raniero Cantalamessa,
OFM Cap.
Roma,
Fonte: Zenit.org
Na manhã desta sexta-feira o pregador da casa
pontifícia, Frei Raniero Cantalamessa, OFM, Cap, dirigiu a primeira pregação de
Advento. Publicamos a seguir o texto na íntegra:
Frei. Raniero Cantalamessa, OFM Cap.
Primeira pregação de Advento
FRANCISCO DE ASSIS E A REFORMA DA IGREJA POR MEIO
DA SANTIDADE
O propósito destas três meditações do Advento é
preparar-nos para o Natal na companhia de Francisco de Assis. Dele, nesta
primeira meditação, gostaria de destacar a natureza do seu retorno ao
Evangelho. O teólogo Yves Congar, em seu estudo sobre "Verdadeira e falsa
reforma na Igreja” vê em Francisco o exemplo mais claro de reforma da Igreja
pelo caminho da santidade[1]. Gostaríamos de procurar compreender em que
consistiu a sua reforma pelo caminho da santidade e o que o seu exemplo implica
para cada época da Igreja, inclusive a nossa.
1. A conversão de Francisco
Para entender um pouco da aventura de Francisco é
preciso partir da sua conversão. Desse evento existem, nas fontes, diferentes
descrições com notáveis diferenças entre si. Felizmente temos uma fonte
absolutamente confiável que nos dispensa de escolher entre as várias versões.
Temos o mesmo testemunho de Francisco no seu Testamento, a sua ipsissima vox, como
se diz das palavras certamente ditas por Cristo no Evangelho. Diz:
«O
Senhor concedeu a mim, irmão Francisco, que começasse a fazer penitência assim:
quando eu estava nos pecados parecia-me muito amargo ver os leprosos: e o
próprio Senhor conduziu-me entre eles e fui misericordioso para com eles. E ao
afastar-me deles, o que me parecia amargo foi-me trocado por doçura de alma e
corpo. E, depois, demorei só um pouco e saí do mundo” » (FF 110).
É sobre esse texto que justamente se baseiam os
historiadores, mas com um limite intransponível para eles. Os historiadores,
mesmo os mais bem intencionados e mais respeitosos com as peculiaridades da
vida de Francisco, como era, entre os italianos Raoul Manselli, não conseguem
entender o porquê último da sua mudança radical. Detêm-se – e com razão, por
causa do seu método - na porta, falando de um "segredo de Francisco",
destinado a permanecer assim para sempre.
O que se consegue constatar historicamente é a
decisão de Francisco de mudar o seu status social. De pertença à classe
superior, que contava na cidade por nobreza e riqueza, ele escolheu colocar-se
no extremo oposto, compartilhando a vida dos últimos, daqueles que não eram
nada, os assim chamados “menores”, atingidos por todos os tipos de pobreza.
Os historiadores justamente insistem no fato de
que Francisco não escolheu a pobreza e muito menos o pauperismo; escolheu os
pobres! A mudança é motivada mais pelo mandamento; “Ama o teu próximo como a ti
mesmo”, que pelo conselho: “Se queres ser perfeito, vai’, vende tudo o que tens
e dá aos pobres, depois vem e segue-me”. Era a compaixão pela pobre gente, mais
do que a busca da própria perfeição que o movia, a caridade mais do que a
pobreza.
Tudo isso é verdade , mas ainda assim não toca o
fundo do problema. É o efeito da mudança, não a sua causa. A escolha verdadeira
é muito mais radical: não se tratou de escolher entre riqueza e pobreza, nem
entre ricos e pobres, entre a pertença a uma classe mais do que a outra, mas de
escolher entre si mesmo e Deus, entre salvar a própria vida ou perdê-la pelo
Evangelho.
Houve alguns (por exemplo, em tempos mais
recentes, Simone Weil ), que chegaram a Cristo por meio do amor aos pobres e
houve outros que chegaram aos pobres partindo do amor por Cristo. Francisco
pertence a este segundo grupo. A razão profunda da sua conversão não é de
natureza social, mas evangélica. Jesus tinha formulado a lei uma vez por todas
com uma das frases mais solenes e mais certamente autênticas do Evangelho:
"Se
alguém quer vir após mim , negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois
quem quiser salvar a sua vida a perderá , mas quem perder a sua vida por minha
causa a encontrará " (Mt 16 , 24-25) .
Francisco, beijando o leproso, negou-se a si
mesmo naquilo que era mais “amargo” e repugnante à sua natureza. Fez violência
a si mesmo. O detalhe não escapou ao seu primeiro biógrafo que descreve assim o
episódio:
"Um dia um leproso parou diante dele: fez violência a si mesmo,
aproximou-se dele e o beijou. A partir daquele momento decidiu desprezar-se sempre mais,
até que pela misericórdia do Redentor obteve plena vitória”[2].
Francisco não foi voluntariamente aos leprosos,
motivado por humana e religiosa compaixão. “O Senhor, escreve, levou-me no meio
deles”. É nesse pequeno detalhe que os historiadores não sabem – nem poderiam –
dar um juízo, e de fato é a origem de tudo. Jesus tinha preparado o seu coração
para que a sua liberdade, no momento certo, respondesse à graça. O sonho de
Spoleto tinha servido para isso e a pergunta de se preferia servir o servo ou o
patrão, a doença, a prisão em Perugia e aquele mal-estar estranho que não lhe
permitia mais encontrar alegria nas diversões e lhe fazia procurar lugares
solitários.
