quinta-feira, 17 de novembro de 2011

JESUS CRISTO EM S. FRANCISCO.


Por  Fr. David de Azevedo OFM


Fonte cadernos franciscanos paginas edição 35 paginas 18 -25
JESUS CRISTO EM S. FRANCISCO
O documento “Declaração sobre a Vocação da Ordem nos Dias de hoje”, produzido pelo Capítulo Geral da Ordem dos Frades Menores celebrado em Madrid em 1973, declara logo no início: ―No centro da vida franciscana encontra-se a experiência de fé em Deus no encontro pessoal com Jesus Cristo. É o que atestam os escritos de Francisco e outros textos. Sob qualquer aspecto que se aborde – oração, fraternidade, pobreza, presença no meio dos homens – todo o projeto evangélico nos remete continuamente para a fé. (n. 5). A palavra principal é: ―encontro pessoal.
Verdadeiramente a Pessoa de Jesus é a fonte, o centro e o segredo da vida de S. Francisco; e deveria ser também o coração de toda a experiência franciscana, Francisco não teve em vista qualquer problema de apostolado: combater os albigenses ou restaurar a santidade do Povo cristão. Nem tão pouco um problema espiritual: promover a sua santificação pessoal ou definir e estruturar um perfil de santidade. Tudo brotou espontaneamente de uma paixão de amor por Jesus. Foi uma vivência totalmente centralizada na Pessoa de Jesus. Uma relação de amor. Não uma relação de interesse, fosse este em favor da Igreja em geral, fosse em favor do aperfeiçoamento pessoal seu ou dos outros. Esta postura, indispensavelmente de relação pessoal tem depois reflexos práticos na sua vida e impulsos revolucionários quer no que se refere à vida dos indivíduos, quer no que se refere ao conjunto da humanidade como tal. É decisivo, porém, tanto para a renovação da Ordem, como para a formação dos novos franciscanos, ter consciência do ponto de partida que se toma: se o funcional – ver a Ordem em função da Igreja -; se o relacional – ver o franciscanismo como relação de amor. Ter consciência de que a grande prioridade é a relação de amor. Também para a felicidade dos homens.
Vamos limitar-nos aos Escritos de S. Francisco, embora abertos a alguns testemunhos dos seus biógrafos. Demorar-nos-emos, primeiro, a contemplar a paixão amorosa de Francisco por Jesus; depois, os mistérios de Jesus mais vívidos por Francisco; e, finalmente, esboçaremos alguns traços do perfil de Jesus.
A Paixão Amorosa de Francisco por Jesus
Depois dos primeiros passos da sua conversão, é a Pessoa de Jesus que surge imediatamente diante do olhar infantil e extasiado de Francisco. A Pessoa de Jesus em primeiro plano: grande, linda, luminosa, encantadora, avassaladora. Tudo o mais se esbate e perde na sombra. Fica só ela. Os problemas sociais e religiosos do mundo de então, os pecados e as preocupações da Igreja, as inter-rogações da inteligência e as opiniões dos teólogos, os problemas pessoais dele, sonhos de grandeza e tribulações do espírito – os seus problemas interiores, sobretudo – tudo isso passa para segundo plano ou fica como que perdido no vazio da memória que de repetente se forma. São Boaventura, referindo uma aparição do Crucificado anterior à que aconteceu na capelinha de S. Damião, parece acentuar este aspecto puramente pessoal do encontro de Francisco com Cristo. Não há ali a preocupação da igreja que ameaça ruína, como na visão de S. Damião, mas tão-só a presença de Jesus. (FV p. 21). Tomás de Celano, igualmente, captou bem este segredo da experiência de Francisco: ―Toda a sua alma tinha sede de Cristo. O Cristo votava, não apenas o coração, mas todo o corpo (2 C94). E na Vida Primeira: ―Os irmãos que com ele viveram sabem como a toda a hora lhe aflorava aos lábios a recordação de Jesus e com que enlevo e ternura sobre ele discorriam (…). Que intimidades as suas com Jesus! Trazia Jesus no coração, Jesus nos lábios, Jesus nos ouvidos, Jesus nos olhos, Jesus nas mãos, Jesus presente em todos os seus membros! (1 C 115).
