
Na efervescência da crise da modernidade ou pós-modernidade em que
vivemos, na mudança de época e de paradigmas, estonteados como a
pluralidade cultural e religiosa, na dependência das novas mídias, na
fragmentação das relações, na aceleração dos processos, nas múltiplas
necessidades instauradas pelo mercado, livres no pensamento, mas presos
num consumo escravizante, aqui estamos nós no novo patamar
civilizatório. Na esperança de que a política volte a ser o arranjo
existencial para o bem comum e não tráfico de influências; de que
escolas moldem um humano forte e não subjetividades fracas; de que as
religiões desçam da sedução hierárquica das fortes estruturas e voltem a
revelar a mais pura mística e o inspirador sopro do Espírito, aqui
estamos nós gritando que precisamos ser olhados com prioridade em nosso
ser pessoa, em nossa mais nítida identidade.
Na diversidade de pensamentos, no conhecimento interdisciplinar, no
pensar a existência de um modo holocentrado, de ações articuladas na
rapidez da comunicação, da globalização que traz o mundo para os
quintais e conviver com os problemas que antes estavam distantes, e que,
hoje, acotovelam-se na calçada de nossa casa; deste jeito cansado de
dormir anônimo e acordar célebre sonhando o bem-estar que vem do
econômico, do social, do político e cultural, ou talvez da mega-sena que
pagará nossas dívidas com os megaprocessos, aqui estamos nós
sobreviventes do novo século.
Não, não somos trágicos e nem cultores do pessimismo, mas amamos os
desafios de bons sonhos e excelente realidade. Questionamos para crescer
e sabemos que perguntas existenciais esquentam a busca. Temos um
cabedal de perguntas técnicas que, cada dia, vivem em nós e mostram como
isto funciona; porém, precisamos de perguntas comprometidas com o modo
de ser humano para, se não tivermos respostas, que ao menos apontem
caminhos de todos os porquês. Sabemos como fazer, nem sempre como Ser.
Na busca de sendas precisas, com o mapa orientador na mão e na mente,
queremos sair da imensidão da floresta e encontrar clareiras que
apontem: é por aqui! Nas luminosas clareiras, onde paramos para tomar
fôlego, como réstias indicadoras de luz, aparecem a mística, a
alteridade, o feminino, o diálogo Inter-religioso e a questão ambiental,
a grande síntese dos paradigmas do século XXI. Seguir as indicações
destes sentidos nos ensinará a ler, analisar, pensar, perceber e se
comprometer com o que se passa ao nosso redor e no mundo. É um conjunto
de setas que nos apontam a direção neste momento histórico atual. Não
podemos caminhar sozinhos, precisamos olhar os modelos vivos, os modelos
referenciais de ontem e de hoje; e, por isso, vamos sentar aos pés das
testemunhas da humanidade, do século XII ao século XX, e escutá-las.
Testemunhas são parâmetros para elevar o nível da nossa existência e
convocar ao seguimento e imitação. Quem tem modelos de referência, tem
futuro. Nosso tempo tem professores demais e poucos mestres. Professores
trazem conhecimento e ensinamento, os mestres trazem a compreensão da
vida.
Vamos ouvir, ver e reler as testemunhas de ontem, humanos plenos e,
por isso, sempre atuais, para que possamos reencantar a vida,
redescobrir valores, acertar o ritmo de nossos passos no caminho seguro,
e assim purificar as nossas escolhas. Voltemos aos mestres! Os novos
gurus cobram, os mestres estão na gratuidade da partilha. Hoje, nós, que
pagamos para ouvir e escutar, vamos ouvir mais a terapêutica
transparência das testemunhas. São nossos exemplos os arquétipos, o
resgate dos valores neste nosso atual processo civilizatório. Nós, que
gritamos e lutamos pelo que estamos perdendo: espaços e espécies, da
falência dos biomas à falência do caráter, que salvamos orquídeas,
capivaras e ararinha azul, mico-leão dourado e prédios decadentes,
devemos perguntar: e o verdadeiro humano? Será que não é uma espécie em
extinção?
Em meio a isso tudo, renasce sempre a figura frágil e forte, santa e
simpática, medieval e moderna, despojada e atraente, heroica e
holística, poética e mística, aglutinadora e provocadora, a sempre
presente e profética vida de São Francisco de Assis. É sobre ele que
discorre esta despretensiosa reflexão.
FRANCISCO E O ARQUÉTIPO DA SÍNTESE
Francisco de Assis nasce em 1182, na atraente cidade de Assis, na
região da Úmbria, Itália. É filho de Pedro Bernardone, rico comerciante,
mercador, homem determinado, que sonhava para o filho as glórias da
Cavalaria Medieval e o salto para o status da alta nobreza. De seu pai,
Francisco herdou o nome, em homenagem à França, que era o centro
cultural e econômico do século XII, e também o espírito de liderança,
ambição e rigor consigo mesmo. Da mãe, Joana de Bourlemont, uma dama
francesa da região da Picardie, norte da França, conhecida em Assis com o
cognome de Dona Picà (a madame que veio da Picardie), Francisco recebeu
esmerada educação, a nobreza de costumes, os rudimentos da fé e da
língua francesa. Pelos anos 1201 a 1205, ele vai dando um salto em sua
vida. Inicia um lento e gradual processo de conversão, não apenas a
mudança de mentalidade, mas a radical mudança de lugar. Ele é um
convertido e nisto se enquadra a sua forte personalidade, a sua
conversão não é um ardor momentâneo, mas sua perene identidade de busca.
Sai do espaço da casa e dos projetos de seu pai para ser um humano
despojado que não queria ter nada de específico a não ser dispor-se a
viver algo de grandioso, algo que fizesse dele um homem realizado. O
pai, dono de uma loja de tecidos e uma tinturaria em Assis, queria que
ele conhecesse o sucesso do mercado. Francisco não quer o sucesso, quer a
realização. O sucesso é efêmero, a realização é para sempre.
Num determinado momento de sua vida, tira as suas roupas em praça
pública e, sozinho, nu, livre e feliz com sua decisão empreende um
caminho de ir à dimensão originária do verdadeiro humano: buscar o
espírito do Senhor e o seu santo modo de operar; fazer valer os desejos,
ter uma vida orientada por uma forte busca, dizendo para si mesmo e
para quem quisesse ouvir: “É isto que eu quero, é isto que eu procuro, é
isto que eu desejo de todo coração!” Despojou-se das vestes e vestiu-se
da simplicidade, faz a medieval investidura: colocar na vida a
adequação que a torna mais leve. Não mais a armadura de guerreiro que
sonhava seu pai, mas a coragem e fortaleza, a fidelidade e lealdade, a
obediência dos cavaleiros. Toma por vestimenta a túnica dos camponeses,
dos mendigos e penitentes, tornando-se assim um mendicante de sentidos.
Na cidade foi amado e incompreendido, abraçado e apedrejado, este limiar
entre os que o consideram um santo ou um louco. Francisco é um louco
apaixonado pela sua identidade: ser arauto do Grande Rei, fazer o Amor
ser amado e ir onde ninguém queria estar.
Renunciou às coisas que a casa de Bernardone oferecia, porque estava
na utilidade serviçal das coisas e não no domínio sobre elas. Para nós, o
céu é um lugar; para Francisco é Alguém. Seu pai queria que ele fosse o
administrador de seus bens, do patrimônio e moedas. Francisco espalhou o
dinheiro do pai nas tabernas e boêmia, nas esmolas e cortesia.
Francisco não tinha medo do dinheiro, mas sim do abuso e da escravidão
que ele pode criar. Seu jeito convida as pessoas de seu século a um
rigoroso exame de consciência: que o dinheiro que contagiou a passagem
do feudalismo às novas “comunes”, que sempre é importante para as
necessidades passageiras, não bloqueie os desejos perenes de felicidade.