Embora sem pensar que se tratasse de Jesus em
pessoa sob as aparências de um leproso (como mais tarde tentou-se fazer,
pensando no caso análogo da vida de São Martinho de Tours[3]), naquele momento
o leproso para Francisco representava em todos os aspectos Jesus. Não tinha ele
dito: “O fizestes comigo”? Naquele momento escolheu entre si mesmo e Jesus. A
conversão de Francisco é da mesma natureza daquela de Paulo. Para Paulo, em um
certo momento, aquilo que antes tinha sido “lucro” mudou e tornou-se
"perda", "por amor de Cristo" (Fil 3, 5ss); para Francisco
aquilo que tinha sido amargo converteu-se em doçura, também aqui “por Cristo”.
Depois deste momento, ambos podem dizer: “Já não sou eu que vivo, mas Cristo
vive em mim".
Tudo isso nos obriga a corrigir uma certa imagem
de Francisco popularizada pela literatura posterior e aceita por Dante na
Divina Comedia. A famosa metáfora das núpcias de Francisco com a Senhora
Pobreza que deixou marcas profundas na arte e na poesia franciscanas pode ser
enganosa. Não apaixona-se por uma virtude, nem mesmo pela pobreza; apaixona-se
por uma pessoa. As núpcias de Francisco foram, como aquelas de outros místicos,
um casamento com Cristo.
Aos companheiros que lhe perguntavam se ele
pretendia ter uma mulher, vendo-o uma noite estranhamente ausente e brilhante,
o jovem Francisco respondeu : "Terei a esposa mais nobre e bela que vocês
jamais viram”. Esta resposta é muitas vezes mal interpretada. Do contexto
aparece claro que a esposa não é a pobreza, mas o tesouro escondido e a pérola
preciosa, ou seja, Cristo. “Esposa, comenta Celano que narra o episódio, é a
verdadeira religião que ele abraçou; e o reino dos céus é o tesouro escondido
que ele procurou”[4].
Francisco não se casou com a pobreza, nem sequer
com os pobres; casou-se com Cristo e foi por amor a ele que se casou, por assim
dizer “em segundas núpcias” com a Senhora pobreza. Assim será sempre na
santidade cristã. Na base do amor pela pobreza e pelos pobres, ou está o amor
por Cristo, ou os pobres serão, de um modo ou de outro, instrumentalizados e a
pobreza se tornará facilmente um fato polêmico contra a Igreja, ou uma
ostentação de maior perfeição com relação a outros na Igreja, como aconteceu,
infelizmente, também em alguns dos seguidores do Poverello. Em ambos os casos, faz-se da
pobreza a pior forma de riqueza, aquela da própria justiça.
2. Francisco e a reforma da Igreja
Como foi que aconteceu que a partir de um evento
tão íntimo e pessoal, como foi a conversão do jovem Francisco, tenha começado
um movimento que mudou ao mesmo tempo o rosto da Igreja e teve tanta influência
na história, até os nossos dias?
É preciso dar uma olhada na situação da época. Na
época de Francisco a reforma da Igreja era uma necessidade sentida mais ou
menos conscientemente por todos. O corpo da Igreja vivia tensões e lacerações
profundas. De um lado estava a Igreja institucional - papa, bispos, alto clero
– desgastados pelos seus perenes conflitos e pelas suas alianças muito próximas
com o império. Uma Igreja sentida muito distante, envolvida em assuntos muito
acima dos interesses do povo. Em seguida, estavam as grandes ordens religiosas,
muitas vezes prósperas pela cultura e espiritualidade após as várias reformas
do século XI, entre as quais aquela Cisterciense, mas fatalmente identificadas
com os grandes proprietários de terras, senhores feudais da época, vizinhos e
ao mesmo tempo remotos também eles, por problemas e padrões de vida, do povo
comum.
No lado oposto havia uma sociedade que começava a
emigrar dos campos para as cidades em busca de maior liberdade das várias
servidões. Esta parte da sociedade identificava a Igreja com as classes
dominantes das quais se sentia a necessidade de libertar-se. Assim, se
alinhavam de boa vontade com aqueles que a contradiziam e a combatiam: hereges,
grupos radicais e pauperísticos, enquanto simpatizava com o baixo clero, muitas
vezes não com a altura espiritual dos prelados, porém mais perto das pessoas.
Havia, portanto, fortes tensões que cada um
procurava explorar em proveito próprio. A Hierarquia procurava responder a
estas tensões melhorando a própria organização e reprimindo os abusos, tanto
internamente (luta contra a simonia e concubinato dos padres) quanto
externamente na sociedade. Os grupos hostis procuravam, pelo contrário,
explodir as tensões, radicalizando o contraste com a Hierarquia dando origem a
movimentos mais ou menos cismáticos. Todos brandiam contra a Igreja o ideal da
pobreza e simplicidade evangélica fazendo disso uma arma polêmica, mais do que
um ideal espiritual a ser vivido com humildade, chegando a questionar também o
ministério da Igreja, o sacerdócio e o papado.
Estamos acostumados a ver Francisco como o homem
providencial que capta essas demandas populares de renovação, as purifica de
toda carga polêmica e as traz de volta ou as atua na Igreja em profunda
comunhão e submissão a essa. Francisco, portanto, como uma espécie de mediador
entre os hereges rebeldes e a Igreja institucional. Em um conhecido manual de
história da Igreja é apresentada dessa forma a sua missão:
"Já
que a riqueza e o poder da Igreja apareciam muitas vezes como uma fonte de
graves males e os hereges do tempo a utilizavam como argumento para as
principais acusações contra ela, em algumas almas piedosas surgiu o nobre
desejo de restaurar a vida pobre de Jesus e da Igreja primitiva, para poder
assim mais eficazmente, influenciar no povo com a palavra e o exemplo”[5].