Mas voltemos a S. Francisco. A sua paixão transparece primeiro na própria maneira de falar, nos nomes que dá a Jesus e na emoção que lhes acrescenta servindo-se de adjetivos de encanto. O nome mais freqüente é ―Nosso Senhor Jesus Cristo”, que aparece pelo menos quarenta e cinco vezes, com freqüência aquecido com os adjetivos “santíssimo”. Em contexto eucarístico: ―Santíssimo Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo” (8 vezes); e noutros: ―Mãe do nosso santíssimo Senhor Jesus Cristo” (OP, antífona); ou “altíssimo”: “quero seguir a vida e a pobreza do nosso altíssimo Senhor Jesus Cristo (UVC).
Outro nome muito freqüente é o de “Filho de Deus” (Umas 25 vezes). Também este enriquecido com adjetivos ardentes. “Teu dileto Filho”(PPN 6;OP 7, 3; 15, 3; Ex 5, 1); ―Teu amado Filho” (PPN 7; OP 9, 2; SVM 2; 1 R 23, 5; T 40) Teu filho muito amado” (1 R 23, 6).; ―Teu santíssimo e dileto Filho” OP antífona); ―seu Filho bendito e glorioso”(2 CF 11); “Cristo, Filho de Deus vivo” (CO 26; 1 R 9, 4); “Deus e filho de Deus”(CO 27) “verdadeiro Filho de Deus”(Ex 8); “Altíssimo Filho de Deus”(T 10); “Teu único Filho”(1 R 23, 1). E outros semelhantes.
A emoção, porém, tem mais força e mais ternura quando se lê o texto seguido. Só dois. Na Segunda Carta aos Fiéis, ao referir-se à Anunciação, conta: ―O Pai altíssimo, pelo seu arcanjo S. Gabriel, anunciou à santa e gloriosa Virgem Maria, que esse Verbo do mesmo Pai, tão digno, tão santo e glorioso, ia nascer do céu a tomar carne verdadeira da nossa humana fragilidade em suas entranhas. E sendo Ele mais rico do que tudo quis, no entanto, com sua Mãe bem-aventurada, escolher vida de pobreza (2 CF 4-5). E na primeira versão da mesma carta, referindo-se a Jesus: ―Oh! Como é glorioso ter no céu um Pai santo e grande! Oh! Como é santo ter tal esposo, consolador, belo e admirável! Oh! Como é santo e amável ter tal irmão e tal filho, agradável, humilde, pacífico, doce e mais que tudo desejável, Nosso Senhor Jesus Cristo, que deu a vida pelas suas ovelhas (1 CF 11-13).
Outra forma eloqüente e singela desta paixão de Francisco por Jesus era espontaneidade com que tudo lhe acordava na mente a lembrança do seu Senhor: ―Ao ver as flores, diz Tomás de Celano, imediatamente se reportava à contemplação dessa outra flor primaveril, radiosamente nascida do tronco de Jessé (1 C 81); (…) uma ovelhinha num rebanho de cabras fazia-lhe lembrar Jesus entre os fariseus (1 C 77); um vermezinho rastejando pelo chão trazia-lhe ao pensamento Aquele de quem o profeta disse ―Eu sou um verme e não um homem‖ (1 C 80); as pedras do caminho recordavam-lhe Jesus que foi a ―pedra angular; o fogo evocava no seu espírito Aquele que de si disse: ―Eu sou a luz do mundo; e assim praticamente a propósito de todas as criaturas.
Mistérios de Jesus mais presentes na alma de Francisco
Se em algum campo Francisco viveu a pobreza – a pobreza como gratuidade – foi na contemplação de Jesus. Francisco não se preocupa de si. Só vive o encanto e a gratidão de ser amado. Só vive o seu fascínio por Jesus. Devido à obsessão do pecado, a espiritualidade cristã está muito inclinada para o homem: salvação eterna, conversão moral, caminhada na perfeição… Francisco parece esquecer-se de si. Contempla Jesus. Mesmo na Paixão, não são os problemas humanos que dominam Francisco mas aquilo que Jesus viveu nesses momentos. Os mistérios mais presentes são a Encarnação, a Eucaristia e a Paixão.