Ele ensinou a dividir prodigamente; pois quando a humanidade não
divide, experimenta estas crises cíclicas de ter muito e não ter nada.
Francisco preferiu viver a serenidade do apenas necessário que nunca
termina. Francisco não amontoou dinheiro para não amontoar poder.
Francisco não é um cortesão de ricos e nem adulador de pobres. Não
considera a situação através do prisma de uma classe social, de um
partido político, ou de uma ideologia; ele pensa, vive, age e julga, vai
para junto, a partir do modelo do Evangelho que o inspira. O anúncio
levado aos simples, pobres e pequenos faz dele a Boa Nova entre os
desafortunados de se tempo. Abraçar, beijar e curar feridas de leprosos
era deixar-se beijar por uma Inspiração, que se tornou práxis. Ele não é
um revolucionário preso a uma barulhenta militância, mas instaura a
verdadeira revolução dos autenticamente convertidos: de uma súbita
mudança pessoal para uma concreta transformação do comum. Hoje, há
organizações, governamentais ou não, que querem a obra, mas não o
doente; querem a creche, mas não a criança. Francisco abraçou
prioritariamente o humano desesperançoso e descuidado.
Ele não deixou o mundo, mas mudou completamente o seu modo de estar
no mundo. É um santo de legenda, não somente uma legenda humana
medieval, mas uma legenda divina encarnada a nos ensinar que é preciso
submeter o corpo da existência que eu sou às exigências do Espírito. Foi
à comunidade humana e disse: “Pace bene, buona gente! Eu estou muito
bem entre vocês!” Foi o seu primeiro gesto de generosa atenção e mostrou
que o estar no meio de todos de um modo disponível já é um sinal da sua
pobreza.
No título desta reflexão o chamamos como ele é mundialmente e carinhosamente conhecido, IL Poverello, pois
é o santo da pobreza e dos pobres. Mas que pobreza é esta? Não é o
conceito dos que estão fora da categoria econômico-financeira, mas sim a
coragem de colocar tudo em comum. Isto mesmo! Ser pobre no sentido do
Evangelho é compartilhar. É se afastar de toda forma de egoísmo para
dividir o eu, as ideias e o bolso. A renúncia de si mesmo para a
conquista de uma liberdade interior que o faz livre, leve, solto, mão
aberta e matinal. Francisco filtra a vida cristã a seu modo e a modo do
Mestre Jesus, que na pobreza material do dar e receber; e na pobreza
interior que é ser desapropriado, humilde e simples, vão gerando o
Reino. Pobreza é a não posse; é aquela ousadia de abandonar a casa de
Pedro Bernardone com toda sua segurança para confiar-se à Fraternidade.
Pobreza não é renúncia forçada das coisas, mas restituição voluntária
de tudo ao Único Dono. Francisco nos ensinou que pobreza é encontrar a
verdade de nós mesmos e, com isso, possuir a Única Riqueza que satisfaz o
coração humano: Amar e ser Feliz!
Ele é o Penitente. O que é penitência no sentido medieval? Não é
castigo, condenação ou gesto externo de mortificação, abstinência,
jejum, dieta, vigílias, privação do agradável, infligir dor corporal.
Penitência verdadeira é eliminar excessos: de egoísmo, ostentação,
comida, apegos materiais, palavras banais, ansiedade, impaciência,
intolerância. O verdadeiro penitente é aquele que cada dia pergunta: que
está exagerado em mim? E vai aparando as arestas do que tem de sobra,
do que tem de mais negativo, para chegar à medida exata do coração. E
qual é a medida exta do coração? Teologicamente é voltar cada dia aos
caminhos do Senhor; eticamente é fugir de qualquer possibilidade do mal;
afetivamente é amar intensamente, incondicionalmente e fazer
continuamente o bem sem importar a quem. Ele é uma moderação contida,
uma sensibilidade equilibrada, um espectador atento do belo
espetáculo da vida. A penitência de Francisco não era sair fazendo
exageros, mas estar ao lado dos que sofriam, comer o que o povo come.
Quando afirmamos que ele é o Arquétipo da Síntese é porque a sua
mística é simples: ele é um homem encarnado até o pescoço no infinito;
em sua vida o finito evoca o infinito. Nele a alteridade é assim: ser
fraterno sempre! Francisco e seu grupo primitivo de frades não fizeram
fraternidade através da simpatia ou empatia pessoal; fizeram da
fraternidade uma escuta comum da vontade do outro e uma convocação
exigente para viver a beleza, a dignidade, as diferenças e os limites do
outro. O feminino emergiu nele porque Maria, a Mãe Divina, e Clara de
Assis o inspiraram a pensar assim: “Francisco, se você quer ser a
sabedoria de um pobre, viva no vigor do Espírito, na Sensibilidade Vital
da percepção que penetra através da superfície da realidade e acolhe a
vida com admiração, reverência, coração, ternura e amor”. O diálogo
inter-religioso é sua ida ao Oriente, conversar com o sultão no
diferente da crença e no igual da mesma fome e sede de fé. O princípio
ecológico de Francisco é a capacidade de maravilhar-se diante da
grandeza das obras da Criação e a atuação do Divino Criador nos detalhes
de tudo.
Ele é um itinerário espiritual e um humano evoluído, uma convocação
para um tipo melhor de humanidade a qual todos somos chamados. Sua
atração nos tempos de hoje é que ele, cada vez mais, lido, conhecido,
reverenciado e buscado contribui para o ressurgimento de um novo tipo de
ser humano.
FRANCISCO E A MÍSTICA
Mística é a introdução nos mistérios do sagrado e da vida, é estar
imerso na vida com as motivações mais profundas. Francisco, ao dispor-se
à vida, ao buscar o que ele mesmo não sabia, deixou-se conduzir pelo
Senhor, deixou-se conduzir pelos confrontos e foi conduzido ao que
procurava. Diz ele em seu Testamento: “Foi assim que o Senhor concedeu a
mim, Frei Francisco, começar a fazer penitência: como eu estivesse em
pecados, parecia-me sobremaneira amargo ver leprosos. E o próprio Senhor
me conduziu entre eles, e fiz misericórdia com eles. E afastando-me
deles, aquilo que me parecia amargo se me converteu em doçura de alma e
de corpo”. Mística também significa guardar um segredo, recolher-se
para colher o melhor; entrar na intimidade de Deus, de si mesmo, da
vida. Francisco, quando olha de um modo intenso para si mesmo, é porque
primeiro olhou para Deus; saiu do rumor da cidade e recolheu-se nas
cavernas, florestas e eremos; para ele, os eremitérios não eram lugares
para ficar, mas para sair. Chegar ali, abastecer-se de silêncio, prece e
recolhimento e sair. O eremo não acentuava um isolamento, uma
alienação, uma fuga da convivência, um individualismo, mas um
preparar-se para a fraternidade, para a comunidade. Hoje, muita gente
fracassa socialmente porque não tem o recolhimento da profundidade
pessoal.
Mística é o húmus que faz desabrochar, o oculto que desvela a
intimidade que transparece. É beber na fonte de toda inspiração, ter as
mais fortes convicções. A sua vontade bem trabalhada é o fio condutor de
sua vida e que coloca a sua vida em movimento; a sua mística é a
energia de amor e fé que passa por dentro deste fio; é uma energia
divina que acende e faz com que o mundo inteiro se ilumine com a
presença de Deus em Francisco.