Entre estas almas coloca-se naturalmente em
primeiro lugar, juntamente com São Domingos, Francisco de Assis. O historiador
protestante Paul Sabatier, embora tão benemérito dos estudos franciscanos,
tornou quase canônica entre os historiadores, e não só entre aqueles leigos e
protestantes, a tese segundo a qual o cardeal Ugolino (o futuro Papa Gregório
IX) teria tido a intenção de captar Francisco para a Cúria, domesticando a
carga crítica e revolucionária do seu movimento. Na prática é a tentativa de
fazer de Francisco, um precursor de Lutero, ou seja, um reformador pela via de
críticas, mais do que da santidade.
Não sei se esta intenção possa ser atribuída a
algum dos grandes protetores e amigos de Francisco. Parece difícil atribuí-la
ao card. Ugolino e menos ainda a Inocêncio III, conhecido pela ação reformadora
e o apoio dado às várias formas novas de vida espiritual surgidas em seu tempo,
incluído os Frades Menores, os dominicanos, os Humilhados Milaneses. Uma coisa,
porém, é absolutamente certa: aquela intenção nunca passou pela mente de
Francisco. Ele nunca pensou ser chamado para reformar a Igreja.
É preciso ter cuidado para não tirar conclusões
erradas das famosas palavras do Crucifixo de São Damião “Vai’, Francisco e
repara a minha Igreja que, como vês, está em ruínas”. As fontes mesmas nos
asseguram que ele compreendeu aquelas palavras no sentido bastante modesto de
ter que reparar materialmente a igrejinha de São Damião. Foram os discípulos e
os biógrafos que interpretaram – e, é preciso dizer, não sem razão - aquelas
palavras como se referindo à Igreja instituição e não só à Igreja edifício. Ele
permaneceu sempre na sua interpretação literal e de fato continuou a reparar
outras igrejinhas nos arredores de Assis que estavam em ruínas.
Também o sonho em que Inocêncio III teria visto o
Poverello sustentar com as suas costas a Igreja de Latrão desmoronando não diz
nada de mais. Supondo que o fato seja histórico (um fato análogo também é
narrado sobre São Domingos), o sonho foi do papa, não de Francisco! Ele nunca
foi visto como o vemos hoje no afresco de Giotto. Isto significa ser reformador
pelo caminho da santidade: sê-lo, sem sabê-lo!
3. Francisco e o retorno ao Evangelho
Se não quis ser um reformador, o que foi que quis
ser e fazer Francisco? Também aqui temos a sorte de ter o testemunho direto do
Santo no seu Testamento:
"E
depois que o Senhor me deu irmãos , ninguém me mostrou o que eu deveria fazer;
mas o mesmo Altíssimo me revelou que eu deveria viver segundo a forma do santo
Evangelho. E eu com poucas palavras e simplesmente o fiz escrever, e o senhor
Papa mo confirmou”.
Fala do momento no qual, durante uma Missa,
escutou a passagem do evangelho onde Jesus envia os seus discípulos dizendo:
"Enviou-os a pregar o reino de Deus e a curar os enfermos. E disse-lhes:
«Nada leveis para o caminho, nem bastão, nem alforje, nem pão, nem dinheiro;
tampouco tenhais duas túnicas” (Lc 9, 2-3)[6]. Foi uma revelação impressionante
daquelas que orientam toda uma vida. Daquele dia em diante foi clara a sua
missão: um retorno simples e radical ao evangelho real, aquele vivido e pregado
por Jesus. Restaurar no mundo a forma e o estilo de vida de Jesus e dos
apóstolos descrito nos evangelhos. Escrevendo a Regra para os seus frades
começará assim:
"A
regra e a vida dos Frades Menores é esta: observar o santo Evangelho de nosso
Senhor Jesus Cristo".
Francisco não teorizou esta sua descoberta,
tornando-a o programa para a reforma da Igreja. Ele realizou em si a reforma e
assim indicou tacitamente à Igreja o único caminho para sair da crise:
reaproximar-se do evangelho, reaproximar-se dos homens e especialmente dos
humildes e dos pobres.
Este retorno ao Evangelho reflete-se em primeiro
lugar na pregação de Francisco. É surpreendente, mas todos notaram: o Poverello
fala quase sempre de "fazer penitência". A partir de então, diz o
Celano, com grande fervor e exultação, ele começou a pregar a penitência,
edificando todos com a simplicidade de suas palavras e a generosidade de seu
coração. Onde quer que fosse, Francisco dizia, recomendava, suplicava que
fizessem penitência[7].
O que é que Francisco compreendia com esta
palavra que ele trazia tanto no coração? Neste sentido caímos (pelo menos eu
caí por muito tempo) em erro. Reduzimos a mensagem de Francisco a uma simples
exortação moral, a um bater-se no peito, angustiar-se e mortificar-se para
expiar os pecados, enquanto que tem toda a vastidão e o ar do evangelho de
Cristo. Francisco não exortava a fazer “penitências”, mas fazer “penitência”
(no singular”!) que, veremos, é totalmente outra coisa.