Uma das originalidades de Francisco é a aproximação dos dois primeiros: a Eucaristia e a Encarnação. Não como faz S. Paulo, que relaciona a Eucaristia mais com a Paixão. Além do que contam as Legendas sobre o Natal, a Encarnação está muito presente nos Escritos de Francisco: na 2 Cf 4-18, na 2 Cf 23-29; e OP 7. 11.15.
O aspecto que mais encanta S. Francisco é a infinita descida de Deus. Tanto na Encarnação como na Eucaristia. A motivação não é primeiramente o pecado, mas a aproximação de Deus ao homem. O desejo de estar com o homem. Na Exortação 1ª: : ―Por isso, ó filhos dos homens, até quando haveis de ser de cora-ção duro. Porque não reconheceis a verdade e acreditais no Filho de Deus? Eis que Ele se humilha cada dia, como quando baixou do seu trono real, a tomar carne no seio da Virgem; cada dia vem até nós em aparências de humildade; cada dia desce do seio do Pai, sobre o altar, para as mãos do sacerdote‖ (Ex 1ª 14-18). E com maior emoção na Carta a toda a Ordem. Depois de uma exortação aos irmãos sacerdotes, exclama: ―Que o homem todo se espante, que o mundo todo trema, que o céu exulte, quando sobre o altar, nas mãos do sacerdote, está Cristo o Filho de Deus vivo! Oh! Grandeza admirável!, Oh! Condescendência assombrosa, oh! Humildade sublime, oh! Sublimidade humilde, que o Senhor de todo o universo, Deus e Filho de Deus, se humilde a ponto de se esconder, para nossa salvação, nas aparências de um bocado de pão. Vede irmãos, a humildade de Deus e derramai diante dele os vossos corações; humilhai-vos também vós para que ele vos exalte. Em conclusão: nada de vós mesmos retenhais para vós, para que totalmente vos possua aquele que totalmente a vós se dá‖ (CO 26-29). Note-se a alusão implícita ao amor esponsal. O fundo do pensamento não é o pecado, mas o amor de esposo de Deus conosco. Na Segunda Carta aos Fiéis há referência mais clara à remissão do pecado, mas a presença da Eucaristia ouve-se como uma melodia de fundo aberta pela palavra: ―sobre eles repousará o espírito do Senhor e neles fará morada e mansão” (2 CF 48-56). O mesmo pensamento na 1 R 22, 25-27.
A Paixão é contemplada principalmente no chamado Ofício da Paixão, mas também aí o que aconteceu a Jesus faz esquecer o lado humano. Francisco como que se faz possuir pela Pessoa de Jesus e é Este quem entra em diálogo com o Pai celeste. Neste diálogo é também muito significativo que Jesus pouco se lamente dos sofrimentos físicos e quase só se lamente dos sofrimentos do coração: a ingratidão e perfídia dos inimigos, ― E me tornaram o mal em paga do bem e o ódio em paga do amor (1,3.4); Armaram-me laços aos pés e encurvaram-me a alma(3, 6); ―Calcam-me aos pés.. os meus inimigos e espezinham--me todo o dia (4, 1. 2); o abandono dos amigos: ―Meus amigos e vizinhos já vinham para mim, mas pararam; e os meus parentes detiveram-se ao longe‖ (1, 7); ―Procurei quem de mim tivesse compaixão, mas não achei‖ (2,8), ―Mais que os meus inimigos, tornei-me objeto de muito opróbrio para os meus vizinhos‖ (4,8), ―Tornei-me como que um estranho para os meus irmãos, como um estran-geiro para os filhos de minha mãe‖(5,8); a humilhação: ―Tu conheces a minha humilhação e confusão e a minha ignomínia (2,6), ―O meu coração fez-se como cera a derreter-se no meu peito (6,7). Com muitas lamentações semelhantes, Jesus, pela boca de Francisco, vai apresentando seus sofrimentos ao Pai. O sofrimento físico também aparece, mas de relance e sintetizado numa ou outra palavra: ―golpes de azorrague (5,10); ―tenho os ossos desconjuntados (6,6); ―agravaram as dores das minhas chagas(6, 10).