Francisco não criou uma escola teológica, mas sua teologia é uma
descoberta feita na prática dos divinos mistérios que acompanham o seu
itinerário. A sua mística é mergulhar no Deus Altíssimo. Do Beato
Egídio, companheiro de São Francisco e grande contemplativo, temos a
afirmação de uma profundidade e atualidade extraordinária: “O homem faz
de Deus uma imagem segundo a sua compreensão, mas Deus é sempre tal e
qual”. A partir deste Dito de Frei Egídio, podemos dizer da
singularidade de São Fran cisco e sua experiência de Deus: ele deixa
Deus ser Deus. O Santo de Assis é, sobretudo, conhecido como o amante da
Senhora Dama Pobreza, como o cantor das belezas criadas, como o homem
evangélico por excelência, como o verdadeiro frade menor, mas nos seus
Escritos e nas Fontes Franciscanas ele é apresentado como o “Servo de
Deus”; e entre os seus primeiros biógrafos encontram-se numerosas
afirmações que centralizam a experiência primária de Francisco como
experiência de Deus.
Francisco transferiu a sua relação com Deus a um plano de concretude
transparente e intensamente vivida. Hoje, ele ainda é qualificado como o
“Peregrino do Absoluto”. Vejamos as evidências da mística de Francisco
nestes relatos de seu biógrafo Tomás de Celano: “Francisco, o homem de
Deus, corporalmente distante do Senhor, lutava para manter o espírito
presente no céu; e, já feito concidadão dos anjos, somente a parede da
carne o separava. Toda a sua alma tinha sede de seu Cristo, ele lhe
dedicava não só todo o coração, mas também todo o corpo. Relatamos umas
poucas maravilhas das suas orações a serem imitadas pelos pósteros, o
quanto vimos com nossos olhos, conforme é possível transmitir a ouvidos
humanos.
Fazia de todo o tempo um ócio santo para gravar a sabedoria no
coração, para parecer que não fracassava, caso não progredisse. Se por
acaso as visitas dos seculares ou quaisquer negócios o surpreendiam,
interrompendo-o antes de terminar, ele voltava novamente às realidades
interiores. Na verdade, o mundo era insípido para quem se alimentava da
doçura celeste, e as delícias divinas o fizeram delicado para as
grosserias dos homens. Para não estar sem cela, fazia do manto uma
pequena cela. Muitas vezes, faltando-lhe o manto, para não revelar o
maná escondido, cobria o rosto com a manga. Sempre interpunha algo aos
presentes, para que não conhecessem o toque do esposo, de modo que
inserido entre muitos no estreito espaço de um navio, rezava sem ser
visto. Finalmente, não podendo nada destas coisas, fazia do peito um
templo. O esquecimento de si e a absorção em Deus fizeram desaparecer
tosses e gemidos, respirações duras e gestos externos”.
“Estas coisas em casa. Mas, rezando nas florestas e nos lugares
solitários, enchia os bosques de gemidos, banhava os lugares de
lágrimas, batia com a mão no peito e aí, encontrando como que um
esconderijo mais oculto, conversava com palavras com seu Senhor. Aí
respondia ao Juiz, suplicava ao Pai, conversava com o Amigo, divertia-se
com o Esposo. Na verdade, para tornar todas as medulas do coração um
holocausto múltiplo, propunha de maneira múltipla diante dos olhos
Aquele que é Sumamente Simples. Muitas vezes, com os lábios imóveis,
ruminava interiormente e, arrastando para o interior as realidades
exteriores, elevava o espírito às superiores. Assim, totalmente
transformado não só em orante, mas em oração, dirigia toda a atenção e
todo afeto a uma única coisa que pedia ao Senhor. De quanta suavidade
crês que ele estava repleto nestas coisas? Ele o soube, eu, pelo
contrário, apenas admiro. Ao que faz a experiência é dado conhecer, aos
que não experimentam não se concede. Deste modo, fervendo intensamente
no fervor do espírito, e todo o aspecto exterior e toda a alma
completamente derretida, já morava na suprema pátria do Reino Celeste”.
Francisco sabia perfeitamente que “O Pai habita em luz inacessível, e
é Espírito, e ninguém jamais o viu”. Deus é um ser misterioso e
transcendente e assim se apresenta na experiência de Francisco. Como
homem místico ele é assinalado com a experiência fortíssima do Deus
Mistério, e a utiliza, assim chamada mística da teologia negativa, para
dar uma primeira categorização da transcendência divina: Deus é
inenarrável, inefável, incompreensível, ininvestigável, imitável,
invisível. É um Deus fora de qualquer conceito, incompreensível no plano
da introspecção intelectual.
O que o encanta em Deus é o modo como Ele se dá em sua infinita
generosidade. Em Deus, Francisco vê o Pobre de todos os pobres porque
faz esparramar a sua bondade sobre todas as coisas. Em Deus ele encontra
o primeiro fundamento de sua vida de pobreza e serviço. Francisco nos
ensina que servir é algo divino porque o próprio Deus é o grande Servo
do universo. Na bondade de Deus, Francisco aprende a ser um servo bom,
um obediente servo que admira a grandeza de seu Senhor. A bondade vem da
obediência e da fidelidade. Servo que não é bom não dá conta. Ser servo
não é só ter a intensão de servir, tem que servir bem e na inspiração
da bondade do Senhor. O jeito da vassalagem medieval não se justifica
pela intenção, mas pelo trabalho de ser bom e leal. Francisco nos evoca
que, um raio apenas do Irmão Sol, mostra a bondade de Deus em nos
servir.
Em suas preces a relação com o Senhor é intensa, a sua oração se
alimenta da real presença de Deus e não de sentimentalismo. A real
presença de Deus traz-lhe vestígios que devem ser imitados. Para
Francisco, Deus, ao se manifestar, não se revela como majestade, força,
doador supremo, enfim como ser supremo; mas sim como Servo cheio de
benignidade, bondade, gratuidade, graça, serviço. Deus é o Servo de toda
humana criatura e de todos os seres. “Meu Deus e meu Tudo!”, assim
exclama, admira, contempla, repete noite adentro, horas inteiras,
invoca… adensa a sua experiência em saborear a presença palpável do
Sagrado.
A mística de Francisco é seu total envolvimento com Jesus Cristo, o
Deus Encarnado. Para ele, Jesus Cristo é o Deus Homem, Servo e Senhor;
vai acolhendo Jesus Cristo progressivamente como um Vivente, uma
imitação perfeita, uma prática, tornou-se a arte de viver Cristo. O
Senhor Jesus e as Palavras de seu Evangelho são o seu vivo itinerário. É
o Cristo do Presépio, da Cruz e do Altar.
Sua paixão pela Encarnação fez com que ele representasse, pela
primeira vez, na noite de Natal de 1223, no bosque de Greccio, a cena do
Nascimento do Senhor. No seu ímpeto místico vê, contempla, refaz. Com
esta encenação do presépio, ele quer nos mostrar que entrar na Palavra é
entrar na imagem. Ele vê a grandeza e a onipotência de um Deus se
revelando na figura de um Menino.
Contempla com profundo afeto o Verbo Encarnado que se fez uma simples
criança pobre, por amor. Francisco tem uma relação forte com o
Evangelho, ali não está simplesmente um texto, mas Alguém falando. Diz
Tomás de Celano: “A mais sublime vontade, o principal desejo e supremo
propósito dele era observar em tudo e, por tudo, o santo Evangelho,
seguir perfeitamente a doutrina e imitar e seguir os passos de Nosso
Senhor Jesus Cristo com toda vigilância, com todo empenho, com todo
desejo, da mente e com todo fervor do coração.
Recordava-se em assídua meditação das palavras e, com penetrante
consideração, rememorava as obras dele. Principalmente a humildade da
encarnação e a caridade da paixão, de tal modo ocupavam a sua memória
que mal queria pensar outra coisa. Deve-se, por isso, recordar e
cultivar em reverente memória o que ele fez no dia do Natal de Nosso
Senhor Jesus Cristo (…) Lembrar o Menino que nasceu em Belém, os apertos
que passou, como foi posto num presépio, e ver com os próprios olhos
como ficou em cima as palha, entre o boi e o burro”.