O Poverello, exceto nos poucos casos que
conhecemos, escrevia em latim. E o que encontramos no texto latino, do
Testamento, quando escreve: “O Senhor deu a mim, frade Francisco, começar a
fazer penitência assim”? Encontramos a expressão “poenitentiam agere”. Sabe-se que ele
amava expressar-se com as mesmas palavras de Jesus. E esta palavra – fazer
penitência – é a palavra com a qual Jesus começou a pregar e que repetia em
cada cidade e aldeia onde ia:
“Depois
que João foi preso, veio Jesus para a Galiléia proclamando o Evangelho de Deus:
cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no
Evangelho” (Mc 1, 15).
A palavra que hoje se traduz com “convertei-vos”
ou “arrependei-vos”, no texto da Vulgata usado pelo Poverello, soava “poenitemini” e em
Atos 2, 37 ainda mais literalmente “poenitentiam
agite”, fazei penitência. Francisco nada fez além de relançar o
grande apelo à conversão com o qual se abre a pregação de Jesus no Evangelho e
aquela dos apóstolos no dia de Pentecostes. O que ele quis dizer com a palavra
"conversão" não precisa explicá-lo: sua vida, ele mostrou.
Francisco fez no seu tempo aquilo que no tempo do
Concílio Vaticano II tentou-se fazer com o lema: “quebrar as muralhas”: quebrar
o isolamento da Igreja, trazê-la de novo para o contato com o povo. Um dos
fatores de escuridão do evangelho era a transformação da autoridade
compreendida como serviço, em autoridade compreendida como poder que tinha produzido
infinitos conflitos dentro e fora da Igreja. Francisco, por sua vez, resolve o
problema em senso evangélico. Na sua Ordem, novidade absoluta, os superiores se
chamarão ministros, ou seja, servos, e todos os outros frades, ou seja, irmãos.
Outro muro de separação entre a Igreja e o povo
era a ciência e a cultura da qual o clero e os monges tinham o monopólio na
prática. Francisco sabe disso e, portanto, assume a posição drástica que
sabemos sobre este ponto. Ele não é contrário à ciência-conhecimento, mas à
ciência-poder; aquela que favorece aqueles que sabem ler sobre aqueles que não
sabem ler e lhes permite comandar com altivez ao irmão: "Traga-me o
breviário". Durante o famoso Capítulo das Esteiras a alguns dos seus
irmãos que queriam empurrá-lo a adequar-se à atitude das “ordens” cultas do
tempo, respondeu com palavras de fogo que deixaram, lê-se, os frades tomados de
temor:
"Irmãos,
meus irmãos, Deus me chamou para trilhar o caminho da simplicidade e o mostrou
para mim. Não quero, portanto que me citem outrsa Regras, nem aquela de Santo
Agostinho, nem aquela de São Bernardo ou de São Bento. O Senhor revelou -me ser
sua vontade que eu fosse um idiota no mundo: esta é a ciência à qual Deus quer
que nos dediquemos! Ele vos confundirá por meio da vossa mesma ciência e
sabedoria”[8].
Sempre a mesma atitude coerente. Ele quer para si
e para os seus irmãos a mais rígida pobreza, mas na Regra, exorta-os a “não
desprezar e a não julgar os homens que vêm vestidos com hábitos finos e
coloridos e usar comida e bebida delicadas, mas sim cada um julgue e despreze a
si mesmo”[9]. Escolhe ser um iletrado mas não condena a ciência. Uma vez
assegurado que a ciência não extinga “o espírito da santa oração e devoção”,
será ele mesmo a permitir a frade Antonio de dedicar-se ao ensino da teologia e
São Boaventura não pensa que está traindo o espírito do fundador, abrindo a
ordem aos estudos nas grandes universidades. Yves Congar vê nisso uma das
condições essenciais da “verdadeira reforma” na Igreja, a reforma, ou seja, que
permanece tal e não se transforma em cisma: isto é, a capacidade de não
absolutizar a própria intuição, mas permanecer solidário com o todo que é a
Igreja[10]. A convicção, diz o Papa Francisco, na sua recente Exortação
apostólica Fidei gaudium,
que “o todo é superior à parte”.
4. Como imitar Francisco
O que diz a nós hoje a experiência de Francisco?
O que podemos imitar dele, todos e rápido? Sejam aqueles que Deus chama a
reformar a Igreja pelo caminho da santidade, sejam aqueles que se sentem
chamados a renová-la pelo caminho da crítica, sejam aqueles que ele mesmo chama
a reformá-la pelo caminho do cargo que ocupam? A mesma coisa com a qual
se começou a aventura espiritual de Francisco: a sua conversão do eu a Deus, a
sua negação de si. É assim que nascem os verdadeiros reformadores, aqueles que
mudam realmente algo na Igreja. Os mortos a si mesmos. Melhor, aqueles que decidem seriamente
morrer a si mesmos, porque se trata de uma empresa que dura toda a vida e
também além, se, como dizia brincando santa Teresa de Ávila, o nosso amor
próprio morre vinte minutos depois de nós.
Dizia um santo monge ortodoxo, Silvano do Monte
Athos: “Para ser verdadeiramente livres, é necessário começar a ligar a si
mesmo”. Homens como estes são livres com a liberdade do Espírito; nada os para
e nada os espanta mais. Tornam-se reformadores pelo caminho da santidade, e não
somente pelo caminho do ofício.
Mas o que significa a proposta de Jesus de
negar-se a si mesmo? É ainda possível propô-la a um mundo que fala somente de
auto-realização, auto-afirmação? A negação nunca é fim em si mesmo, nem um
ideal em si. A coisa mais importante é aquela positiva: Se queres seguir-me; É
o seguir Cristo, possuir Cristo. Dizer não a si mesmo é o meio; dizer sim a
Cristo é o fim. Paulo a apresenta como uma espécie de lei do espírito: “Se com
a ajuda do Espírito fazes morrer as obras da carne, vivereis” (Rom 8, 13).
