sexta-feira, 8 de junho de 2012

O canto de uma vida

Os últimos momentos da vida de Clara de Assis

 Irmã Catherine Savey, clarissa, publicou  na revista Èvangile  Aujourd’hui  (n.194. 2002, p.6-11)  um texto  descrevendo os  últimos  momentos  de Clara e tecendo considerações a respeito da cultura da morte da Idade Média.  Querendo continuar nossa preparação para o oitavo centenário da forma de vida de Clara acreditamos ser proveitosa para todos  a leitura deste texto.  Substancialmente é o texto de  Irmã Catherine, com algumas modificações e adaptações.
 Para melhor captar o alcance  da frase de Clara:  “Obrigado, Senhor, por me teres criado”, necessário se faz colocá-la no seu contexto histórico.  Ela  é a conclusão  das palavras de encorajamento que Clara dirige a si mesma antes de morrer.  A morte na Idade Média tinha um alcance sociológico considerável, tanto por ser frequente, como também devido ao número de  pessoas que cercam  o  moribundo e todo o quadro ritual que acompanha o final da vida. Os últimos dias de Clara  e o relato que deles fazem as testemunhas estão impregnados desta cultura.  As últimas palavras de Clara constituem o fecho  desta liturgia num canto de louvor  que resume e dá sentido a toda sua vida.
“Obrigado, Senhor, por me teres criado”. Muitos citam esta frase de Clara e,  as mais das vezes, é a única palavra da Plantinha que conhecem. Um pouco como aquilo que acontece  com a imagem de Francisco com os passarinhos. De acordo que tudo isso  respire a alegria, o frescor, o louvor do Criador. Tudo pode ser correto, mas o contexto dá um peso diferente aos propósitos de Clara.  Estamos praticamente com suas últimas palavras.  Necessário situá-las em seu contexto.
Na verdade, a frase é conclusão  da oração pronunciada por Clara no fim de sua vida.  A passagem se situa em capítulos que relatam os últimos dias de Clara e comporta dez parágrafos do total dos vinte e nove de sua biografia, o que denota a importância desses  últimos instantes para seu biógrafo Tomás de Celano.  Uma tal constatação pode talvez nos causar surpresa.  Os hagiógrafos da Idade Média, no entanto,  tinham consciência de que a morte é mais do que o fim da vida. É, na verdade, sua conclusão, o instante que dá sentido a toda uma existência.
Para melhor compreender as páginas que cercam a frase “ Obrigado, Senhor, por me teres criado” e assim tentar compreender a plenitude de seu significado  parece oportuno  ver como se situava a morte na cultura da Idade Média.
A morte na Idade Média
Na Idade Média, a morte não causava surpresa.  Ele acontecia com  muita frequência ques que se tornava alguma coisa familiar.  Mesmo se o século XIII  tivesse sido uma época de prosperidade em que as epidemias perdiam  a amplitude que ganhariam no século seguinte,  podemos  dizer que Clara e Francisco viveram um tempo em que a realidade da morte estava sempre presente.  Muitas crianças morriam muito cedo, não poucas mulheres  morriam no parto. As doenças também ceifavam  adultos na plenitude de suas forças e homens sucumbiam em plena juventude nos campos das guerras.  Além disso, a morte  não era um acontecimento  pessoal e escondido como acontece em nossos dias. Tinha um cunho eminentemente social.  O moribundo era cercado de  orantes  (carpideiras), os funerais se revestiam de solenidade, o falecido era confiado à intercessão dos monges.
Nessa época em que a fé era inquestionável, o problema  não consistia em saber se existia vida após a morte, mas se a pessoa que morria estava em condições de  entrar no paraíso.  A representações do juízo que adornavam os portais das catedrais  construídas nesta época testemunham esta preocupação pela salvação eterna.  A angústia  que brota da morte corporal era potencializada com o medo do castigo eterno.
Tendo em mente o que dissemos,  compreende-se  a importância dos últimos instantes, ocasião em que o moribundo pode se reconciliar com a misericórdia divina.  Aconselhava-se que, então, ele  fizesse “donativos” para a celebração de missas e a recitação de orações pelos religiosos, que ele  fizesse  confissão geral de sua vida, recebesse o viático, “alimento para o caminho” até o paraíso e penhor de vida eterna, de ser acompanhado ao longo da agonia da oração ininterrupta da família e de pessoas que acorriam para  prestar assistência ao que morria.