Representar ao vivo a narração evangélica é ir para dentro da
paisagem do mistério da Encarnação. É algo intensamente forte e vivo:
“Muitas vezes, quando queria chamar o Cristo de Jesus, chamava-o também,
com muito amor, de Menino de Belém, e pronunciava a palavra “Belém”
como o balido de uma ovelha, enchendo a boca com a voz, mais ainda com
doce afeição. Também estalava a língua quando falava “Menino de Belém!”
ou “Jesus”, saboreava a doçura dessas palavras” . “Francisco sabe que o
caminho da Encarnação é um caminho de contradição. Mas sabe que é o
único. Daí aquele cena extraordinária em Greccio. Ele quer evocar os
incômodos e sofrimentos que Jesus sofreu, desde a infância, para nos
salvar. Deus veio pobre entre os pobres” .
Da manjedoura à cruz. O humilde está nos lugares fora do comum
considerado normal. Ninguém quer a cruz, somente um Deus abraçou-a pra
valer. A vida de Francisco foi ter paixão pela Paixão do Senhor. A
admiração é tanta que ele olha para a cruz e não é capaz de proclamar o
sofrimento. Entra no sofrimento do Amado que consegue ter brilho nos
olhos e cantar. O primeiro contato de Francisco com a cruz foi nas
ruínas da capela de São Damião. Um Crucifixo bizantino com o Cristo vivo
e de olhos abertos. Diz a Legenda que ali a Cruz falou: “Vai,
Francisco! Não vês que a minha casa está em ruínas? Reconstrói a minha
casa!”.
A cruz foi a única coisa que ele encontrou em pé em todo
desmoronamento. Ele chegou a São Damião, em 1205, entre dúvidas,
enigmas, crises e incompreensões. Diante da cruz, descobre que uma
vontade bem trabalhada dá coisa grandiosa. Com ele aprendemos que cruz
não é fim, mas, sim, fonte. É preciso encontrar, em meio a ruínas, o
nosso chão, ouvir uma inspiração e colocar tudo novamente em pé. De São
Damião ao Monte Alverne, onde ele recebe as marcas do Crucificado, o
Amor o marca definitivamente. Traz na própria carne as marcas do
Iniciado: o Amor tomou forma em seu corpo! Em São Damião, ele contempla e
vê o Crucificado; no Alverne, ele entra em sua Carne Sagrada. Cruz não é
para ver, mas para entrar dentro do mistério. Por não aguentar isso a
tiramos das paredes.
Quando somos capazes de abrir o coração para o sofrimento de alguém,
algo começa a falar dentro de nós. Ao abraçar o leproso, ele tem um
encontro transformante. Amor pede encontro, pede aproximação, união,
pede que se toque os dedos nas chagas. Temos que ser marcados pelo Amor,
mesmo nos momentos mais difíceis. Tudo o que aconteceu na vida de
Francisco foi de grande intensidade. Ele, com a as suas chagas iguais a
de Cristo, está nos dizendo que também temos que ser estigmatizados.
Não existe ninguém que não tenha sido marcado pelo Amor sem um mínimo
de sofrimento. Não devemos ter medo de abraçar o sofrimento, ele nos
leva a outros horizontes. Não se chega ao Monte Alverne para ficar, mas
para voltar e dizer a todos que quanto mais alguém vive uma profunda
experiência afetiva espiritual, mais se torna presente. Em São Damião,
Francisco viu o rosto do Amor; na Porciúncula, lugar da Fraternidade,
ele viu o Corpo do Amor; no Monte Alverne, ele viu onde o Amor é capaz
de chegar: morrer por amor, se for preciso!
Na Eucaristia, Francisco contempla um Deus que se dá como alimento.
Um Deus que nos abraça por dentro, com um amor visceral. É preciso
alimentar-se de uma força espiritual. Diz em seus Escritos:
“Diariamente, ele vem a nós em aparência humilde; diariamente, ele desce
do seio do Pai sobre o altar nas mãos do sacerdote.
E, assim, como ele se manifestou aos santos apóstolos na verdadeira
carne, do mesmo modo ele se manifesta a nós no pão sagrado. E, assim,
como eles, com a visão de seu corpo só viam a carne dele, mas
contemplando-o com olhos espirituais, criam que ele é Deus, do mesmo
modo também nós, vendo o pão e o vinho com os olhos do corpo, vejamos e
creiamos firmemente que é vivo e verdadeiro o seu santíssimo corpo e
sangue. E, desta maneira, o Senhor está sempre com seus fiéis, como ele
mesmo diz: Eis que estou convosco até o fim dos tempos!” (14).
A Eucaristia é um encontro de corpos, o meu corpo vai ao encontro do
Corpo do Senhor; neste momento, enraizado na terra ele abraço o céu. O
Corpo do Senhor é a dádiva que cada dia o céu nos proporciona. É o livre
doar-se do sustento de corpo e alma. Numa de suas Cartas, Francisco
diz: “Pasme o homem todo, estremeça o mundo inteiro, e exulte o céu,
quando sobre o altar, nas mãos do sacerdote, está o Cristo, o Filho de
Deus vivo. Ó admirável grandeza e estupenda dignidade! Ó sublime
humildade! Ó humilde sublimidade: o Senhor do universo, Deus e Filho de
Deus, tanto se humilha a ponto de esconder-se, pela nossa salvação, sob a
módica forma de pão! Vede, irmãos, a humildade de Deus e derramai
diante dele vossos corações; humilhai-vos também vós, para serdes
exaltados por ele. Portanto, nada de vós retenhais para vós, afim de que
totalmente vos receba aquele que totalmente se vos oferece” .
FRANCISCO E A ALTERIDADE
Francisco, ao viver de um modo intenso a fraternidade, antecipa
paradigma da alteridade. O que é alteridade? É levar demais em conta a
grandeza e a dignidade da pessoa, criar relacionamentos fecundos de
amizade, de convívio, de coexistência. A experiência alteritária clama:
você é a soma de muitos; não é a aniquilação do “ego”, mas uma grande
ampliação e complementação. A Legenda Franciscana, chamada o Espelho da
Perfeição, em seu conhecido e atraente capítulo 85, narra que, quando
perguntaram a Francisco o que seria um verdadeiro frade menor, ele
responde que, “transformados os frades pelo ardor do amor e pelo fervor
do zelo que tinha pela perfeição deles (…) pensava muitas vezes dentro
de si sobre as qualidades e virtudes que deviam ornar um bom frade
menor. E dizia que seria bom frade menor aquele que tivesse a vida e as
qualidades destes santos frades (…)”
E a Legenda continua elencando, de um modo belíssimo, que deviam
reunir a fé de Frei Bernardo; a simplicidade e a pureza de Frei Leão; a
cortesia de Frei Ângelo, que foi o primeiro cavaleiro a entrar na Ordem e
que era ornado de gentileza e benignidade; o aspecto gracioso, o senso
natural e a conversa agradável e devota de Frei Masseo; a mente elevada
em contemplação de Frei Egídio; a virtuosa e constante oração de Frei
Rufino; a paciência de Frei Junípero; o vigor corporal e espiritual de
Frei João das Laudes, que ultrapassava a todos com a força física; a
caridade de Frei Rogério e a solicitude de Frei Lúcio.
Alteridade e o encontro perceptível e sensível com as qualidades do
outro, é fazer existir e acontecer o “tu” muito mais do que o “eu”. É
olhar a outra pessoa de um modo que ela seja, exista, aconteça em sua
diferença e singularidade. É desapegar-se de qualquer superioridade e
status. A minoridade é a grande virtude franciscana da alteridade, pois é
a renúncia do poder de quem tem, de quem sabe e de quem pode, para
viver a reciprocidade nas relações. É um encontro de afeto e um
transformar a convivência numa causa, num projeto, num ideal, numa obra
que respire valores e buscas comuns. É olhar o outro como um espelho,
como relata a Legenda acima citada. Especular é olhar alguém a partir do
reflexo de algo maior. Permitir que o outro se revele em sua
identidade. Retomar as mais belas amizades que são a concretização da
mais pura alteridade.