Isso, como se pode ver, é um morrer para viver; é o oposto da visão filosófica
que diz que a vida humana é “um viver para morrer” (Heidegger).
Trata-se de saber qual fundamento queremos dar à
nossa existência: se o nosso “eu” ou “Cristo”; na linguagem de Paulo, se
queremos viver “para nós mesmos”, ou “para o Senhor” (cf. 2 Coríntios 5, 15,
Rom 14 , 7-8). Viver “para si mesmos” significa viver para a própria
comodidade, a própria glória, o próprio progresso; viver “para o Senhor”
significa recolocar sempre em primeiro lugar, nas nossas intenções, a glória de
Cristo, os interesses do Reino e da Igreja. Cada “não”, pequeno ou grande,
falado a si mesmo por amor, é um sim dito a Cristo.
Somente deve-se evitar a ilusão. Não se trata de
saber tudo sobre a negação cristã, sua beleza e necessidade; trata-se de passar
ao ato, de praticá-la. Um grande mestre de espírito da antiguidade dizia: “É
possível despedaçar dez vezes a própria vontade em um brevíssimo tempo; e vos
digo como. A pessoa está passeando e vê algo; o seu pensamento lhe diz: “Olha
lá”, mas ele responde ao seu pensamento: “Não, não olho”, e despedaça assim a
própria vontade. Depois encontra outros que estão falando (leia falando mal de
alguém) e o seu pensamento lhe diz: “Fale’ também você aquilo que sabe”, e
despedaça a sua vontade calando”[11].
Este antigo Padre traz, como se vê, exemplos
tirados todos da vida monástica. Mas eles podem ser atualizados e adaptados
facilmente para a vida de cada um, clérigos e leigos. Encontros, se não com um
leproso como Francisco, com um pobre que você sabe que vai lhe pedir algo; o
seu homem velho te empurra a passar do lado oposto do caminho, e você pelo
contrário, se faz violência e lhe vai ao encontro, talvez presenteando-lhe
somente com uma saudação e um sorriso, se não pode fazer outra coisa. Oferecem
a você a ocasião para um lucro ilícito: e você diz não e negou a si mesmo. Foi
contestado em uma ideia; toca o ponto sensível, gostaria de responder com
força, cala e espera: despedaçou o seu eu. Acredita ter sido passado pra trás,
um tratamento, ou um destino não adequado aos seus merecimentos: gostaria de
contar para todos, fechando-se em um silêncio cheio de tácita reprovação. Diz
não, quebra o silêncio, sorri e reabre o diálogo. Negou a si mesmo e salvou a
caridade. E assim por diante. Um sinal que prova uma boa luta contra o próprio
eu, é a capacidade ou ao menos o esforço de alegrar-se pelo bem feito ou a
promoção recebida de outro, como se acontecesse consigo mesmo:
“Bem
aventurado aquele servo – escreve Francisco em uma das suas Admoestações – que
não se orgulha pelo bem que o Senhor diz e obra por meio dele, mas sim pelo bem
que diz e obra por meio de outro”.
Uma meta difícil (eu não falo certamente como
quem já a alcançou!), mas a história de Francisco, nos mostra o que pode nascer
de uma negação de si feita em resposta à graça. A meta final é poder dizer com
Paulo e com Ele: “Não mais eu que vivo, Cristo vive em mim”. E haverá alegria e
paz plenas, já sobre esta terra. Francisco, em sua "perfeita
alegria", é um exemplo vivo da "alegria que vem do Evangelho,"
do Evangelii gaudium!
Traduzido do original italiano por Thácio
Siqueira
[1] Y.Congar, Vera e falsa riforma nella
Chiesa,Milano Jaka Book, 1972, p. 194.
[2] Celano, Vita
Prima, VII, 17 (FF 348).
[3] Cf. Celano, Vita Seconda, V, 9 (FF 592)
[4] Cf. Celano, Vita prima, III, 7 (FF, 331).
[5] Bihhmeyer – Tuckle, II, p. 239.
[6] Legenda
dei tre compagni VIII (FF 1431 s.).
[7] FF, 358; 1436 s.; 1508.
[8] Legenda
perugina 114 (FF 1673).
[9] Regola
Bollata, cap. II.
[10] Sobre as condições da verdadeira reforma
veja Congar, ob. cit. pp. 177 ss.
[11] Doroteo di Gaza, Opere spirituali, I,20 (SCH 92,p.177).
À primeira vista, tendo-se presente que a pobreza se tornou ao
longo
da história quase que uma carteira de identidade dos franciscanos, o
título desta reflexão parece conter um paradoxo ou talvez causar a
expectativa de uma visão radicalmente negativa da economia. Pode o
franciscano pelo menos pensar em economia, já que o próprio Francisco
proíbe severa e terminantemente que os frades recebam dinheiro,
comparando-o a uma pedra ou ao pó que se calca com os pés (cf. RnB
8,4.6)(1)? Haveria algum espaço para se falar em economia, quando se
defende a pobreza radical do nada possuir (cf. RB 6,1)? Embora as
aparências possam sugerir uma irreconciliável contradição entre
espiritualidade franciscana e economia, ousamos afirmar que o próprio
Francisco de Assis nos deixou o que poderíamos chamar de “modelo
econômico alternativo”. E os franciscanos, ao longo da história, não
somente elaboraram um pensamento sobre a economia, mas propuseram novos
modelos econômicos na tentativa de diminuir a distância existente entre
ricos e pobres.