A par do queixume, abundam outros sentimentos positivos, em expressão bela e emocionada: a prece ao Pai para que venha em seu favor; a confiança no poder e amor do Pai; o louvor ao Pai pela sua intervenção e vitória sobre os inimigos, etc. Assim em alguns salmos, principalmente a partir do salmo 7, que nos fazem captar fulgores de ressurreição: ―Gentes todas aplaudi batendo palmas… Porque o Santíssimo Pai do céu, nosso Rei desde toda a eternidade, resolveu enviar lá do alto a seu dileto Filho e Ele operou a salvação no meio da terra (7, 1. 3.); ―Cantar-Te-ei, Senhor, Pai santíssimo, Rei do céu e da terra, por me teres consolado. Tu és o meu Deus e salvador (14 1-2).
O mistério da Salvação aparece noutros muitos escritos – CO 3, CO 46; Ex. 6ª; 1 R 22, 2; 1 R 23, 3 – as mais das vezes como simples referência; mas, com um simples adjetivos, Francisco envolve o mistério de ternura e adoração. Só um texto. Na 2 Cf, depois de falar da Encarnação e da instituição da Eucaristia, entra na Paixão do Senhor com a oração no Jardim das Oliveiras, no fim da qual recorda: ―Ora a vontade do Pai foi esta: Que seu Filho bendito e glorioso, que Ele nos havia dado e que por nós nascera, se oferecesse, por seu próprio sangue, como sacrifício e hóstia no altar da cruz; não por si mesmo, por quem todas as coisas foram feitas, mas pelos nossos pecados, deixando-nos o seu exemplo para seguirmos os seus passos (2 CF 11-13). Na grande ação de graças do capítulo 23 da Regra Primeira, Francisco não esquece Jesus em nenhum dos grandes mistérios da fé: na Criação, na Encarnação, na Redenção e na Ressurreição e Juízo Final; mas se quisermos fazer uma pergunta sobre em qual deles Jesus tem maior relevo para Francisco, diremos que a Encarnação. (1 R 23, 3).
Traços do perfil de Jesus
Quais os traços principais do rosto de Jesus para S. Francisco? Não vamos demorar-nos naqueles que pertencem já à fé cristã – Verdadeira Deus, Verda-deiro Homem, Redentor, Ressuscitado – mas fixar-nos nos que estão mais ilu-minados pelo amor de Francisco. Em primeiro lugar.
Filho de Deus
Já nos referimos a este nome e dissemos que aparece umas 25 vezes, mas de forma implícita a sua presença é maior. Embora não apareça a palavra, o significado está presente na palavra Pai que S. Francisco usa tão freqüentemente. Presente duma forma singular no Ofício da Paixão, pois aí o nome Pai tem uma força muito especial pela ousadia com que Francisco a emprega substituindo a palavra Deus que estava no texto original dos salmos. Sobretudo quando acompanhada do pronome meu: ―Meu Pai santo‖ (1,5); ―Meu Pai santíssimo (2, 11).
A palavra filho não é só uma verdade dogmática, fria e exterior, mas uma expressão densa de afetividade e valor relacional. Diz que Jesus é querido, amado, envolvido de ternura… que Jesus é gerado, alimentado, sustentado na existência, segundo a segundo, pelo Pai, com a doação total do seu ser… É a mais radical forma de pobreza, pois tudo lhe vem do Pai; e, por isso, a mais inestancável fonte de gratidão. a mais radical fonte de alegria e de júbilo.
Dado pelo Pai
Outro traço que marca o perfil de Jesus é o facto de ser dado pelo Pai, verdade sentida vibrantemente por Francisco. É encantadora a Segunda Carta aos Fieis. Já oferecemos esse texto, mas repetimos: ―O Pai altíssimo, pelo seu arcanjo S. Gabriel, anunciou à santa e gloriosa Virgem Maria, que esse Verbo do mesmo Pai, tão digno, tão santo e glorioso, ia descer do céu, a tomar carne verdadeira da nossa humana fragilidade em suas entranhas‖ (2 CF 4-5). E com a mesma emoção, numa alusão explícita ao momento do dom, o Natal, no Ofício da Paixão: ―Porque nos foi dado o santíssimo e dileto Menino e por nós nasceu durante uma viagem e foi deitado num presépio (OP 15,7). E um pouco antes: ―Porque o santíssimo Pai do céu, nosso rei desde toda a eternidade resolveu enviar lá do alto a seu Filho dileto e operou a salvação no meio da terra (OP 7, 3; cf. 11, 6).