Hoje vivemos a grande crise da alteridade por causa da perda do
sentido dos outros. Há a fragmentação da família, a desatenção a idosos,
enfermos e crianças, a intolerância, impaciência, nacionalismos e
regionalismos que vêm à tona, preconceitos, exclusão, segmentação de
linhagens, indiferença para com os indígenas, xenofobia e outras
atitudes de indiferença, agressão e morte.
Para Francisco, nada do que era humano era estranho; ele recuperou a
pertença ao grupo humano e ao convívio com todos os seres. Para ele,
mais importante do que viver é conviver.
É preciso intuir com ele que a fraternidade é o grande princípio para
novamente estabelecer uma nova humanidade. Com o seu grupo primitivo,
que na intensa vivência fraterna são modelos de alteridade, aprendemos a
não viver no grupo da mediocridade e da banalidade, mas sim dos que têm
o vigor do espírito para encontrar o sentido de estar juntos.
Vejamos o que diz uma Legenda Franciscana: “Quando voltavam a se ver,
enchiam-se de tão grande prazer e de alegria espiritual que não se
recordavam de nada da adversidade e, mormente, da pobreza que padeciam
(…) Amavam-se uns aos outros com profundo amor, serviam-se e nutriam-se
mutuamente, como uma mãe serve e nutre seu filho. Tanto ardia neles o
fogo da caridade que lhes parecia fácil entregar seus corpos, não
somente pelo nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas também um pelo
outro, de boa vontade (…). Estavam arraigados e fundados no amor e na
humildade, e um reverenciava o outro como se fosse seu senhor. Quem
entre eles sobressaía pelo ofício ou por qualidade parecia mais humilde e
desprezível do que os outros. Igualmente, todos se dispunham totalmente
a obedecer: quando se abria a boca de quem ordenava, imediatamente
estavam preparados seus pés para andar e as mãos para trabalhar.
Qualquer coisa que lhes era ordenada julgavam que lhes era ordenada
segundo a vontade do Senhor; e, por isso, era-lhes suave e fácil
executar tudo”.
FRANCISCO E O FEMININO
Francisco de Assis, há oito séculos, usava a seu modo, uma linguagem
de gênero. É o seu jeito de lembrar, como um bom medieval, que tudo o
que acontece é a vida também nos exercitando. Usa palavras para
instaurar consciência e prática. Gostava de dizer Irmã Lua, Irmãs
Estrelas, Irmã Água, Irmã Clara, Irmã e Mãe Terra. De onde vem esta sua
fala ritual e natural?
Da presença em sua vida de três grandes mulheres: sua mãe Jehanne de
Bourlemont, Dona Picà; a Virgem Maria, a Mãe Divina e Clara de Assis.
Estas três mulheres ensinaram para ele que receber amor exige muita
humildade, muito acolhimento, muita confiança. É ir do simples para o
grande, do pobre ao coletivo.
A pobreza de Francisco tem muito a ver com a grandeza do amor que
recebeu, porque ser pobre é deixar uma obra maior de amor aparecer.
Estas três mulheres são a sua fonte de amor, o feminino que o molda e o
leva a escolher um Único Amor para ser livre.
Em sua mãe biológica, Jehanne de Bourlemont, a Dona Picà, Francisco é
educado na ternura e com muito carinho. Ser amado e educado assim gera
pessoas normais. Quem é Dona Picà? Como já citamos, o nome original da
mãe de Francisco, no francês provençal é Jehanne, Giovanna em italiano e
Joana em português. Ela nasceu na região da Picardie, norte da França.
Os Bourlemont trazem o sobrenome forte das famílias típicas deste lugar,
com seu passado nobre e vigoroso.
A grande heroína e santa francesa, Jeanne d’Arc, tem raízes na
Picardie e, provavelmente, é descendente dos Bourlemont. Ainda criança,
Jehanne muda-se com a família para a região da Provence e vai se
estabelecer em Tarascon. Numa típica capela medieval de Tarascon, do
século IX, dedicada a São Vitor, que a mãe de Francisco foi batizada.
Ali viveu, casou-se, ficou viúva e conheceu Pedro Bernardone, o pai de
Francisco, que a leva para Assis. Em Assis, esta nobre e fina mulher
não passa despercebida. É querida pelos assisienses, que na dificuldade
de pronunciar o seu nome francês, carinhosamente o abreviam chamando-a
como Dona Picà. Ela ensinou a Francisco o francês com dialeto provençal,
cantou com ele as Cantiga de Amor, as Cantigas de Amigo e Canções de
Gesta da nobre Cavalaria Medieval. Percebeu os dons naturais e as
virtudes conquistadas de Francisco. Deu a ele a fé e trabalhou suas
qualidades.
Toda virtude natural bem trabalhada leva à perfeição. Como o pai,
devido ao seu ofício de mercador, vivia muito ausente de casa, Dona Picà
está sempre mais próxima ao filho e passa para ele o “esprit de
finesse”, a alegria, a positividade do querer. A maturidade afetiva dada
pela mãe influenciou a sua liberdade interior. Diz Tomás de Celano: “E
aconteceu que, como seu pai por causa familiar urgente se tivesse
ausentado por algum tempo de casa e como o homem de Deus permanecesse
algemado na prisão da casa, sua mãe, que ficara sozinha com ele em casa,
não aprovando o ato de seu marido, consola o filho com palavras ternas.
E ao ver que não podia chamá-lo de volta de seu propósito, suas
entranhas maternas se comoveram para com ele e, tendo quebrado as
cadeias, permitiu que ele partisse livre”.
Em Maria, a sua Mãe Divina, ele vive o encantamento de saber que ela é
a primeira casa que hospedou o Senhor. Ele professa a fé em Maria como a
primeira seguidora de Jesus Cristo, aquela que traz para sempre o
Senhor para a história, a Esposa do Espírito Santo, a Virgem feita
igreja, ela sozinha é a igreja em perfeição. O que ele escreve de melhor
para a Mãe de Deus é esta Saudação: “Ave, Senhora Rainha santa, santa
Maria mãe de Deus, virgem feita igreja e que do céu foste escolhida pelo
santíssimo Pai, a quem ele consagrou com seu santíssimo e dileto Filho e
com o Espírito Santo Paráclito, e em quem esteve e está toda a
plenitude da graça e todo o bem! Ave, palácio do Senhor! Ave,
tabernáculo do Senhor! Ave, casa do Senhor! Ave, vestimenta do Senhor!
Ave, serva do Senhor! Ave, mãe do Senhor, e vós santas virtudes todas,
que pela graça e iluminação do Espírito Santo sois infundidas nos
corações dos fiéis para os tornardes de infiéis em fiéis a Deus!”.
Em Clara de Assis, a mãe cuidadosa do Mosteiro de São Damião, ele
aprende que não basta seguir o Senhor, tem que se apaixonar por ele;
seguimento é enamoramento. Clara recolhe-se contemplativa em seu
mistério de esposa do Rei. No silêncio de São Damião, Clara escolhe o
Único Amor para ser livre no Espírito. Assim como Maria, Clara se
esconde na Eucaristia do Filho e vai ser a guardiã da Inspiração,
vivendo para sempre aos pés do Crucifixo de São Damião. Uma escolha
radical e total para viver a virgindade de Maria. No recolhido do
claustro, o Verbo Encarnado é gerado cada dia e sua Palavra ressoa nas
preces de quem guarda o Segredo. É um esconder-se para encontrar-se.
Abandonar a sabedoria do mundo para se transformar na nova sabedoria do
Evangelho. A identidade comum de Clara e Francisco é não perder jamais o
sentido originário do Espirito. Não perder de vista o ponto de partida
(20).