1. Conceito de economia no pensamento e na práxis de São Francisco
Evidentemente, não vamos encontrar nos escritos de Francisco nem no
conjunto todo das Fontes Franciscanas um conceito definido de economia.
Mas vamos descobri-lo nas entrelinhas do que está escrito e na práxis de
Francisco e de seus companheiros.
É necessário, antes de tudo, não identificar economia com possuir,
acumular bens (dinheiro, propriedades) e gerir capital. Pelo menos não é
este o conceito que ele tem de economia. Mas, se lermos atentamente as
fontes franciscanas, verificaremos que, para ele, a economia consiste em
gerir as necessidades vitais dos irmãos (gerir a vida). De fato, a
grande preocupação dele com relação aos frades é cuidar deles em suas
necessidades vitais. Embora a proposta franciscana seja de uma vida
sóbria – devemos estar contentes, quando temos com que nos cobrir e com
que nos alimentar (cf. RnB 9,1b) – no entanto, a economia que deve reger
a vida dos frades será pautada pelo cuidado dos irmãos em suas
necessidades, um princípio explícito na Regra Bulada:
Os ministros e custódios exerçam diligente cuidado, através de amigos
espirituais, para com as necessidades dos enfermos e para vestir os
demais irmãos de acordo com os lugares, tempos e regiões frias, como
virem que seja conveniente à necessidade; salvo sempre que, como foi
dito, não recebam moedas ou dinheiro (RB 4,3-4).
O conceito que ele tem de economia, portanto, não se situa no nível
do possuir, do acumular ou gerir bens, mas no nível do cuidar das
necessidades vitais e de gerir a vida.
2. Modelo econômico alternativo
Partindo do conceito de economia como cuidado dos irmãos em suas
necessidades vitais, nós nos perguntamos se, de fato, se criou um modelo
econômico para fazer frente a essas necessidades. Nossa busca neste
sentido aponta para uma resposta afirmativa. Alguns elementos são
bastante evidentes, permitindo-nos concluir categoricamente que se criou
realmente um modelo alternativo.
a) Um modelo baseado no trabalho
O trabalho como base da economia franciscana já estava explícito na Regra não Bulada:
E os irmãos que sabem trabalhar trabalhem e exerçam a mesma arte que
conhecerem… Pois diz o profeta: “Comerás do trabalho de tuas mãos”… E
pelo trabalho possam receber todas as coisas necessárias, exceto
dinheiro (RnB 7,3.4.7).
Pode-se dizer que o trabalho constitui o primeiro artigo do estatuto
da economia franciscana. O meio de suprir as necessidades vitais dos
frades, portanto, não consiste em rendas fixas nem na acumulação e
capitalização de bens, mas no trabalho.
Este artigo contém um parágrafo: “E, quando for necessário, vão pedir
esmola como os outros pobres” (RnB 7,8). Este parágrafo, no entanto,
não significa que o meio normal de suprir as necessidades seja a esmola,
como posteriormente na história foi interpretado, especialmente quando
foi concedido aos frades menores poderem viver das esmolas dos fiéis e
quando eles ficaram conhecidos com outros grupos como mendicantes. O
parágrafo não vem substituir o artigo, mas apenas acrescentar uma
cláusula para um caso especial, como o próprio Francisco chega a
precisar no Testamento: “E quando não nos for dado o salário, recorramos
à mesa do Senhor, pedindo esmolas de porta em porta” (Test 20b.21a.22).
b) A socialização dos bens pela partilha
Outro elemento que, a nosso ver, constituía um artigo importante do
modelo econômico de Francisco é a partilha dos bens adquiridos pelo
trabalho. A Regra é inequivocamente clara: “Quanto ao salário do
trabalho, recebam para si e para seus irmãos as coisas necessárias ao
corpo, exceto moedas e dinheiro” (RB 5,4).
Os bens adquiridos pelo trabalho são sempre “as coisas necessárias”. E
a repetida proibição de que se receba dinheiro mostra com muita
evidência que o modelo econômico proposto como alternativo não se baseia
no dinheiro. Este artigo, porém, evidencia que os bens adquiridos não
pertencem nem são destinados unicamente a quem trabalhou, mas ao
conjunto dos irmãos: “para si e para seus irmãos”.
Infelizmente, ao longo da história, as intermináveis discussões sobre
a pobreza nunca deram valor a este elemento que, a nosso ver, mostra o
verdadeiro significado da pobreza franciscana: a pobreza significa não
apenas não acumular, mas antes de tudo partilhar o pouco que se tem ou
se adquire (2). Tudo em vista do cuidado (bem comum) da fraternidade.
Este cuidado, princípio fundamental de todo o estatuto, por sua vez, dá a
cada frade a liberdade de manifestar ao outro suas necessidades: “E com
confiança um manifeste ao outro a sua necessidade” (RB 6,9).
c) Além da lei do supérfluo
Chamamos aqui “lei do supérfluo” aquela frase incandescente de São Basílio Magno em uma de suas homilias:
Pertence ao faminto o pão que tu reténs. Ao que está nu pertence o
manto que guardas. Ao descalço, o calçado que irá apodrecer em tua casa.
É do necessitado o dinheiro que tens enterrado (3).
Resumindo numa máxima a exortação de São Basílio: o supérfluo pertence aos pobres.