Se S. Francisco chorava de alegria ao comer umas côdeas duras porque via nelas uma dom de Deus, qual não seria a sua gratidão ao contemplar ―o santíssimo e dileto Menino que lhe foi dado pelo Pai altíssimo?!. Daqui toda a teologia de Francisco sobre o Pai e sobre a providência divina. Daqui o seu encanto por Jesus. Daqui a ternura que enche toda a espiritualidade franciscana. Jesus era um tesouro, não só pela sublimidade da sua pessoa e da sua obra redentora, mas, sobretudo por ser dado pelo Pai: ―Copiosius namque donat qui maiore corde donat‖, diz S. Boaventura. O dom é tanto maior quanto maior é o coração que dá. No caso de Jesus trata-se do coração do próprio Deus. Daqui a paixão da S. Francisco pela Eucaristia. Tinha saudades de Jesus. Daqui o seu amor pelas criaturas. Não as amava só por terem sido criadas por Deus, mas porque via nelas uma ligação íntima com Jesus. Tudo foi criado para, ―um dia, na plenitude dos tempos, tudo ser instaurado em Cristo Jesus, tudo o que há no céu e na terra (Ef. 1, 10).
Jesus Nosso Irmão
Desse amor divino nasce em Francisco o sentido da fraternidade. Os textos são vibrantes: ―Oh! Como é glorioso ter no céu um Pai santo e grande! Oh! Como é santo ter um esposo consolador, formoso e admirável! Oh! Como é santo e agradável ter tal irmão e filho, aprazível, humilde, pacifico, doce e mais que tudo desejável, que deu a vida pelas suas ovelhas‖ (2 CF 48-56). Foi esse coração divino que deu seu filho com tanta força, que comunicou ao homem sua mesma vida: ―Assim como o Pai vive e eu vivo pelo Pai, assim aquele que me come viverá por mim (Jo 6, 57). Tomás de Celano apanha com muita beleza a alma de S. Francisco ao escrever: ―Rodeava de um amor indizível a Mãe de Jesus, por ter feito nosso irmão o Senhor de toda a majestade‖ (2 C 198). Feito nosso irmão.
Esta fraternidade concretiza-se de muitos modos na convivência de Jesus com os homens, mas há duas linhas particularmente fortes: uma, em relação ao  Pai; e outra, em relação ao homem. Em relação ao Pai, a obediência; em relação aos homens, a solidariedade. Na sua obediência Jesus incorpora toda a humanidade. No drama da Paixão, desde a Oração da Agonia até ao grito “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”, toda a humanidade se tornou “humanidade obe-diente”. Quanto à solidariedade, Jesus é como que a cabeça de família. Torna--se fiador que responde por todos os seus irmãos. Ora Jesus levou esta solidariedade até ao extremo. Podia ter mudado de programa, podia ter organizado um corpo de defesa, podia ter fugido. Não o fez. Foi até à morte. A Cruz é um monumento de fidelidade, de honra, de solidariedade, de fraternidade.
Jesus Pobre
Para S. Francisco a pobreza não é a pobreza sem mais. Não pensa na pobreza como virtude ascética. Não pensa na pobreza como o mundo dos pobres. Para ele, a santa pobreza é a ―pobreza e humildade de nosso Senhor Jesus Cristo‖ (2 R 12,4); a ―pobreza do altíssimo Senhor Jesus Cristo e de sua santíssima Mãe (UVC). Diz na 2 CF: ― E sendo Ele mais rico do que tudo, quis, no entanto, com sua Mãe bem-aventurada, escolher vida de pobreza‖ (2 CF 5).