Amar a vida até o fim, até a sua mais profunda raiz para
reencontrá-la em sua Fonte. Clara jamais saiu de perto do Crucifixo e
foi, exatamente ali, que Francisco não queria que se apagasse uma
lâmpada. Francisco encontrou em Clara o seu coração esponsal e a certeza
de sua escolha. Em corações abertos para o Absoluto, o Pai sempre
deposita a semente do Sim! Em Clara, a mulher pode encontrar a razão
sagrada de sua feminilidade; em Clara, Francisco encontrou a razão de
sua alma de mãe e pai de uma imensa família espiritual.
FRANCISCO E O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO
Religiões fazem mais um movimento ecumênico do que um diálogo
religioso. Ecumenismo é estar entre os da mesma casa, por exemplo, a
aproximação entre as igrejas cristãs; experiência inter-religiosa é
dialogar com os desafios do pluralismo cultural e religioso presente em
outras fronteiras. Mesmo que nos atinja em nossa acomodação da nossa
profissão de fé, o paradigma do diálogo inter-religioso hoje é este: há
mais verdades no conjunto das religiões do que no dogma isolado de cada
uma delas. Francisco e o franciscanismo sempre foram referências desta
verdade pela vivência da fraternidade. Como crer sem relacionar-se com o
diferente? Em tempos de globalização, a fé também encontra um horizonte
amplo de experiências. Por caminhos diferentes, todos chegamos à mesma
busca de Deus. Nem sempre é possível dialogar com o dogma e a doutrina,
mas é sempre possível fazer unidade na espiritualidade.
O diálogo inter-religioso não coloca em risco nenhuma identidade
religiosa; a identidade cristã não corre risco se tiver que ir ao
encontro do diferente de si mesma. É preciso amar apaixonadamente a sua
religião, mas respeitar por demais a religião do outro. Como entender a
singularidade da fé do diferente se eu não faço uma aproximação? No
catolicismo temos a intercessão dos santos e das santas. É possível uma
intercessão sem comunhão? Como acreditar se não conheço nada da vida do
padroeiro? Tem muita gente que faz promessas a Santo Expedito, mas não
sabe quem ele é. Francisco é um santo amado porque é conhecido e
deixa-se conhecer. Não podemos estabelecer uma postura crítica sem um
verdadeiro conhecimento. Ou será que para nós, manipulados pelos
bombardeios midiáticos e ideológicos, pelos conchavos dos senhores das
armas, acreditamos que os muçulmanos são sinônimo de terroristas? O
diálogo inter-religioso repara injustiças que estão incrustradas em
nossa tacanha mentalidade, que tem um horizonte muito redutivo e reza
olhando para o próprio umbigo.
Crer é ter uma nova sensibilidade. Deus é maior que qualquer
religião. Fé não é fechamento, mas abertura para o que a vida tem de
esperança, de futuro, de utopias, de encontros e certezas. Jesus pregou
o Reino que está além das muralhas das fortes tradições. Ele não mandou
o jovem rico morar na perfeita comunidade de Qunram, mas pediu que ele
amasse os pobres e dividisse os seus bens, que ele aprendesse que é
preciso eternizar-se defendendo a integridade da vida e do ser humano.
Como Francisco aparece nesta verdade? Ele tem bilhete de entrada em
todas as culturas e em todas as religiões porque é alguém reconciliado
com a vida, com as pessoas, com o verme da estrada, e apaixonado a ponto
de transformar o seu Deus na Senhora Dama Pobreza e casar com este
projeto. Ele é um santo que viveu tão intensamente o seu tempo que
atravessou épocas. Reconstrói a casa da existência calejando as mãos
erguendo as ruínas de São Damião. Deu um sentido fraterno e coletivo à
existência. Integra todos os significados e símbolos. Há algo de sadio
em suas sandálias, hábito, cordão, Tau, cruz, Porciúncula, estigmas e
aquele jeito de dizer as criaturas. Porque aprendeu que orar nos bosques
pode ir melhor ao Papa. Pregou aos pássaros e praças cheias de gente.
Conheceu as dores morais e materiais dos desfavorecidos. Sua escolha
religiosa tinha uma missão: melhorar a humanidade a partir do protótipo
do humano divinizado, Jesus Cristo! A partir daí foi ao mundo do
ocidente e do oriente pregando a paz e o bem. Não foi às Cruzadas para
dialogar com espada e lança. Foi para procurar pacificar com o escudo da
fé. Quem vive bem Santa Maria dos Anjos pode ser bem recebido na tenda
do sultão. É um itinerante com coração de monge, um fundador de uma
Ordem com o hábito de camponês, um cantor do Irmão Sol e das glórias do
Altíssimo. Um dia saiu de Assis e foi a Damieta, no Egito; passou pelas
fileiras dos Cruzados em campo de batalha e foi conversar com
Melek-el-Kamil:
“E o sultão, vendo no homem de Deus o admirável fervor de
espírito e a virtude, ouvi-o com prazer e convidava-o com insistência a
morar com ele”.
“Não somente os féis de Cristo, mas também os sarracenos (…),
admirando-lhes a humildade e perfeição, quando por causa da pregação se
aproximam deles intrepidamente, recebem-nos com boa vontade,
providenciando as coisas necessárias com ânimo grato. Vimos que o
primeiro fundador e mestre desta Ordem – a quem todos os outros
obedecem como a seu prior gera -, homem simples e iletrado, amado por
Deus e pelos homens, chamado Frei Francisco, foi levado a tal excesso de
ebriedade e fervor de espírito que, quando chegou ao exército dos
cristãos diante de Damieta, na terra do Egito, dirigiu-se intrépido e
munido com o escudo da fé ao acampamento do sultão do Egito. Como o
tivessem detido no caminho, disse: “Sou cristão, conduzi-me ao vosso
senhor”. (…) Os sarracenos ouvem de bom grado os mencionados frades
menores todo o tempo que pregam a fé em Cristo e a doutrina evangélica,
enquanto não contradizem manifestadamente com sua pregação a Maomé”.
FRANCISCO E A QUESTÃO AMBIENTAL
Francisco é aquele, que ao receber a convocação para reconstruir a
casa, de um modo imediato põe-se em ação. A Idade Média nos legou este
seu modelo vivo e grandioso, um humano enamorado pela vida e pelo Deus
da vida. E os dias de hoje o que tem para nos oferecer? Certamente,
existem muitas pessoas envolvidas com o cuidado da nossa casa, o belo
planeta terra; por outro lado, se hoje vivemos a assim chamada crise
ecológica é porque existe muita gente que não sabe estar em casa. Há uma
crise de relação entre o humano e a natureza, e isso afeta valores e
identidade. Aqui, também, entra a provocação de Francisco. Ele está lá
onde floresce a verdade, a formação de um humano total, onde viceja a
fraternidade, amor, ternura, comunhão com tudo e com todos.
Ecologia é o discurso sobre a casa, seu cuidado e preservação. Nunca
se falou tanto em defender, promover, valorizar e estar ao lado da vida.
Se existe esta fala e as ações em função das questões ambientais, é
porque há evidências e consequências de que a nossa Irmã e Mãe Terra,
como chamava Francisco, está agredida, usada, ameaçada, explorada de um
modo desenfreado e desumano. A questão ambiental é o grande tema do
momento e gera grandes congressos, fóruns, cúpulas, debates e
preocupações. Ocupa as razões da ética e a argumentação holística, traz a
reflexão mais aguçada para a totalidade humana. Teria sentido uma
ecologia que esqueça a antropologia? O paradigmático Salmo 8 proclama:
“Senhor, nosso soberano, como é grandioso teu nome em toda terra! Quando
contemplo o céu, obra de teus dedos, a lua e as estrelas que fixaste, o
que é o homem, para que te lembres dele, o ser humano, para que com ele
te ocupes?”