Se todas as condições mencionadas fossem cumpridas, poder-se-ia mesmo esperar que uma legião de santos e anjos  viesse escoltar o defunto, ajudando-o em sua ascensão ao céu e assim atravessando ileso o ar enfestado de demônios.
Assim sendo feito, os funerais podiam se dar.  Mesmo  para   os pobres  os funerais eram solenes.  Havia festa para celebrar na alegria o começo de uma nova vida.
O que acabamos de dizer parece distante da ação de graças de Clara.  Em tal contexto, no entanto, é que devemos situar esse obrigado pela vida que sai dos lábios da santa.
Os últimos dias de Clara
A “Vita”  de Celano e os testemunhos do Processo de canonização de Clara estão, com efeito, impregnados desta cultura.
Certamente, a morte era familiar a Clara e seus contemporâneos:
• As taxas  de mortalidade não deveriam ser menores em São Damião  do que em outros lugares. Clara assistiu algumas irmãs  em seus últimos momentos. O  Processo  faz alusão a várias dentre elas.
• O Ofício dos Defuntos era recitado frequentemente em São Damião,  talvez mesmo todos os dias como faziam os cistercienses, mas certamente durante vários dias após a morte de uma irmã. Ele lembrava que a presente vida nada mais do que uma etapa para a eternidade.
• As cartas de Clara dirigidas a Inês de Praga  falam de seu desejo ardente de ir ter com o Senhor no Reino.  Tal pensamento era mais do que uma simples manifestação de fervor. Era, de verdade, uma  real probabilidade diante  da prolongada doença de Clara.  A morte poderia ser realidade  a se concretizar num breve espaço de tempo.  Por duas vezes (em 1224 e 1251),  as irmãs temeram pelo pior.
No dia 5 de novembro de 1251,  a corte pontifícia  chegava a Óstia.  Depois se dirigiria  a Perusa. O cardeal Rainaldo, bispo de Óstia e cardeal protetor da Ordem, ficou sabendo do agravamento da enfermidade de Clara. Veio fazer-lhe uma visita, trazendo-lhe a comunhão. Clara pede que ele consiga do Papa a aprovação da Regra.  No ano seguinte, o Papa e os cardeais  passam de Perusa a Assis.  Clara está cada vez mais fraca. “Juntou-se nova fraqueza a seus membros sagrados gastos pela velha doença…” (Legenda, 41).  Inocêncio IV  foi visitar  a serva de Cristo  e deu-lhe a absolvição  plena e a graça de uma ampla bênção.  Depois, a Plantinha recebeu a comunhão das mãos do ministro provincial.
A morte não deveria tardar.  Clara não se alimenta mais e sofre.  As irmãs  fazem vigília noite e dia, sempre chorando.   Clara pede a presença de padres e de santos frades para que lhe leiam a Paixão. Frei Rainaldo, sem dúvida seu confessor, e os primeiros companheiros de Francisco: Junípero, Leão, Angelo de Rieti acompanham os lamentos das irmãs e em suas preces.  Cercada de tão ilustres personalidades, irmãos sacerdotes, foi a Frei Junípero,  sabidamente homem de coração extremamente singelo, que  Clara pergunta “se existe alguma coisa nova para aprender a respeito do Senhor”.  Essa insaciável Clara!  “Ele abriu  a  boca e deixou sair centelhas ardentes da fornalha do fervoroso coração.  E a virgem de Deus  ficou muito consolada com suas parábolas”.
Não restava a Clara outra coisa senão, uma vez mais, recomendar  às suas irmãs o amor pela pobreza e lembrar-lhes os benefícios com os quais o Senhor as havia cumulado.