Embora Francisco não tenha escrito sobre a partilha com os demais
pobres, sua práxis é profusamente atestada pelos hagiógrafos. Ele queria
que os frades partilhassem com os necessitados não apenas o que lhes
era supérfluo, mas também o que estava destinado às suas próprias
necessidades. Ao encontrar alguém mais necessitado do que ele, não tendo
supérfluo, dava aquilo que lhe era absolutamente necessário. Dizia:
Recebemo-lo de empréstimo até acontecer que encontremos alguém mais
pobre… Não quero ser ladrão; ser-nos-ia imputado como furto, se não o
dermos ao mais necessitado (2Cel 87; CA 32).
Exemplos claros disso são as várias vezes em que ele deu seu próprio
manto a algum pobre (cf. 2Cel 86; 87; 88; 92) ou, quando já não tinha o
manto, cortava um pedaço do próprio hábito (cf. 2Cel 90) ou dava como
esmola os ornamentos do altar (cf. 2Cel 67) e até mesmo o livro do
Evangelho usado na liturgia (cf. 2Cel 91).
Resumindo o pensamento de Francisco sobre economia, pode-se dizer que,
tendo como princípio o cuidado dos irmãos, ele realmente desenvolve um
modelo econômico alternativo, baseado no trabalho, na partilha entre os
irmãos e na partilha (não só do supérfluo) com os demais pobres.
3. O conceito de propriedade privada no pensamento franciscano
A tese comum defendida na Idade Média, inclusive por teólogos do
porte de Santo Tomás de Aquino (4), era a da justificação da propriedade
privada pela lei natural. Na linha aristotélica, Tomás de Aquino
defende que odominium (o termo indica poder de uns sobre os
outros e propriedade sobre as coisas) remonta ao estado original, não é
consequência do pecado.
A escola franciscana, possivelmente influenciada por uma compreensão
evangélica da pobreza (Cristo quis ser e fez-se pobre), elaborou um
pensamento alternativo. Teólogos franciscanos que abordaram o tema:
Alexandre de Hales, Boaventura, Mateus de Aquasparta, Pedro João Olivi,
Duns Scotus e Ockham. Já com Alexandre de Hales (5), passando por
Boaventura (6), a formulação adquire uma clareza incontestável. Segundo
Alexandre de Hales, deve-se distinguir entre status innocentiae (o estado do ser humano antes do pecado) e status naturae lapsae (estado depois do pecado). Em seu estado de inocência foi dada ao ser humano a lex naturae simpliciter; em seu estado de natureza caída, foi-lhe dada a lex positiva,
esta última com a finalidade de coibir a vontade dos mais fortes de
submeter e explorar os mais fracos. Deste modo, em seu estado original,
havia apotestas utendi, o commune solatium rerum (provisão
ou uso comum das coisas). Com o pecado, irrompem a avareza, a tendência
à apropriação, a separação entre o meu e o teu, a concupiscência da
posse e da acumulação. Por isso, a necessidade de uma lei positiva (lei
da sociedade), que, no entanto, não deve ser absolutizada nem divinizada
como se fosse o projeto eterno de Deus. Ela mostra apenas a
precariedade e a fragilidade da condição em que se encontra o ser humano
caído. Se ela estabelece normas para proteger a propriedade particular,
é porque o ser humano perdeu o senso do uso comum das coisas, que era
próprio de seu estado primeiro.
Igualmente, para Duns Scotus, o ser humano não é proprietário por natureza. Como bem comenta Todisco, “os dominia não fazem parte dostatus innocentiae,
quando tudo era comum e o uso dos bens respondia somente à lógica da
necessidade de cada um. O atual desenfreamento do instinto concupiscente
faz parte de nossa história, não de nossa natureza… Assim, a partir do
estado de comunhão de bens se passou ao estado de distinção dos dominia para propiciar uma convivência pacífica. Nem o direito natural ou ius naturae nem o divino ou ius divinum se
podem tomar legitimamente como argumento a favor da propriedade, como
se esta expressasse a índole originária da natureza humana” (7) .
E Guilherme de Ockham sublinha que, depois do pecado, o ser humano não
está em condições de gozar os bens em comum, motivo pelo qual precisa
regular o poder de apropriar-se das coisas, de acordo com a condição
humana atual (8).
4. O modelo econômico dos Montepios
A crescente monetarização acontecida já na época de São Francisco
despertou muitos homens ricos à prática da usura. Devido aos seus lucros
exorbitantes e à espoliação dos pobres causada pelos juros altos dos
usurários, esta prática, comparada em gravidade à simonia e à avareza,
era severamente condenada pela teologia moral. Santo Antônio de Lisboa,
por exemplo, tornou-se um grande pregador contra a usura, pelo fato de
esta prática miserar muitas famílias já pobres. Com comparações
contundentes, ele clamava:
Um povo maldito de usurários, forte e inumerável, cresceu sobre a
terra. Os seus dentes são como os dentes de leão… seus dentes cheiram
mal, por motivo de existir sempre na sua boca o estrume da pecúnia e o
esterco da usura. Os seus queixais são como leõezinhos, porque
arrebatam, mastigam e devoram os bens dos pobres, dos órfãos e das
viúvas” (9).
Com o passar do tempo, os frades menores, compreendendo que o uso do
dinheiro fazia parte da vida cotidiana do povo, perceberam que não
bastava anatematizar o dinheiro. A usura ainda dizimava muitas vidas e
dignidades. Participando das angústias dos cidadãos, especialmente dos
mais pobres, e conscientes da força do capital que movia a sociedade –
sem deixar de arruinar muitas vidas –, os frades começaram a refletir
também sobre esta realidade de maneira realista, chegando a elaborar um
pensamento sobre economia. Exemplos disso são os tratados de Pedro João
Olivi, intituladosTractatus de emptione et venditione e Tractatus de contractibus usurariis et de restitutionibus.