Francisco de Assis pregou e viveu a fraternidade como uma relação e
não deixou a parte o relacionamento de todo ser vivente. Viver a
fraternidade universal é dar condições de vida a tudo o que vive, é
sentir-se irmanado com animais, minerais, vegetais, macrocosmo e
microorganismos. Relacionar-se para cuidar e transformar para o melhor,
equilibrar o potencial da vida. “São Francisco de Assis, uma tão elevada
personalidade, mostrou ao mundo o que significa exercer uma
subjetividade integrada e solidária com os seres e suas fragilidades,
sem restringir o acolhimento a quem quer que seja, celebrando a profunda
vibração da vida que está no recôndito da existência. Acima das ideias e
ideologias, medos e apegos, estava ali a receptividade, simplicidade e
equilíbrio dinâmico do humano no mundo”.
Francisco de Assis deixou-se conduzir por Deus, mas sempre mergulhado
na terra, irmão de toda criatura. Não quis ser dono ou senhor de nada e
de ninguém, quis apenas ser o irmão da água, do fogo, do sol, da lua,
dos pássaros, das florestas e das plantas, captando assim que a vida é
parte de um todo. Colocou-se na esteira admirável do engrandecimento e
respeito por todo ser criado, nada destruindo, nada ferindo, nada
prejudicando, quase que pedindo licença para pisar a terra,
desculpando-se com seus irmãos e irmãs criaturas por não servi-los
bastante. Vejamos o que nos dizem as Fontes Franciscanas:
“Quanta alegria julgas que a beleza das flores lhe trazia à mente,
quando ele via a delicadeza da forma e sentia o suave perfume delas?
Voltava logo o olhar da consideração para a beleza daquela flor que,
brotando luminosa no tempo da primavera da raiz de Jessé, ao seu perfume
ressuscitou milhares de mortos. E quando encontrava grande quantidade
de flores, de tal modo lhes pregava e as convidava ao louvor do Senhor,
como se elas fossem dotadas de razão. Assim também, com sinceríssima
pureza, admoestava ao amor divino e exortava a generoso louvor os
trigais e vinhas, pedras e bosques e todas as coisas belas dos campos,
as nascentes das fontes e todo verde dos jardins, a terra e o fogo, o ar
e o vento. Enfim, chamava todas as criaturas com o nome de irmão e, de
maneira eminente e não experimentada por outros, percebia com agudeza as
coisas ocultas do coração das criaturas, como quem já tivesse alcançado
a liberdade gloriosa dos filhos de Deus”.
“Tendo pressa de sair deste mundo como de um exílio de peregrinação,
este feliz itinerante era auxiliado pelas coisas que estão no mundo, e
realmente não pouco. Usava o mundo como campo de batalha, mas também o
usava, com relação a Deus, como espelho limpidíssimo de sua bondade. Em
qualquer obra de arte, ele exalta o Artífice e atribui ao Criador tudo o
que descobre nas coisas criadas. Exulta em todas as obras das mãos do
Senhor e intui, através dos espetáculos do encantamento, a razão e causa
que tudo vivifica. Reconhece nas coisas belas aquele que é o mais Belo;
todas as coisas boas lhe clamam: “Quem nos fez é o Melhor”. Por meio
dos vestígios impressos nas coisas ele segue o Amado por toda parte e de
todas as coisas faz para si uma escada para se chegar ao trono.
Abraça todas as coisas com o afeto de inaudita devoção, falando com
elas sobre o Senhor e exortando-as a louvá-lo. Poupa os candeeiros,
lâmpadas e velas, não querendo com sua mão extinguir o fulgor que era
sinal da luz eterna. Anda com reverência sobre a pedra em consideração
daquele que é chamado de Pedra. Quando precisa recitar aquele versículo:
Vós me exaltastes sobre a pedra, para expressá-lo mais reverentemente,
diz: “Vós me exaltastes aos pés da Pedra”.
Proíbe aos irmãos que cortam lenha cortar pelo pé toda árvore, para
que tenha esperança de brotar de novo. Manda que o hortelão deixe sem
cavar a faixa de terra ao redor da horta, para que, a seu tempo, o
verdor das ervas e a beleza das flores apregoem que é belo o Pai de
todas as coisas. Manda traçar um canteiro na horta para as ervas
aromáticas e que produzem flores, para que elas evoquem os que as
contemplam à recordação da suavidade eterna.
Recolhe do caminho os vermezinhos, para que não sejam pisados, e
manda que sejam servidos mel e ótimos vinhos às abelhas, para que elas
não morram por falta de alimento no rigoroso frio do inverno. Chama com o
nome de irmão todos os animais, conquanto entre todas as espécies de
animais prefira os mansos. Quem seria capaz de narrar tudo? Na verdade,
toda aquela bondade fontal, que há de ser tudo em todos, já se
manifestava a este santo como tudo em todos”.
Quem escreveu o Gênesis, certamente, andou primeiro pela natureza. Francisco não tem uma relação romântica com as coisas, como podemos pensar, mas sim uma relação de consanguinidade. Ele não conquistou o mundo das criaturas pelo intelecto, mas sim pelo Amor que tinha no coração. Era um artista da vida, e o artista é aquele que pinta a estrutura num quadro de paisagem, e põe na tela a sua profundidade. Francisco é o artista e sábio que deu sabor às estruturas. A veste que vestiu seu corpo não deu apenas a beleza da veste, mas a beleza do corpo, mente, alma e coração. Francisco revestiu-se da vida. Suas palavras eram em função da verdade das coisas; ele sabia usar a informação para ser um aprendiz das verdades de todas as coisas que estavam ali no cotidiano, aos pés do familiar, bem próximo. A pátria do humano é o que está mais percebido e valorizado. Ao pensar as coisas, as imagens, os símbolos, Francisco conquistou as coisas não para o uso, mas para o louvor.
Quem escreveu o Gênesis, certamente, andou primeiro pela natureza. Francisco não tem uma relação romântica com as coisas, como podemos pensar, mas sim uma relação de consanguinidade. Ele não conquistou o mundo das criaturas pelo intelecto, mas sim pelo Amor que tinha no coração. Era um artista da vida, e o artista é aquele que pinta a estrutura num quadro de paisagem, e põe na tela a sua profundidade. Francisco é o artista e sábio que deu sabor às estruturas. A veste que vestiu seu corpo não deu apenas a beleza da veste, mas a beleza do corpo, mente, alma e coração. Francisco revestiu-se da vida. Suas palavras eram em função da verdade das coisas; ele sabia usar a informação para ser um aprendiz das verdades de todas as coisas que estavam ali no cotidiano, aos pés do familiar, bem próximo. A pátria do humano é o que está mais percebido e valorizado. Ao pensar as coisas, as imagens, os símbolos, Francisco conquistou as coisas não para o uso, mas para o louvor.
A pós-modernidade vive no esquecimento das coisas mais familiares e
tem medo das ruas e estradas. O medo esconde o olhar e prende os passos.
Francisco nos liberta e destrava para que possamos voltar a uma devoção
às coisas da terra. Ele é o gênio do gosto, do belo e do bom; ele é o
padroeiro da comunidade dos que amam a Beleza e quer que toda a ação
humana seja um esplendor. Quem vê a beleza em tudo o que existe está
sendo sempre vendo o celestial. Quem vê o limpo e transparente, vê bem a
profundidade. A civilização pós-moderna não permite mais a beleza dos
pés descalços. Francisco marcava o chão com seus pés ou com uma surrada
sandália; nós deixamos as marcas das grifes de nossos caríssimos tênis. O
humano de hoje já não sente mais o chão, então, como dizer que aqui
passou alguém? Se tivermos medo da espessura do caminho, não iremos
muito longe.
Francisco de Assis pisou a terra e confraternizou-se com o solo.