Clara parece  preparada para a grande partida. Tem consciência de que em poucos minutos estará sozinha, face a face com seu Senhor.  Há muito tempo ela desejava  que esta hora chegasse. Como muitos que estão às portas da morte, como o próprio  Jesus, parece que ela se vê tomada de angústia e ela mesmo se exortava  à confiança.  A virgem muito santa, voltando-se para si mesma, diz baixinho à sua alma: “Vá segura, que você tem uma boa escolta pelo caminho. Vá, diz,  porque aquele que a criou também a santificou e guardando-a sempre como uma mãe guarda o filho, amou-a com terno amor.  E bendito sejais, Vós que me criaste”
O canto de uma vida
Para ganhar confiança, Clara  repassa interiormente todo o desenrolar de sua vida, dando-se sempre conta da  presença  constante e amorosa do Senhor ao seu lado:
Foi ele que a havia tecido no seio de sua mãe (Sl  138,13), e que  antes de seu nascimento  garantiu a Ortolana angustiada com a proximidade do parto com todos os seus eventuais perigos  que tudo sairia bem. Esse Deus havia garantido a sua mãe que a criança que ela carregava em seu seio irradiaria a luz de Deus  (Legenda 2).
• Foi o Senhor que a fizera nascer  para vida divina no dia de seu batismo quando recebeu o nome de Clara, lembrando a graça recebida por sua mãe.
• Ele é que a ensinou  a conhecer e a amar quando Ortolana falava dos relatos evangélicos, envolvidos nas lembranças de sua peregrinação à Terra Santa.
• Foi o Senhor que havia colocado bem cedo no seu coração o desejo de lhe pertencer de maneira total.
Redigindo seu Testamento, alguns  meses antes, Clara já havia  evocado o encadeado da história maravilhosa de sua via com Deus  com o intuito de fazer sua ação de graças:
• Foi o Senhor que a chamara para esta vocação, da qual ela conhece a grandeza ( Test.  2 e 19-21).
• Foi ele, pelo Espirito Santo, que inspirara a Francisco quando o santo restaurava a igreja de São Damião, a predição de que ali viveriam religiosas que  glorificariam a Deus ( Test. 11-14 e 31).
• Foi o mesmo  Senhor que iluminou seu coração  para que ela abraçasse essa forma de vida segundo o exemplo e as palavras de  Francisco ( Test  24 e 26).
• Foi ele que a levou a São Damião ( Test  30).
• Foi ele que lhe deu irmãs  e as multiplicou constituindo “este pequeno rebanho”  na Igreja (25, 31 e 46).
• Esse mesmo Altíssimo sempre  atendeu às necessidades das irmãs  encaminhando-lhes esmolas (Test  64).
•Ele foi o seu consolador, seu apoio, através de Francisco  que foi jardineiro e cuidador da pequena plantação (Test  38 e 48).
• Foi ele que, na pessoa de Francisco,  foi o seu caminho e a ensinou as sendas da pobreza e da humildade ( Test  57 e 74).
• Ele, finalmente,  resume Clara, que deu o começo, o crescimento e a perseverança ( Test  78).
Quando lemos  assim o Testamento  ficamos impressionados em constatar a que ponto o olhar de fé faz com que Clara descubra em tudo  a presença amorosa de Deus  que ela encontra  nos pormenores da vida de todos os dias.
Poucos dias antes ela havia recebido do Senhor um último presente: a tão desejada aprovação de sua  Regra pelo Papa Inocente. Durante toda a sua vida, Clara batalhara para conseguir o direito de seguir o Cristo na pobreza (toda a luta para conseguir o privilégio de não ter privilégios).  Insatisfeita com as regras que sucessivos papas  lhes atribuíam sem o privilégio da pobreza, ela própria redigiu sua forma de vida.
Irma Filipa diz no  Processo:  “Como desejava ardentemente que a regra da Ordem fosse bulada, mesmo que tivesse que colocar esta bula um dia e morrer no dia seguinte, assim lhe aconteceu que veio um frade com a carta bulada, que ela tomou reverentemente e, embora estivesse à morte,  colocou ela mesmo aquela bula na boca para beijá-la.”  (Proc  3,32).  A bula pontifícia data de 9 de agosto, antevéspera da morte de Clara.
Na verdade, Clara podia partir com toda segurança  porque aquele que a acompanhará para além das angústias da morte e a protegerá das últimas invectivas do demônio, seu guia para o caminho, foi Aquele que a criou, santificou, guardou, amou ao longo de sua existência com um terno amor, como uma mãe ama seu filho!
Num último suspiro, Clara resume o canto de sua vida:  Obrigado, Senhor, por me teres criado”
fonte: http://www.franciscanos.org.br/n/?p=10528
Frei Almir Ribeiro Guimarães

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