Este teólogo trilha o caminho do preço justo dos bens produzidos,
levando em conta não apenas o trabalho do artesão, mas também as
dificuldades e trabalho do mercador, as situações de escassez e de
abundância, etc., que acabam incidindo legitimamente na valorização da
mercadoria. Posteriormente, Bernardino de Sena estabelecerá os elementos
a serem levados em conta no preço dos bens produzidos: o valor natural
da coisa produzida (realis bonitas naturae) e a utilidade (utilitas rei, pois o uso acrescenta valor à coisa); acrescentem-se a estes a virtuositas (qualidade), araritas (escassez) e a complacibilitas (a satisfação que o produto dá ao que o compra) (10).
A contribuição franciscana em assuntos de economia, porém, não ficou
no nível do pensamento. A iniciativa dos montepios foi a maneira
concreta encontrada para levar a sociedade ao bom uso do dinheiro, isto
é, a produzir bens de consumo sem produzir miséria. Bernardino de Sena
(1380-1444) e Bernardino de Feltre (1439-1494), entre muitos outros
pregadores, foram os incentivadores deste modelo de economia. O sistema
consistia em levar os ricos a substituírem as esmolas por empréstimo a
juros baixos para os que não tinham um capital e eram capazes de
produzir bens de consumo. Deste modo, o pobre se sentiria valorizado em
sua dignidade de poder produzir, de colaborar com a construção da vida
social. Uma frase de Bernardino de Feltre, que mostra a natureza dos
montepios, reza assim:
Não retenhas o supérfluo, que o supérfluo rompe a cesta… quando és
rico e tens a barriga cheia e o pobre te pede emprestado e tu podes
ajudar, se não o ajudas, pecas mortalmente. Portanto, se estás obrigado a
dar esmola e ser generoso, quanto mais estás obrigado a dar ajuda
daquilo que receberás com juro? (11).
O primeiro montepio foi fundado em 1462, em Perúgia, mas a iniciativa
estendeu-se com muita rapidez pelas cidades da Itália e da Europa.
Conclusão
Quando os frades menores se põem a pensar a economia e a criar
modelos econômicos alternativos, onde fica a pobreza? Estariam eles
distanciando-se do carisma do fundador, afastando-se da pobreza radical?
Não subsistiria, no fundo, a contradição à proposta original de
Francisco?
Pelo contrário, vemos aí exatamente a superação da suposta
contradição e uma até mesmo apologia da pobreza. Aos que consideravam a
pobreza uma violação dos direitos fundamentais da natureza humana (entre
estes o chamado direito natural à posse), a renúncia à posse dos bens
mostra que a pobreza radical, pensada neste contexto, não vai contra a
natureza humana, mas contra a natureza atual (caída) que se tornou
egoísta. A pobreza radical (renúncia a qualquer domínio) aponta,
portanto, para o status innocentiae, não viola absolutamente nenhum direito natural (lex naturae),
como pretendiam os que se inspiravam numa concepção naturalista pagã,
mas restaura a condição primeira. Esta visão dá ao indivíduo o pleno
direito (liberdade) a renunciar a todos os direitos, e nisso consiste a
radicalidade máxima da pobreza.
De outro lado, os frades não propõem o dinheiro como objeto de culto e
de cobiça. Sua preocupação principal é livrar os pobres de uma pobreza
que indignifica e envergonha o ser humano: a miséria. E a proposta
subjacente ao modelo econômico dos montepios não era a de enriquecer os
pobres, mas de permitir que eles, mesmo pobres, continuassem humanos,
co-participantes da vida e da construção da cidade dos homens.
1 Os hagiógrafos são ainda mais radicais, ao
atribuírem a Francisco a comparação do dinheiro com o esterco; cf. 2Cel
65,3; 66,2; CA 27,3; LTC 45,4.2 Quem recentemente fez uma abordagem da pobreza do ponto de vista da economia foi D. Flood em seu livro Frei Francisco e o movimento franciscano,
Vozes-Cefepal, Petrópolis, 1986, onde ele fala da “base econômica” (p.
42, 54, 55, 58), de “sistema econômico” (p. 49), de “organização
econômica” (p. 67, 71) da vida dos frades, caracterizando-a como
“economia fraterna” (p. 71), apontando, inclusive, a esmola não por
razões de pobreza, mas por razões simplesmente econômicas (p. 55-56).3 Basílio Magno, Homilia in Lc 12,16, em PG 31, c. 1752.4 STh., I, q. 96, a. 4.5 SH, II, q. 3, c. 2.6 Boaventura, II Sent., d. 44, q. 2, a. 2.7 Todisco O., “Ética e Economia”, em Merino J.A.; Fresneda F.M. (org.),Manual de Filosofia Franciscana, Petrópolis, Vozes-FFB, 2006, 261-332, p. 267; cf. Duns Scotus, Ordinatio IV,
d. 15, q. 2, n. 5; sobre a questão da propriedade em Duns Scotus, cf.
Bottin F., “G.D. Scoto sull’origine della proprietà”, em Rivista di Storia della Filosofia 52 (1997) 47-59.8 Cf. Todisco O., o. c. 267.9 Sermão da Sexagésima.10 Bernardino de Sena, II, Sermo XXX, c. 1; obra citada por Todisco O., o. c. 324.11 Citado por Todisco O., o. c. 327.