Olhou e cantou a vida por isso o horizonte da sua janela era mais amplo e
fazia desaparecer problemas. Quem olha com profundidade apaixona-se
pelo que vê; quem não olha com profundidade apenas usa; talvez este seja
o olhar industrial que vai demolindo os sistemas vivos que dão suporte à
vida. Nunca se falou tanto em meio ambiente, em consciência ecológica e
planetária como hoje. Quantos seminários e palestras, livros e
tentativas de soluções técnicas. Procura-se o remédio e a marca do
remédio, mas ninguém quer entrar na causa da doença. A verdadeira causa é
mais profunda, é uma questão de cosmovisão. Sobrevoamos paisagens
belíssimas, mas fechamos as janelas do voo. A maioria das pessoas não
enxerga o mundo. Que São Francisco de Assis nos proteja e nos ajude a
não entulhar estradas e calçadas com detritos, que a mansão não jogue
lixo no terreno baldio, que os esgotos não escorram nos mananciais, que o
mundo não termine na cerca de nossos limites, que a Amazônia não seja
conhecida pelo exótico, que os ecossistemas e biomas nos salvem, que as
nossas escolas formem para existir prestando atenção na torneira que
escorre, que as universidades, cada vez mais técnicas não formem
profissionais de visão estreita, mais Biologia e menos fobias, que a
gente ame e não brigue com a Criação ou, então, cantemos com São
Francisco o seu famoso Cântico das Criaturas:
“Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas,
especialmente o senhor irmão sol,o qual é dia, e por ele nos iluminas. E
ele é belo e radiante com grande esplendor, de ti, Altíssimo, traz o
significado.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã lua e pelas estrelas no céu as
formaste claras e preciosas e belas. Louvado sejas, meu Senhor, pelo
irmão vento, e pelo ar e pelas nuvens e pelo sereno e por todo tempo,
pelo qual às tuas criaturas dás sustento.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água que é muito útil e humilde
e preciosa e casta. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo pelo
qual iluminas a noite e ele é belo e agradável e robusto e forte.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa, a mãe terra que nos
sustenta e governa e produz diversos frutos com coloridas flores e
ervas.”
Francisco de Assis nos ensina que viver é despojar-se de qualquer
sofisticação e beber mais do puro aberto do natural. Ir mais aos
detalhes da vida e ver seus muitos gestos de doação e acreditar numa
novidade originária. Ele é o homem que voltou ao Paraíso. Que ele nos
dê novamente esta imensa saudade do Paraíso do qual nós mesmos nos
expulsamos. Ele é a Poesia da Vida e a Poesia do Humano. E o humano que
anda leve no movimento sem pressa do caminho, percebendo ritmo e o verso
do próprio passo. Franciscanismo e Poesia não se separam porque
estiveram sempre juntos na percepção da sua identidade, mergulhados no
Natural. E por falar em Poesia, vamos encerrar este ponto com o grande
Drumond, poeta de Itabira, de Minas, do Rio e do Mundo:
“Francisco operário madrugador na construção de igrejas,
(não de edifícios de renda, longe disso).
Tantas coisas pra lhe contar, daqui de baixo!
Mas você não cansou, em sete séculos e meio,
de ouvir a eterna queixa, o monocórdio estribilho
de nossa falta de humildade cortesia ternura nudez?
Veja por exemplo os bichos (só a eles me refiro
porque não falam por si). Arvoro-me em secretário
do mico-estrela, da tartaruga, da baleia,
de todos, todos. Dos mais espetaculares aos mínimos,
tão míseros.
De irmãos você os chamava. Repare: aterrorizados.
fogem de nós, com muita razão e longos medos.
E um e outro, isolados, gostamos.
Coisa nossa, brinquedo. É gosto sem gostar,
feito de posse-domínio.
Veja as infinitas coleções
de animais que padecem em todos os chãos e águas da Terra
e não podem dizer que padecem, e por isso padecem duas vezes,
sem o suporte da santidade.
Pior, Francisco: o padecimento deles
é de responsabilidade nossa, humana? Desumana.
Nós os torturamos e matamos
por hábito de torturar e de matar
e de tornar a fazê-lo, esporte,
com halalis, campeonatos, medalhas, manchetes,
pólvora cheirando festa,
ouro pingando sangue…
Repiso estas coisas meio encabulado.
Tão velhas!
Tão novas sempre, secamente.
Técnicas letais varejam o fundo do mar
E o velho tiro, a velha lâmina
estão sempre caçando o irmão bicho.
Lembrar que terrível penúria de amor
lavra nos corações convertidos em box
de supermercados de crueldades?
E penúria logo de amor,
essa matéria prima, essa veste inconsútil de sua vida, Francisco?
Culpo-me, santinho nosso,
mas antes faço-lhe um apelo:
Providencie urgente sua volta ao mundo
no mesmo lugar, em lugar qualquer
(não, é óbvio, onde se comercia a santa esperança dos homens),
para ver se dá jeito,
jeito simples, franciscano, jeito descalço
de consertar tudo isso. Os bichos,
por este secretario, lhe agradecem.
Assim discorremos alguns aspectos da filosofia de vida desta
Testemunha do século XII e tão atual, IL Poverello, um simples
apaixonado pela sua identidade. Alguém que nos ensinou que mais que um
lugar, o céu é Alguém e precisa estar em nosso aqui e agora. Um louco
apaixonado pela sua época e por isso é uma eterna permanência, que não
fez concorrência, mas realizou convivência. Que rezou 30 e duas vezes o
“Tu” em suas preces que nos deixou por escrito, mas não fez pedidos
para o “eu”, porque escutou mais o Tudo e o Todos, e disse que orar
assim supera qualquer atividade. Ele foi o santo da Majestade Divina e
dos pobres. Fez de cada lugar, das grutas, da Porciúncula, dos bosques,
do Alverne e das estradas, a casa típica de sua Ordem, a exteriorização
do ideal interno de cada Irmão e Irmã que o seguiu. A sua vida é
simples; não é complicada, é límpida e livre; tem a originalidade
própria do Amor que ele sempre buscou.
Foi um sonhador e por isso mesmo um grande realizador. Por acreditar em
seus sonhos foi à frente e continua a puxar para frente a história da
humanidade. Inspirou o nome do novo Papa, para ser mais uma vez, aquele
que coloca ruínas em pé, com o paciente e artesanal trabalho de
reconstruir. Não é um santo do passado, é do futuro, do amanhã e do hoje
das nossas mais belas esperanças. Com ele, aprendemos a acordar de
manhã e não desfazermos dos sonhos. Ele convoca a um novo jeito de viver
a Boa Nova que é exatamente a fazer nova a humanidade. Nisto está a sua
profecia, cortesia e delicadeza espiritual. Ele é uma ação humana
ética! Um complexo de amor ao Pai. Não brigou com o errado, mas viveu o
certo.
Aprendeu com o Senhor que nós mesmos temos que ser o Bem, o Bem
Absoluto, o Sumo Bem, mergulhar no Bem. Ele é um fervor da Vida, uma
Comunhão Universal, uma Fraternidade. Simples e essencial. Menor, vazio
de apegos, completamente despojado, sem negatividades, sem pessimismos,
sem dramaticidade. Nasce a cada instante. Concretizou, de um ou outro
modo, o seu projeto inicial: ser um Cavaleiro Medieval, ou melhor,
adequou um código de comportamento para um novo ideal humano
caracterizado pela nobreza de alma, honradez, coragem, fidelidade,
jovialidade, prodigalidade e uma forte espiritualidade. Que São
Francisco de Assis resgate em nós o melhor de nós! Paz e Bem!
NOTA
Todas as citações das Fontes Franciscanas e Clarianas que estão nas notas deste artigo com a consequente explicação das Siglas Abreviadas estão em: Fontes Franciscanas e Clarianas, Vozes- FFB, Petrópolis, 2004.
Fonte: http://carismafranciscano.blogspot.com.br/2013
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