Por quê?… Porque é que o Verbo de Deus escolheu vida de pobreza?… Não sabemos. Pertence à Liberdade de Deus. Mas parece-nos que podemos fixar duas razões: uma, a verdade; outra, o sentido da pessoa. Se Jesus se apresentasse em trajes de grandeza, havia o perigo de os homens se perderem no caminho: em vez de se dirigirem e prenderem a Ele, Jesus, serem arrastados pela idolatria das grandezas materiais: a riqueza, o prestígio e o poder. Tal terá sido o significado das três tentações no deserto. Jesus afirmou a unicidade radical do Amor: ―Só a Deus adorarás. – Segunda, o sentido da pessoa. Jesus optou pela pobreza para facilitar a convivência com todos… com a pessoa de cada um: pobres, crianças, pecadores, samaritanos, gentios, etc. As riquezas, os títulos acadêmicos, as fidalguias, os cargos públicos… ou mesmo as grandezas religio-sas às vezes funcionam como biombos ou bastidores que dificultam o contacto com o homem na sua intimidade de pessoa. Ora, é na intimidade que nasce o amor.
Jesus Cristo Crucificado
O Cristo Crucificado é o maior contemplado nas Legendas. Não assim nos Escritos de Francisco. As referências são relativamente poucas (PPN 7; 2 CF, 11; Ex 5, 3; Ex. 6, 1; 1 R 23, 3); e, na maior parte delas, limitam-se a uma alusão ao acontecimento. Não tem descrições: da flagelação, da coroação de espinhos, da crucifixão, das três horas na cruz…. Da morte do Senhor. Isto não quer dizer que a figura do Senhor Crucificado não estivesse presente com insistência na sua mente e no seu coração. A prova mais eloqüente é o Ofício da Paixão. Primeiro pela sua beleza humana; e, segundo, por ser uma oração composta por Francisco e por ele recitada, como ofício votivo, todos os dias. Mas significativo ainda é o facto de quase silenciar os sofrimentos físicos e as descrições sangrentas. A Sua oração é silêncio adorador, é contemplação emudecida, é nobreza de alma ajoelhada.
Temos, pois, os seguintes traços. Filho do Pai, Dado, Nosso Irmão, Pobre e Crucificado.
Há ainda uma diferença que não se pode omitir: a atenção dada à humani-dade de Jesus. O primeiro milênio cristão viveu principalmente a divindade de Jesus. A divindade de Jesus aparece bem patente no tímpano das grandes catedrais. Com S. Bernardo começa a impor-se a devoção à humanidade de Cristo, que já fora apontada por Orígenes, Santo Anselmo e S. Pedro Damião.
Esta diferença tem uma importância enorme e revolucionária. A devoção à divindade – Cristo Senhor, Cristo Rei, Cristo Pantocrator, Cristo Altíssimo, etc. – é a teologia da sociedade hierárquica e piramidal do tempo: Papa, Imperador, Senhor feudal, Clero, Povo. A devoção à humanidade faz germinar uma sociedade diferente, caracterizada pela igualdade. Lothar Hardick, em Francisco Símbolo da Mudança da Religiosidade da Idade Média, diz: ―Toda a estrutura do sistema vem do alto para baixo, de cima para a base. Cada superior atribui o feudo e o poder ao inferior. Todo o tecido social aparece com a sua origem em Deus, o Senhor Altíssimo. Para além do Papa e do Imperador, numa graduação descendente até ao último nível social. Encontramos esta mesma concepção também fora do direito feudal. Tudo está ordenado de acordo com o nível da sua relação interior com Deus. o Senhor Altíssimo. Com S. Bernardo, porém, a nova ideologia mantinha-se dentro do mundo monacal. S. Francisco, sem pensar em revoluções, levado pelo seu amor a Jesus, fez com que fosse surgindo no mundo uma nova relação entre os homens, não só de igualdade, mas de fraternidade.
Nós franciscanos temos, por isso, uma grande dívida aos homens do nosso tempo: oferecer-lhes este retrato de Jesus. Francisco conseguiu assimilá-lo, reproduzi-lo… na sua vida e na sua palavra. Foi pena que os seus filhos não lhe apanhassem o segredo: uns fixaram-se no serviço da Igreja; outros fixaram-se na sua santidade pessoal. E Jesus ficou na sombra. Estamos tentando recuperá-lo, mas, por enquanto, ainda não soubemos passar do estudo para a pregação e desta para a vida… porque não começou pelo coração. É um desafio que continua.

Nenhum comentário:

Postar um comentário